por Marcella Zwicker (marcellazwicker@usp.br)
No início do século XXI, começou a ser explorada a futura preciosidade do capitalismo: o Lítio (Li), um mineral leve, com alta capacidade de armazenamento de energia e que serve como insumo para baterias de carros e de eletrônicos. Apelidado de “Ouro Branco”, ele é abundante nas salmouras latinas e instiga a instalação de mineradoras estrangeiras que almejam a transição energética — pois é uma alternativa sustentável em relação à queima de combustíveis fósseis.
O mineral é o primeiro dos metais alcalinos. Seu número atômico é 3 e sua massa, 7, o que garante ao elemento um caráter leve, pouco denso, maleável e de fácil utilização. Apresenta apenas um elétron na sua camada externa (de valência) e está sempre disposto a “doá-lo” para outro átomo; características que tornam o Lítio reativo, inflamável e muito energético.

Pesquisadores ao redor do mundo estão em busca de outros elementos capazes de substituir os recursos fósseis para a produção de energia, entretanto, nenhum parece ser tão viável quanto o Lítio.
Além disso, o mineral apresenta outras funcionalidades que atraem investidores. Ele compõe medicamentos para depressão e bipolaridade, está presente em marca-passos cardíacos, é tratado para a fabricação de telescópios e de lubrificantes para máquinas. Quando ligado com o alumínio, ele ainda é utilizado na construção de aviões e comboios de alta velocidade. Quanto mais estudado, mais cobiçado.
Acordos internacionais que incentivam a redução das emissões de carbono impulsionam a introdução do Lítio na economia global. Esses tratados buscam substituir o petróleo na produção e estocagem de energia, recurso que libera gases do efeito estufa (como o CO2) e agrava o aquecimento global.
A alternativa mais conhecida para mitigar esse problema é a fabricação de energia limpa por via eólica ou solar. Entretanto, diferente do que ocorre com o mineral, a disponibilidade da matéria prima para esses processos é oscilante e depende de muito armazenamento. Nos dias de ventos ou incidência solar intensos, é preciso guardar a energia produzida pois, em outro momento, esses recursos podem estar escassos.
Outro fator que explica o protagonismo do Lítio é a evolução das tecnologias e a demanda por baterias independentes. Quanto mais computadores e celulares são utilizados, mais energia eles gastam, o que aumenta a demanda por aparelhos com bateria mais duradoura. A população busca cargas cada vez mais eficientes, que permitam mais mobilidade e menos tempo de carregamento.
Onde está o Lítio?
Chamada de Triângulo do Lítio, o local de maior abundância na América Latina inclui territórios da Argentina, da Bolívia e do Chile. A região está em posição estratégica, pois foi formada em ambientes desérticos e afastados dos centros urbanos, como o Atacama. Além disso, não há muitos conflitos iminentes, como a guerra no Oriente Médio que dificulta a extração do petróleo.
Os pesquisadores Ana Klara Fróes e Luciano Duarte, mestranda e professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) concederam entrevista para o Laboratório. “Nenhuma fonte é substituída por acabar, mas porque se encontra uma alternativa melhor”, explica Duarte. Ele acrescenta que há interesses econômicos em torno da corrida pelo lítio que excedem as preocupações ambientais.
A extração do Lítio é uma atividade politicamente conveniente: segundo os pesquisadores, o ambiente encontrado na América é favorável à extração, devido à facilidade de instalação das empresas privadas e de circulação do capital internacional.
O fenômeno instaura um novo circuito global de produção, que requer infraestrutura de escoamento e parcerias estatais. Os investimentos da China em ferrovias na região são um exemplo: é uma tentativa de centralizar o transporte do mineral nas construtoras e transportadoras chinesas. “A Rota Bioceânica recém discutida é um projeto guiado por essa ideologia”, diz Ana Klara.
“Ouro Branco”: características e extração
A geologia explica a abundância do Lítio na região do ABC. O metal é encontrado em salares, que são planícies secas cobertas por sal e outros minerais, como o Li. Elas surgem pois a água de chuvas ou dos rios se acumula em bacias endorreicas, depressões geográficas onde não há escoamento para o mar, ao longo de milhares de anos. Isso faz com que a água evapore no local, devido também ao clima quente da região.
