Este filme faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Quando falamos em documentário, quais são os primeiros diretores que vêm a cabeça? Michael Moore? Agnès Varda? Errol Morris? Werner Herzog? De fato, todos são nomes de peso, mas todos compartilham uma vantagem: virem de países historicamente ricos. Se Eduardo Coutinho viesse dos EUA ou França, ele certamente apareceria em qualquer lista de melhores. Isso porque sua influência é presente até hoje. Para a América Latina, a persistência e coragem de revisitar uma família antes e após a ditadura militar (Cabra Marcado Para Morrer, 1984) inspirou diversos outros cineastas a trazerem seus próprios personagens. Apesar de muitos antes já se trabalhar nos limites da ficção e realidade, em 2007, Jogo de Cena seria um marco para todos aqueles que dali em diante quisessem se aventurar pelo tema. No entanto, só é possível constatar sua real importância quando olhamos para seus filmes menores, e notamos a mesma potência (e influência) dos primeiros.
Mestre das entrevistas, seu penúltimo filme seria As Canções (2011), no qual conversa com uma dezena de brasileiros e os indaga qual seria a música de suas vidas. Como sempre vemos em seus documentários, alguns dos depoimentos são mais leves e engraçados. Outros, mais tristes e traumáticos. Mas essa repetição tonal, que se mostra cansativa em filmografias como as de Woody Allen ou Tim Burton, aqui é bem-vinda. Não só porque as situações são totalmente diversas (canções, religião em Santo Forte, 1999, moradores de um prédio em Edifício Master, 2002), como cada relato é único. Cada um tem uma história, e mais do que isso, cada um tem uma forma de contar.
Canções em Pequim (2018), da também brasileira Milena de Moura Barba, pega a mesma ideia de As Canções e leva para o outro lado do mundo. E o filme não esconde a inspiração: a cadeira em que os entrevistados se sentam é igualmente enquadrada; as cortinas por onde saem e entram também é posta aos fundos; até a cena de abertura coloca uma chinesa cantando em português uma das mesmas canções que outrora apareceria no filme de Coutinho. Ainda assim, mesmo parecidas, as personagens e histórias são totalmente diferentes. E é isso que dá validade ao filme.
A começar pelas particularidades de cada cultura. Para isso, basta comparar os depoimentos dos mais idosos. Embora ambos falem de passados de miséria, é curioso como os brasileiros falam num linguajar mais simples e, predominantemente, católico, enquanto os chineses se expressam por poemas repletos de guerras e relações metafóricas. Não que uma seja melhor que outra, são apenas diferentes. Para nós brasileiros, a visão é até inesperada, quando vemos que as histórias de sangue e violência são entoadas por senhorinhas sorridentes de não mais que 1,50m.
Mas são nas semelhanças que os filmes se tornam interessantes. Pois apesar de dragões e cordéis estarem bem distantes, o que os aproxima é a humanidade. Seja em Pequim ou no Rio de Janeiro, histórias de desilusão amorosa, perdas súbitas e más relações familiares suscitarão sempre dor, arrependimento ou mágoa. Por outro lado, os sentimentos bons, como afeto e saudade, também se refletem nas indumentárias coloridas, sorrisos tímidos e, é claro, canções que trazem.
Tal como no documentário de Coutinho, talvez mais interessante do que a história e canção propriamente ditas, são os pequenos segundos em que a cineasta mantém a câmera ligada por mais um tempo, e captura um olhar cabisbaixo, uma lágrima perdida ou um respiro ofegante. Se uma música é feita de momentos de agitação e silêncio, são essas reações finais que, de forma mais sincera, nos apresentam as tormentas particulares de cada entrevistado.
Pena somente que a diretora não abrace essa sensibilidade que construiu até ali. Terminado o depoimento, suas perguntas se restringem a um “obrigado” ou um “alguém [da equipe] tem mais alguma coisa pra perguntar?”. Em As Canções, um dos momentos mais tocantes é quando, numa situação muito semelhante, Coutinho pergunta a sua entrevistada como se sentiu cantando a música. E o sorriso que ela abriria, mais uma vez, é mais terapêutico que todo seu relato.
Ainda que lhe falte malícia, Canções de Pequim comprova como a capacidade de ouvir o outro, cada vez mais rara em tempos atuais, nos presenteia com palavras que outro este nunca chegaria perto de pensar em falar. Quem sabe assim, mais que um Universo Marvel, deveríamos investir em outras Canções em Berlim, Caracas ou Maputo.
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com