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10 anos sem Gabo, o contador de histórias da América Latina

Autor de Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez foi um dos principais escritores da história, reinventou a literatura e é grande figura no jornalismo
Por Samuel Cerri (samuel.cerri@usp.br)

Há 10 anos, em 17 de abril de 2014, faleceu no México o escritor, jornalista e ativista colombiano Gabriel José García Márquez, uma das principais personalidades da literatura mundial. Símbolo da corrente literária latinoamericana conhecida como Realismo Fantástico ou Realismo Mágico, Gabo, como é popular e carinhosamente conhecido, é um dos grandes nomes da literatura do século 20.

Mas, para além do mundo dos livros, o autor do famoso Cem anos de solidão (Editora Record, 1985) também teve uma renomada carreira como jornalista, da qual tinha imenso orgulho. Gabriel García Márquez reinventou a escrita e a própria literatura, ao mesmo tempo em que fazia críticas assíduas às ditaduras latinoamericanas e ao imperialismo por meio da escrita.

O colombiano foi “o autor que retratou muito bem a América Latina com uma capacidade literária admirável”, segundo Alexandre Barbosa, pós-doutor em comunicação pela Unesp na área de decolonialidade e América Latina, jornalista, pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Comunicação e Cultura (CELACC) — e fã do Gabriel García Márquez.  Ele relata que “ao ler você consegue enxergar figuras, sinestesias, cheiros e sensações que ele traz. Ele consegue fazer você sentir o que é o calor de uma tarde quente latinoamericana ou uma chuva macondiana’”.

As invenção de um autor

Todo escritor começa de algum lugar. Gabriel García Márquez começou como jornalista. Ainda em 1947, aos 20 anos, Gabriel estudou Direito em Bogotá, mas não concluiu o curso. No mesmo ano publicou sua primeira história: A Terceira Resignação, no jornal El Espectador. Esse primeiro contato com um jornal evoluiu para, no ano seguinte, o jovem Gabo iniciasse seus trabalhos no jornal El Universal. Em 1949, passou a trabalhar no El Heraldo.

Naquela época, escritores não conseguiam viver apenas de sua obra, e jornais eram ótimas ferramentas para a publicação de seus contos — Gabo fez isso com A terceira resignação e até Machado de Assis fez com Memórias Póstumas de Brás Cubas (Tipographya Nacional, 1881). Ser jornalista unia o útil ao agradável.

No caso de Gabriel García, isso foi mais além: o ser jornalista ampliou seu olhar de cronista, de relatos e de contar histórias para outras pessoas. É assim que Alexandre Barbosa o define: “um contador de histórias da América Latina”.

Mas foi em 1954 que ele se tornou repórter e crítico do jornal que publicou seu primeiro conto, o El Espectador. Foi então que, no ano seguinte, Gabriel García Márquez publicou seu primeiro livro: A revoada (O enterro do diabo) (Editora Record, 2003), onde a cidade de Macondo aparece pela primeira vez, cenário central do livro que o consagrou um dos maiores escritores da história.

O jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade

Gabriel García Márquez

Mesmo após o sucesso como escritor, Gabriel García nunca deixou a paixão pela primeira profissão. Colocava o jornalismo como a melhor profissão do mundo, certa vez a caracterizando como “trabalho de cão, mas não há trabalho como o jornalismo”. 

Gabo em sua época de repórter [Imagem: Reprodução/ Twitter/ @adolfo_moraiss]

Numa de suas citações sobre seu trabalho, declarou: “Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.

Em março de 1995, anos após receber o Nobel, Gabo fundou a Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI). Ela tinha função de estudar e ensinar jornalistas latinoamericanos sobre o “novo jornalismo”, também conhecido como jornalismo literário, que o jornalista Alexandre Barbosa define como “um jornalismo interpretativo com um olhar latinoamericano”. A FNPI hoje se chama Fundação Gabo.

Esse amor quase platônico pelo trabalho de repórter teve influência na sua produção literária. Em 1981, um ano antes de receber o Nobel da literatura, publicou Crônicas de uma morte anunciada (Editora Record, 1981), livro célebre em que Gabo usou de seus dons jornalísticos para narrar uma mesma história por diferentes pontos de vista: A morte de Santiago Nasar, que morreria no final, mas que teve sua morte anunciada no início do livro.

No dia em que iam matá-lo,  Santiago  Nasar  levantou-se  às  5  e  30  da manhã  para  esperar  o  barco  em  que  chegava  o  bispo.

Frase de abertura de Crônicas de uma morte anunciada

Esse tipo de narrativa — em que a linearidade da história se perde ou a primeira frase antecipa um grande acontecimento ao longo da história — se repete em muitos livros de Gabriel García Márquez. O motivo é que sua influência literária foi um certo autor que também fez essa brincadeira em um de seus mais célebres livros: A Metamorfose, de Franz Kafka

Gabriel García Márquez passou os primeiros anos de sua vida na casa dos avós maternos em Aracataca, onde sua avó lhe contava diversas histórias. Então aos 17 anos, leu A Metamorfose (Civilização Brasileira, 1956), e se encantou com a primeira frase do livro: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Gabo contava que foi ali que decidiu se tornar escritor, ao notar que o autor alemão escrevia histórias da mesma forma que sua avó lhe contava.

Não à toa, em seu principal romance, o livro que o elevou a outro nível de escritor, Cem Anos de Solidão inicia da mesma forma que Franz Kafka iniciou seu livro em 1912.

