A representação estética do cotidiano dos indivíduos é feita através da arte. Entre suas diferentes formas, o gênero lírico é um meio muito comum de reivindicações de um povo. O trovadorismo do século 11 é um exemplo claro: as cantigas de escárnio e maldizer, principalmente, reclamavam aspectos sociais e políticos da época através da poesia e suas figuras de linguagem. Mais moderno é o movimento tropicalista do século 20, que estabelecia, através da música e da poesia, uma oposição à ditadura militar. Qual o denominador comum entre esses eventos e tantos outros? O ativismo lírico: a defesa de uma ideia de transformação social ou política abordada através dos versos, cantados ou não. É isso que o Slam Resistência faz.
“Poetividade,
Intervenções culturais, sociais.
Poética pra batalha,
Venham e tragam seus molotovs verbais…”
Surgido na cidade norte-americana de Chicago, nos Estados Unidos, em 1980, o formato slam se desenvolve nas décadas seguintes e se espalha pelo mundo. No Brasil, o estilo poético chega somente 20 anos depois, inicialmente em Brasília com o grupo chamado SlamDéf, precursor de muitos outros movimentos em todo o país. Uma das pioneiras de poetry slam (formato de competição entre poetas e poetisas julgados por jurados) no Brasil foi Roberta Estrela D’Alva, com o movimento Zona Autônoma da Palavra (ZAP Slam), que garantiu sua participação na 8ª Copa do Mundo de Slam em Paris e a conquista do 3° lugar, em 2011.
“Dizemos mais, paz,
venha a socioepifania.
Poesia sempre vence, a competição é ironia.
Dialético, esporte, poético.
Slam com o espírito, le parcour com as palavras…”
Em outubro de 2014 surgiu o primeiro encontro do Slam Resistência na Praça Roosevelt, idealizado por Del Chaves e mediado por Lews Barbosa. Antes, os encontros eram conhecidos como Quintas de Resistência, que aconteciam entre movimentos sociais que debatiam sobre o uso da força policial durante as manifestações de 2013 e 2014.
Chaves também participou do Slam da Guilhermina, onde conheceu Lika Rosa e, posteriormente, Gustavo LeGusta, B.Boy Banks e MC Cérebro IDP, importantes figuras que integraram a equipe e promoveram o movimento que é conhecido hoje. A página no Facebook do coletivo foi a principal impulsionadora das rimas e dos conteúdos políticos, declarou LeGusta em vídeo no YouTube.
“Brasil, vandalismo lírico.
Tem espaço pra geral,
tem até poeta mudo.
Mostre o seu poder composicional em três minutos.
Tragam suas armas letrais…”
Sem massagem na mensagem!
No Slam Resistência, métrica, rima e estrofe são dispensáveis: o importante é a mensagem. É um movimento inspirado no Rap e principalmente no Hip-Hop. É uma corrente ligada a temas de injustiças políticas, sociais e econômicas que afetam principalmente as periferias: racismo, patriarcalismo, violência doméstica e policial, desemprego e desigualdades. “A questão política por trás do slam é um espaço cravado na unha: a gente faz emergir essas narrativas, que por várias vezes são silenciadas, nos espaços públicos”, destaca o slammaster do SlamOZ, Kauê Tavano. “Não é a questão de dar voz para a periferia, porque ela sempre teve, e, sim, utilizar essa plataforma para propagá-la”, explica a fundadora do Slam das Minas em São Paulo, Mel Duarte, em reportagem do Jornal do Comércio.
Originalmente criado como uma prática competitiva de poesia, o objetivo é vencer a competição seguindo algumas regras de praxe. “É uma batalha de poesia. A batalha tem que ser autoral. O tema é livre. Os juízes são escolhidos ali mesmo na plateia. Os caras, os manos e as minas vem com vontade de externar. O bagulho é visceral”, explica o idealizador do Slam Resistência, Del Chaves, em vídeo sobre o lançamento do primeiro livro do movimento: Vandalismo Lírico. “Cada poeta tem 3 minutos para apresentar uma poesia de sua autoria. Não pode utilizar objeto cênico nem instrumento musical”, ele complementa em entrevista para a Revista Caliban, em 2016.
“O slam é mais que uma batalha, é um processo cultural de se criar laços com seus semelhantes e de juntar forças contra um sistema perverso”, esclarece Kauê.
Sementes espalhadas e germinadas
“Sabotagem sem massagem na mensagem: Slam Resistência” é o grito proferido pelo organizador que anuncia o início da apresentação das poesias e da batalha em si. “Slam Resistência” é o coro reproduzido por todos presentes no local e a partir daí são lançados os molotovs verbais, como recita Del Chaves.
O movimento foi inspirado em outro, chamado “Quintas de Resistência”, que acontecia na Praça Roosevelt, principalmente durante as manifestações de 2014 contra o saque de dinheiro público para a Copa. “Então ficamos na Roosevelt para ser acessível por todos os cantos da cidade”, destaca outro trecho da entrevista de Del Chaves para a Revista Caliban. Foi a partir disso que o Slam Resistência consagrou seu ponto de encontro.
