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Resistência microbiana: o que é, como acontece e seus riscos à saúde

Foi por um mero descuido que Alexander Fleming descobriu, em 1928, a penicilina. Depois de entrar de férias e esquecer uma cultura de bactérias sem os devidos cuidados em seu laboratório, Fleming, ao retornar, se surpreendeu com aquilo que viria a ser o primeiro antibiótico da história. O fungo do gênero Penicillium que apresentava características …

Resistência microbiana: o que é, como acontece e seus riscos à saúde Leia mais »

Foi por um mero descuido que Alexander Fleming descobriu, em 1928, a penicilina. Depois de entrar de férias e esquecer uma cultura de bactérias sem os devidos cuidados em seu laboratório, Fleming, ao retornar, se surpreendeu com aquilo que viria a ser o primeiro antibiótico da história. O fungo do gênero Penicillium que apresentava características bactericidas possibilitou, a partir daquele momento, o desenvolvimento de diversos estudos para o combate de doenças e infecções que preocupavam populações, como a pneumonia e a sífilis. Desde então, fazemos o uso recorrente de antibióticos e outros antimicrobianos para a proteção contra tais enfermidades. Porém, aliado a esse comportamento, outro movimento muito perigoso vem crescendo de maneira alarmante: o aumento da resistência microbiana aos medicamentos.

A resistência microbiana (RM) refere-se àqueles microrganismos capazes de sobreviver aos antimicrobianos, medicamentos que antes seriam utilizados para eliminá-los. Essa resistência é um processo de evolução natural, onde os microrganismos passam por mutações ao longo do tempo, aderindo maior capacidade de sobreviver ao entrar em contato com essas medicações. A ideia pode ser melhor explicada a partir do estudo da teoria de seleção natural de Charles Darwin. De acordo com o naturalista, aqueles organismos que apresentam variações favoráveis ao ambiente terão mais chances de sobrevivência e de gerar descendentes com essa mesma característica. 

No caso dos microrganismos, ao serem expostos a um certo antimicrobiano, um pequeno grupo daqueles mais aptos consegue sobreviver e depois se reproduzir, dando origem a grupos cada vez mais fortes e com genes mais resistentes. Esses microrganismos são, portanto, chamados de multirresistentes, ou, no caso de bactérias, “superbactérias”. É necessário enfatizar, ainda, que a resistência microbiana abrange todos os tipos de microrganismos multirresistentes, como os fungos, vírus, parasitas. Já a resistência bacteriana refere-se exclusivamente às bactérias e é mais recorrente. 

A imagem abaixo pode ajudar a esclarecer melhor a forma como a teoria darwiniana se aplica à resistência, utilizando bactérias como exemplo. 

Bactérias resistentes no organismo. [Imagem:   Cartilha Oswaldo Cruz, 2018]
Bactérias resistentes no organismo. [Imagem: Cartilha Oswaldo Cruz, 2018]

 

As causas do problema

Ainda assim, mesmo que a adesão de resistência pelos microrganismos seja um acontecimento evolutivo natural, alguns comportamentos antrópicos vêm contribuindo para a aceleração deste processo. 

O primeiro deles é o uso indiscriminado e inadequado de medicamentos, como informa Luzia da Silva Lourenço, doutora em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisadora e professora na área de Biologia e Ensino de Biologia da Faculdade São Paulo. Ela explica que as bactérias que não tem genes resistentes o adquirem por meio de mutações no DNA. Por isso, é necessário se atentar para o intervalo de tempo entre uma reprodução bacteriana e outra: “o tempo curto em que uma espécie de bactéria se multiplica permite que as mudanças no material genético ocorram em uma escala de tempo pequena, favorecendo o desenvolvimento da resistência”, comenta. Dessa forma, a ingestão de antibióticos de maneira excessiva pode favorecer uma maior taxa de mutação e, consequentemente, o aumento da resistência bacteriana aos antibióticos.