Com a evaporação, os minerais sólidos e a água líquida são separados. Dessa forma, esses elementos permanecem no solo e, conforme o passar do tempo, são absorvidos. É criada, enfim, uma crosta branca no chão, repleta de elementos químicos.

A extração do lítio no método tradicional, por salmouras, é simples comparada a outras formas de mineração: perfura-se o solo até atingir camadas abaixo dos aquíferos subterrâneos; delas, é extraída a salmoura, que é bombeada para tanques abertos e deixada para evaporar.
Assim, a água é separada dos minerais, incluindo o lítio, que são levados a uma refinaria. Cientistas têm estudado formas mais eficientes de realizar o processo, mas o método tradicional prevalece na América Latina.
Ao todo, somam-se cerca de 15 salares no bloco geográfico. O território total deles contém mais de 50% de todo o Lítio no planeta: a Bolívia abriga a maior reserva, o salar de Uyuni em Potosí, o mais explorado até hoje devido a sua extensão. O país também conta com outro, menos explorado, localizado em Coipasa.
A Argentina tem muitos salares menores, mas relevantes. São exemplos o Salar del Hombre Muerto, em Catamarca, e, em Jujuy, os salares Olaroz e Cauchari. No Chile, se destaca o Salar do Atacama.
Cada um dos países do ABC do Lítio têm legislações diferentes para a capitalização do recurso. Segundo Ana Klara, o passado colonial e extrativista da América Latina tem diferentes impactos nas medidas adotadas por cada Estado.
A Argentina adota uma política neoliberal, que permite abertura total para o investimento estrangeiro. Empresas privadas podem livremente se instalar nos salares argentinos, mas dada a organização provincial autônoma, os estados do país variam a legislação acerca da extração do Li: não há regra federal, soberana, quanto ao assunto.
A Bolívia, por outro lado, tem postura mais protecionista e procurou embargar o mineral no país até que se pudesse torná-lo manufaturado internamente, e não obteve relevante êxito até o momento. Seu governo, alinhado à esquerda e às causas indígenas, busca maneiras de reduzir os impactos do capital estrangeiro. Devido a esses embargos, cada vez mais fracos, muito do Lítio na região ainda não foi explorado.
O Chile, por fim, tem tradição mineradora desde o Cobre e se mantém cuidadoso, realizando uma extração planejada e dividida entre o estatal e o privado. Sua infraestrutura é mais adaptada, e não haverá tantas mudanças no território do país em função do lítio.
O restante dos envolvidos, por outro lado, implantarão estruturas novas para as empresas, como estradas, ferrovias, rede elétrica e de comunicações que levam aos desertos.

Contradições: fatores socioambientais
Outras alterações socioeconômicas são esperadas com o crescimento da extração do Lítio. Cientistas estudam as implicações desse novo circuito nas comunidades locais e na biodiversidade.
Empresas interessadas em explorar o ABC do Lítio afirmam que a instalação das mineradoras será responsável por gerar empregos e desenvolvimento para a população. Porém, Ana Klara aponta que pesquisas recentes indicam o contrário: “A chegada dessas empresas está causando a migração dessas comunidades”.
De acordo com a pesquisadora, os impactos atingem diversas “camadas” socioambientais. “Os recursos hídricos são escassos, a região é considerada muito seca, mas há um ciclo natural da água que as comunidades se adaptam e é suficiente para elas. O conglomerado industrial, então, chega e esgota esses recursos: o bombeamento das salmouras e o mantimento da nova estrutura requerem muita água, que antes abastecia o povo”.
Falhas geológicas também fomentam preocupações. A mineração por bombeamento perfura o solo das salmouras e, como consequência, desestabiliza as camadas mais profundas da crosta. Esse fenômeno atinge os aquíferos, que estimulam as rochas e instigam falhas geológicas. Ana Klara afirma que há regiões do Atacama que estão cedendo e afundando.