“Meu primeiro contato com poetry slam foi através da internet, por conta da visibilidade do Slam Resistência nas redes sociais”, destaca Kauê, “conheci o esse movimento em 2016, mas só assistindo e escutando. Fui me apresentar nele só em 2017”. Ele também fala sobre a importância que o movimento teve na sua vida artística: “O Slam Resistência me colocou em um lugar de autorreconhecimento como artista e poeta”.
Kauê também relata sobre um aspecto cultural escasso, mas que é notório dentro do slam: “Como a Roberta Estrela D’Alva fala, a gente vai pro slam para desenvolver algo que está em falta atualmente, que é a escuta.”
Assim como Kauê, a estudante de psicologia Isabele Lopes também conheceu o movimento através das redes sociais: “Foi no Facebook que descobri o Slam Resistência e passei a acompanhar pelo YouTube”. A relevância cultural e representatividade dele foi essencial para Isabele, que começava a adquirir consciência racial. “Em 2015, quando eu tinha 14 anos, não sabia nada sobre empoderamento negro. Foi quando comecei a ver os vídeos do slam e neles as mulheres negras falando com orgulho e convicção do que elas eram e representavam. Foi isso que me ajudou a ter esse orgulho também”, Isabele completa.
Pluralidade do ativismo lírico
A poética política por meio do ativismo lírico é o gênero mais recorrente nas batalhas. Nelas, os assuntos que não estão no fluxo central de discussão da sociedade são evocados e engatilhados nas armas “letrais” dos poetas e poetisas, que fomentam a chamada poesia marginal. Kauê ainda faz uma distinção: “A poesia periférica trata sobre o cotidiano da periferia, que não necessariamente é um assunto marginalizado”.
Ele reforça que o Slam Resistência “é um espaço de fala também; ele atrai juventudes e junta de 500 a 700 pessoas (no seu auge) escutando poesia”. Para Isabele, o movimento também foi responsável por desenvolver um senso crítico em sua personalidade, acerca das estruturas políticas, culturais e sociais do país. “É muito importante porque leva o conhecimento a pessoas que nunca tiveram acesso a esse tipo de conteúdo. O Slam Resistência aborda de modo dinâmico e acessível assuntos sobre consciência racial, política e periferia. Eles ensinam cultura através da arte e isso é incrível”.
Impulsionado pelo Slam Resistência, Kauê Tavano se tornou organizador (também chamado slammaster) do SlamOZ, na zona Oeste de São Paulo, em 2017. Ele reafirma a importância do Slam Resistência: “Foi uma das grandes janelas da cena slam no Brasil”.
Apesar da grande influência sobre outros grupos de slam, “cada um tem muita autonomia para se organizar da forma que achar melhor”, diz Kauê. Certas orientações variam de grupo para grupo, “o Slam Emancipado, que acontece no centro de Itapevi, por exemplo, não determina tempo mínimo para o poeta e tudo bem”, complementa. “O slam está se tornando um movimento muito horizontal”, finaliza.
Outro aspecto muito importante é a questão das diversas essências poéticas que podem ser mais exploradas dentro do slam. Sobre isso, Kauê explica: “A poética política é fundamental, mas acredito que outros formatos também são igualmente importantes. A poesia de amor, de amizade, erótica e filosófica, que não deixam de ser politizadas, podem ser mais exploradas dentro do movimento”.
Como educador e assistente social, Kauê também fala que a abordagem dos conteúdos das poesias do poetry slam dentro da sala de aula é relevante, e, como Isabele disse, desperta interesses e consciências, principalmente em jovens de periferias que começam a ter o primeiro contato com a política.
“Atitude e inteligência.
Sabotagem sem massagem na mensagem: Slam Resistência.
Multietnia, é nóis.
‘Arrou’, brasilidade.
Trovadores, pensadores da contemporaneidade.
Trovadoras e pensadoras da contemporaneidade.”
– Poesia declamada por Del Chaves e Lika Rosa no documentário Ágora do Agora de 2019.
A pandemia da Covid-19 interrompeu os encontros dos diversos grupos de slam no país, mas na internet o distanciamento social ainda não aconteceu: “Mesmo durante a pandemia, acredito ser importante continuar o movimento nas redes sociais, justamente porque há uma demanda social. A poesia encanta um pouco a vida”, finaliza Kauê.
Enquanto movimento político, social e cultural, o Slam Resistência influencia na construção da sociedade atualmente. É o recorte da garra com que Del Chaves cortou, e ainda corta, a mordaça dos silenciados. Não só ele, mas também poetas e poetisas que tornaram o movimento possível. Mesmo diante da morte, suas poéticas resistirão. São os “trovadores, pensadores da contemporaneidade” e as “trovadoras da contemporaneidade” que dão significado para a existência e sobrevivência da escuta e da fala, para a representatividade e tomada de consciência na sociedade. Assim como para a manutenção democrática do país. É a multietnia. É a brasilidade. Sabotagem sem massagem na mensagem: Slam Resistência.
[Imagem de capa: Fotos de Slam Resistência/Facebook]