O mesmo pode ocorrer em casos de automedicação, quando o paciente toma medicamentos sem as devidas recomendações médicas ou sem seguir à risca as orientações do profissional. Sem saber a dosagem, horário e quantidade necessária para o tratamento do problema, o indivíduo que se automedica pode tomar mais remédios do que precisaria normalmente, voltando à questão do uso excessivo. Poderia acontecer também do paciente tomar menos do que deveria, o que resultaria no fim das bactérias menos resistentes, mas ainda restariam aquelas mais fortes, que possivelmente ocasionariam uma infecção mais severa. Não apenas o agravamento do quadro clínico, como também o período de internação, os custos médicos e a ingestão de medicamentos mais fortes aumentariam para tentar solucionar o problema. De toda forma, é fundamental consultar sempre um médico antes de consumir qualquer tipo de medicamento e seguir a prescrição.

 

Antibióticos e o desenvolvimento das superbactérias

Os antibióticos usados para combater as bactérias agem de diferentes maneiras para enfraquecer e dar fim às infecções e doenças causadas pelo microrganismo. O mecanismo mais frequentemente utilizado e prescrito pelos médicos é o uso de antibióticos pertencentes à classe dos beta-lactâmicos, como a penicilina, cefalosporina, cefamicinas e outros. Essa classe age diretamente na ruptura da parede celular bacteriana pela inibição da produção de peptideoglicanos, estrutura responsável por sua rigidez, essencial para a existência da célula. “Entre os beta-lactâmicos, as bactérias que causam infecções já desenvolveram resistência à ampicilina e amoxicilina [muito utilizada para amigdalite, pneumonia ou infecções urinárias]”, cita Luzia. Em contrapartida, a pesquisadora também conta que os antibióticos aos quais as bactérias patogênicas desenvolveram menor resistência também pertencem a essa mesma classe, como piperacilina (associada a tazobactam), meropenem e ertapenem, medicamentos indicados para o tratamento de infecções moderadas ou graves. No caso da piperacilina, um ácido é utilizado em conjunto para combater a ação de bactérias multirresistentes ao medicamento.

Além dos beta-lactâmicos, há ainda outros antibióticos que atuam ameaçando a sobrevivência do microrganismo. São eles: a polimixina, que inibe a produção ou causa dano à membrana citoplasmática; os aminoglicosídeos, que inibem a síntese proteica do ribossomo da célula bacteriana; as sulfonamidas, que alteram o metabolismo celular; e os fluoroquinolonas, que alteram a síntese dos ácidos nucleicos, DNA e RNA. Vale destacar que os antibióticos são direcionados para estruturas celulares presentes apenas em bactérias, que são diferentes ou inexistentes em células eucariontes, como as dos seres humanos. Logo, são drogas relativamente não tóxicas para nós. 

O grande problema é que, de um tempo para cá, algumas bactérias vêm combatendo a ação desses medicamentos, tornando seu uso ineficaz e, com isso, ficando mais resistentes. A doutora Andréa Dessen, diretora do grupo sobre patogênese bacteriana no Instituto de Biologia Estrutural, na França, e no Laboratório Nacional de Biociências, em Campinas, alerta para dois mecanismos diferentes de combate à penicilina: “Um deles é pela produção de uma enzima chamada beta lactamase, que destrói o antibiótico, corta sua estrutura. Essas enzimas são secretadas por bactérias muito agressivas”. A segunda forma apontada pela doutora é a inserção de mutações nas proteínas que se ligam à penicilina, fazendo com que o antibiótico não reconheça e não atue mais naquela área. Como a penicilina é um beta-lactâmico que age diretamente na parede celular bacteriana, quando não identifica as proteínas PBP (Penicillin Binding Protein, ou Proteínas de Ligação à Penicilina, em português), ela perde sua efetividade. Essas proteínas PBP são essenciais para a formação da parede e desencadeiam a síntese do peptideoglicano, constituinte vital da parede celular já citado acima.  