Apesar de não ser fundador da corrente, Gabriel García Márquez é o principal nome do Realismo Fantástico [Imagem: Reprodução/Telam/Yuri Cortez]

Patrono do Realismo Mágico

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Frase inaugural de Cem anos de solidão que até hoje paira no imaginário latinoamericano. O livro fez tanto sucesso que foi traduzido para 46 idiomas.

O romance se passa numa cidade fictícia, mas que apareceu na primeira obra de Gabriel García Márquez: Macondo, e conta a história das sete gerações da família Buendía. Trata-se de uma passagem ao longo do tempo, de uma aldeia isolada que se transforma na indústria bananeira do Capital estrangeiro (numa crítica de Gabo ao imperialismo), com uma família cheia de intrigas, incesto, presságios, surrealismo e nomes que se repetem.

A história é cheia de personagens marcantes e excêntricos: Amaranta Buendía nunca se casou e passou a vida costurando sua mortalha, sabendo que quando a terminasse ela morreria; Remédios, a Bela, andava seminua pela cidade, era cercada de borboletas amarelas e ascendeu ao céu como um anjo; e o Coronel Aureliano Buendía, que fazia peixinhos de ouro, e então os derretia para fazer novos peixinhos de ouro, com o intuito de não enlouquecer. São alguns exemplos do romance com mais de 30 personagens só da família principal.

Essa pluralidade de personagens e situações peculiares, e até irreais, são resultado da corrente literária que Gabriel García Márquez escolheu para si e reinventou: O Realismo Mágico. A mistura do real com o irreal e sua normalização, o tempo não-linear e o cotidiano como sobrenatural e fantástico são algumas das características da corrente que Alexandre Barbosa define como “Um movimento essencialmente latinoamericano de escritores que contaram histórias sobre a América Latina e sobre contextos em que a América Latina vive”.

“Durante o fim de semana, os urubus meteram-se pelas sacadas do palácio presidencial […] e na madrugada da segunda-feira a cidade despertou de sua letargia de séculos com uma morna e terna brisa de morto grande e de apodrecida grandeza”

Frase inaugural de Outono do Patriarca

Outro romance que mistura Realismo Mágico com crítica ao imperialismo é Outono do patriarca (Editora Record, 1975). O livro se passa num país com mar caribenho, sem nome, e gira ao redor de um militar muito velho e ainda ditador do país, conhecido e referido apenas como “meu general”. Essa foi uma crítica de Gabriel García Márquez às ditaduras militares na América Latina no século 20.

O “meu general” é muitas vezes descrito com patas de elefante, mãos lisas de donzela, hérnias pelo corpo, com poderes de curar leprosos que infestavam o salão presidencial, assim como as vacas enchiam o palácio. Gabo constrói um amálgama dos ditadores militares latinoamericanos numa imagem irreal e repugnante. Em certo momento o romance se torna não irreal, ou fantástico, que o general vende o mar aos ingleses, que rebocam as águas das costas do país.

Gabriel García Márquez recebe o Nobel da literatura na academia sueca, em 1982. [Imagem: Reprodução/ Cordon Press]

Foi através dessa escrita, que criou um novo modo de se fazer literatura, que Gabriel García Márquez recebeu o prêmio nobel da literatura em 1982, feito só conquistado por outros três latinoamericanos antes dele: Gabriela Mistral (1945), Miguel Ángel Asturias (1967) e Pablo Neruda (1971).

Ao agradecer o prêmio, Gabo disse que não foi a literatura que o havia levado ali,mas principalmente a América Latina, a qual ele exaltou ao longo de todo seu discurso, que ficou conhecido como A Solidão da América Latina

“A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários”

Gabriel García Márquez no discurso do Nobel
A forte amizade entre o cubano e o colombiano deu origem ao livro Gabo e Fidel: a paisagem de uma amizade [Imagem: Reprodução/ cubadebate]

O seu discurso, a escolha estética do enredo de seus livros e os encontros com lideranças revolucionárias, como o presidente cubano Fidel Castro, renderam a Gabriel García Márquez fortes críticas de setores conservadores da sociedade. Isso, no entanto, nunca abalou o autor, hoje lido por alguns pesquisadores como decolonial na política e cultura.

Pôster da série da Netflix, baseada no livro de Gabo [Imagem: Divulgação/ Netflix]

As polêmicas da adaptação para o streaming

Em 2019, a Netflix anunciou a produção de uma série baseada no romance Cem anos de Solidão. A notícia foi recebida com muita ansiedade pelo público, mas também com receio. A polêmica da produção da Netflix, que ganhou teaser em 2022 e está com previsão de estrear em 2024, gira em torno de uma simples pergunta: “É possível adaptar Gabriel García Márquez e o realismo mágico para a televisão?”

Gabo já tem outras produções adaptadas para o cinema, como O amor nos tempos do cólera (Love in the Time of Cholera, 2007). Apesar de em vida ter permitido a adaptação de suas obras, Gabriel García Márquez sempre teve um porém: não queria a adaptação de Cem anos de solidão, pois a magia do romance seria quebrada quando os personagens fossem encarnados. A permissão para a produção da série veio dos filhos de Gabo, herdeiros dos livros do pai.

Alexandre diz que é preciso dar uma chance para a produção: “Ao mesmo tempo que temos profunda admiração pela literatura, porque não dar a chance de um cineasta fazer a arte dele e construir sua versão sobre o livro?”. Por outro lado, o professor opina que “o livro jamais estará na série”, mas que será, sim, uma adaptação, o que pode favorecer a obra original.

“O quanto um serviço de streaming com esse poder de penetração não vai favorecer que as pessoas procurem o original?”, indaga o professor. “O público vai gostar ou desgostar da adaptação e vai se sentir convidado a ler a obra que deu origem à série”.

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