A chegada de um ciclo de produção implica na ocupação de grandes territórios e na chegada de novas pessoas, que consomem o espaço e os recursos utilizados por povos locais para a sua subsistência. “Poluição sonora e do ar; seca constante nos aquíferos da região; retirada de terras, de água. Emissões atmosféricas, resíduos químicos usados a céu aberto”, exemplifica Fróes sobre o cenário do Triângulo do Lítio ocupado pela indústria.
O processo de extração do lítio ainda utiliza combustíveis fósseis para motorizar a produção e ativar as bombas. A pesquisadora cita que o transporte e a utilização dos resíduos químicos também levam à evaporação dessas substâncias, que alcançam a atmosfera.
“Além disso, é muito caro retirar todo o lixo produzido pela extração e transportar para algum local de descarte correto; ele tem sido deixado no deserto. Atacama hoje é considerado um deserto de lixo”, afirma. Esse fenômeno afeta o solo e a biodiversidade locais.
Comunidades tradicionais persistem se manifestando contra a chegada. Mas cada país do Triângulo tem políticas diferentes em relação a essas pessoas. A Bolívia tem uma constituição federal plurinacional, que reconhece as populações indígenas e incorpora a natureza como Ente de direito, fator que abre margem para a defesa dessas pessoas e do ambiente. Já a Argentina não reconhece esses povos como parte da nação, e não tem leis federais relevantes de proteção a eles.
Porque o Lítio é considerado uma alternativa para a energia limpa?
A redução de emissões carbônicas é peça chave na discussão. Acordos como o de Paris, realizado em 2015, buscam a substituição da matéria prima fóssil a fim de reduzir o aquecimento global.
“O lítio é alternativa por ser uma escolha política. Como estamos em um contexto capitalista e de busca pelo crescimento econômico, não se pode ter uma transição energética que vá contra essa tendência de lucratividade.”, afirma Luciano Duarte.
Eles afirmam que trata-se apenas de uma ‘transição de impactos’. “Como está exaurindo os recursos antigos, procura-se novos espaços de expansão. Percebeu-se que o lítio era uma fronteira ainda não explorada, com reservas não exploradas. E com menor resistência a extração nessas áreas”, finaliza o professor.

Futuro: análise dos próximos passos
Em análise, os pesquisadores Duarte e Fróes são pessimistas sobre o futuro socioeconômico da América Latina, pois o bloco tende a reproduzir padrões coloniais e extrativistas. Isto é, eles acreditam que a América Latina manterá o lítio em condição de commodity e dependente da exploração estrangeira.
Quanto ao futuro da questão ambiental, estudos atuais tentam são feitos atualmente para prever e dimensionar o impacto do lítio ao longo dos anos. Em entrevista para o Laboratório, Beatriz Carneiro esclarece o que já se sabe sobre o assunto.
Engenheira ambiental pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Sustentabilidade e Economia Circular pela Graz University, na Áustria, a pesquisadora indica formas de mensurar o impacto futuro dessa atividade mineradora: “Para se estimar o impacto potencial futuro, uma das formas é mapear as reservas de lítio existentes no Brasil, por exemplo, e fazer análises espaciais com imagem das regiões no entorno dessas reservas. Estudos anteriores mostram que até 70km ao entorno de uma mina há risco de desmatamento indireto devido a abertura de estradas ou expansão da linha de transmissão de energia elétrica, por exemplo”.
Políticas estatais podem ser adotadas para minimizar o efeito da atividade mineradora nas comunidades locais. “[Uma das possibilidades é] fazer um planejamento estratégico para autorização da abertura de novas minas, considerando regiões sensíveis no entorno; evitando regiões sociobiodiversas”, explica Beatriz.
Ela complementa que é preciso ouvir as comunidades locais para traçar, em conjunto, a melhor localidade para a mina, e construir medidas para reduzir ao máximo o impacto local. Algumas dessas medidas são investimentos no reuso e na reciclagem do lítio utilizado nas baterias; além de esforços para redução do consumo de energia para minimizar a demanda para mais mineração.