A introdução de mutações nas próprias proteínas é uma estratégia que as superbactérias utilizam muito para que não sejam reconhecidas pelos antibióticos. Além do exemplo da penicilina, os aminoglicosídeos passam pelo mesmo processo. A bactéria, mais uma vez, introduz mutações nessas proteínas que são importantíssimas para sua sobrevivência e, assim, conseguem sobreviver sem que o antibiótico as reconheça. 

Existe, ainda, um outro mecanismo muito conhecido, chamado de bomba de efluxo, onde as bactérias instalam espécies de bombinhas em sua membrana e bombardeiam com várias proteínas os antibióticos que tentam entrar em sua célula. Dessa forma, as superbactérias expulsam o medicamento e impedem sua ação. 

Além do combate das próprias superbactérias aos medicamentos, algumas delas conseguem espalhar resistência transferindo material genético. A aquisição desse gene resistente pode ocorrer de diversas formas, entre elas: a obtenção das características genéticas pelo meio externo e o compartilhamento de partes do DNA com as bactérias que estão próximas. No primeiro caso, os microrganismos que estão perto de uma bactéria morta no meio externo conseguem pegar esse material e incorporar no próprio, introduzindo as mutações dentro do DNA. Na outra situação, as bactérias que estão próximas e já são resistentes a determinadas drogas transferem partes de seu DNA para outras que estão ao seu redor.

Fora esses dois casos, é possível que um vírus tome partes do DNA de uma bactéria e transportar para outras. Chamado de bacteriófago, esse vírus invade bactérias e se reproduz em seu interior, podendo levar o gene resistente consigo. 

Transferência de genes resistentes entre bactérias. [Imagem: Cartilha Oswaldo Cruz, 2018]
Transferência de genes resistentes entre bactérias. [Imagem: Cartilha Oswaldo Cruz, 2018]

 

Falha dos antibióticos: ameaça de saúde pública mundial 

“Se não agirmos, estamos vendo um cenário quase impensável em que os antibióticos não funcionam mais e somos lançados de volta à idade das trevas da medicina” afirmou David Cameron, ex-primeiro-ministro do Reino Unido, ao anunciar que começaria a investir em pesquisas para a produção de novos antimicrobianos. Junto dessa iniciativa, muitos outros projetos visam a pesquisa e o combate à resistência microbiana, como o Sistema Global de Vigilância de Resistência Antimicrobiana (GLASS) da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, o Projeto Stewardship avalia hospitais para a inserção de programas de gerenciamento do uso consciente de antimicrobianos.

A resistência microbiana mata, aproximadamente, 700 mil pacientes por ano com infecções, segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU). O relatório estima que, até 2050, dez milhões de pessoas no mundo poderão morrer a cada ano por doenças resistentes aos medicamentos. Aliado a isso, outros fatores – como as condições de saúde muita vezes precárias, a falta de profissionais capacitados e de infraestrutura de qualidade – representam pontos preocupantes que podem contribuir para o agravamento da situação. 

 

Pandemia do Coronavírus 

No atual contexto de pandemia, algumas medidas vêm preocupando quanto ao risco de aumento da resistência microbiana. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, declarou em coletiva na Suíça, que o uso inadequado de antibióticos nesse momento poderá acarretar em “níveis maiores de resistência bacteriana e repercutir no lastro da doença e nas mortes durante a pandemia e depois”. 

A organização relatou, ainda, que esse uso inadequado se deve à prescrição indevida de medicamentos, uma vez que a recomendação de antibióticos é apropriada apenas para pacientes acometidos pelo vírus com suspeita de infecção bacteriana. Um guia lançado pela OMS orienta que os médicos não recomendem a ingestão de antibióticos para pacientes com forma branda ou moderada do coronavírus. Ghebreyesus afirmou que essas diretrizes permitirão salvar vidas e prevenir a resistência bacteriana, “um dos desafios mais urgentes do nosso tempo”, concluiu. 

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