Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Ambientada em Kinshasa, no Congo, o enredo de Felicité (2017) segue uma cantora de bar congolesa quando, repentinamente, seu filho adolescente sofre um acidente grave de motocicleta e enfrenta a ameaça de perder uma das pernas. Mas então, tão repentinamente quanto, este não é mais o enredo – e somos apresentados a um ensaio errante sobre as relações e os sentimentos humanos.
Em uma estrutura que se estende por duas horas, se vê em Felicité uma estrutura de três pilares principais, os quais já devem ser familiares pela obra de Euclides da Cunha: a cidade, o homem, a luta. Ou melhor, levando em consideração a personagem que intitula o longa: a cidade, a mulher, a luta.
A cidade é Kinshasa: a capital e maior cidade da República Democrática do Congo. Alain Gomis, o diretor franco-senegalês, a descreve como um local de potencial de renovação, ou de derrota definitiva. Este não é o único paradoxo de Kinshasa; décadas de colonização, ditaduras e guerras tornaram a cidade um antro de dinheiro sujo, e ao mesmo tempo de pobreza devastadora. Um local onde o crescimento demográfico tornou inútil a infraestrutura, e onde “você está sozinho” tornou-se uma mentalidade comum. E, ao mesmo tempo que inúmeras vezes o longa retrata violência, também vemos uma vida noturna agitada, uma paixão coletiva pela música e o nascimento do amor.
A paisagem hostil, arenosa e abalada pela pobreza após um tempo se torna familiar ao espectador, e mesmo uma cama antiga e humilde pode se tornar um símbolo de conforto e afeto.
A mulher, cujo nome é trazido no título, é representada por Véro Tshanda Beya, uma cantora congolesa que iniciou sua carreira de atriz pouco antes de aventurar-se em Felicité. No início do longa, estamos em uma cena noturna de Kinshasa. Num movimentado bar, diferentes figuras conversam assuntos completamente não relacionados, bebem e riem. Felicité aparece sem ser anunciada, quando está sentada calada e imóvel em um canto isolado do par, próxima ao palco. Quando ela sobe e começa a cantar, sua voz áspera e levemente grave é uma surpresa, e transmite exatamente o que revelará ser sua personagem: forte e desafiadora.
A luta consiste tanto na jornada de Felicité para salvar a perna do filho, quanto sua própria luta por sobrevivência, trabalhando como cantora noite após noite, criando sozinha o filho, morando em uma casa humilde – sua geladeira, mesmo após inúmeros consertos, parece se recusar a funcionar.
Mas também há uma luta que é abordada de maneira mais desconexa ao enredo, parecendo ser inserida no longa por obrigação moral ou por alguma tentativa de ambientação mal desenvolvida: no Congo. Esta segunda aparece em fogueiras aparentemente aleatórias no meio da rua principal da Kinshasa que nos é retratada; na feira precária, mas movimentada que é visitada pelos personagens, e tem seu clímax em uma cena desconcertante e, precisa-se dizer, mal encaixada, de um sangrento linchamento logo em frente à feira.
Após acompanharmos a luta de Felicité, o enredo tem uma perceptível mudança de rota, e voltamos a nos aprofundar na mulher. Numa segunda etapa do longa, focamos nas relações entre a própria Felicité, seu filho Samo, e Tabu, um velho conhecido – que frequentemente aparece bêbado e causando problemas no bar onde ela trabalha, mas revela um lado sensível, carinhoso e paternal nesta metade do filme.
Tabu mostra-se devoto a Felicité. Ele lhe canta curtos versos apaixonados, dedica-se a ajudar seu filho, empenha-se em arrumar sua teimosa geladeira – tudo sem esperar, surpreendentemente, nenhuma relação amorosa em troca. Tabu demora a chegar ao coração de Felicité, tendo que atravessar a armadura que ela construiu para encarar sozinha a tortuosa vida que leva. Ele busca Samo no hospital, levando-o no colo para casa, e empenha-se em animá-lo quando o vê num estado mórbido, ainda lutando para recuperar os movimentos.
O diretor Alain Gomis comenta a relutância de Felicité em aceitar o amor de Tabu: “Felicité precisa perder tudo para se permitir ser amada”. É realmente após seu ponto mais baixo no longa, após mergulhar totalmente em um lago à noite e um encontro quase místico com um ocapi (um animal típico do nordeste do Congo, semelhante à uma zebra mas parente mais próximo de uma girafa), que ela começa a permitir Tabu a entrar em sua vida.
É nesta metade do longa, porém, que a linha de enredo é perdida, e a história começa a arrastar-se, parecendo não chegar a lugar algum. Cenas excessivamente longas ocupam uma meia hora que poderia ser cortada, sem perder sentido e tornando a experiência muito menos monótona para o espectador.
Onde a produção realmente acerta é na trilha sonora – composta pelo projeto de grupos musicais Kasai All Stars e com a voz sensacional da atriz Véro Tshanda Beya. Uma mistura de música clássica em volume explosivo, e músicas congolesas tradicionais e modernas compõem uma mistura eclética, mas que faz total sentido, ambientando perfeitamente a sociedade congolesa atual mas também representando conflitos íntimos de Felicité. A música nos cativa e até faz cenas relativamente desinteressantes parecerem mais suportáveis.
Com propostas intrigantes, embora uma execução menos louvável, Felicité é uma boa introdução à sociedade congolesa e ao cinema da África Central. O longa será parte da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Confira o trailer (com legendas em inglês)!
por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com