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Do abandono ao abuso: a vida nas prisões femininas brasileiras

Violência e insalubridade revelam o descumprimento de direitos humanos em presídios femininos
Por Gabriella dos Santos (gabriella.santos12@usp.br)

Falta de acesso à saúde, superlotação, insalubridade, violência e abandono familiar. Esses são alguns dos desafios enfrentados por mais de 29 mil mulheres encarceradas no sistema prisional brasileiro. Torturas e outras quebras de direitos humanos também foram relatadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) durante inspeções em penitenciárias de todo o país.

Ainda que o número de mulheres encarceradas seja consideravelmente menor em relação ao número de presos do gênero masculino, o Brasil entrou para o pódio da World Female Imprisonment List (Lista Mundial de Prisões Femininas, em português). Com a terceira maior população feminina do mundo em 2023, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Esta lista, publicada pelo Instituto de Pesquisa em Políticas de Crime e Justiça (ICPR, na sigla em inglês) da Universidade de Londres, revela ainda que o número de mulheres presas aumentou cinco vezes desde os anos 2000. De acordo com a professora associada de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux, o aumento do encarceramento feminino nos últimos 25 anos pode ser explicado pelo crescimento do aprisionamento por tráfico de drogas.

A advogada também avalia que esse tipo de crime entre mulheres é praticado , principalmente, por necessidades econômicas. “A maioria dessas mulheres são negras, mães, residentes de favelas ou periferias urbanas e que sustentam a sua família. Elas não têm acesso ao emprego formal e muitas vezes não têm uma escolaridade alta. Portanto, para sustentar seus filhos, elas vão buscar outros meios, como o tráfico ilícito”, analisa Luciana.

fotografia de presídios femininos
Atrás das grades, a maioria das mulheres são negras, pobres e periféricas [Imagem: Reprodução/Agência Brasil]

Segundo os dados apresentados pela Secretaria de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad) em 2023, a incidência penal, isto é,  a frequência e os padrões, de encarceramento de mulheres por tráfico de drogas é de 54%, contra 27% dos homens, índice que impacta em aspectos como saúde feminina, maternidade e vínculos familiares.

“Outra forma também que muitas mulheres são presas é tentando ingressar com drogas em presídio, movidas muitas vezes para ajudar o seu companheiro que está encarcerado. É importante dizer que a maioria das mulheres presas por tráfico, não são grandes traficantes, são pequenas”, ressalta Luciana.

“Aos pobres a prisão, aos ricos o dinheiro.

Luciana Boiteux

Mais presas, menos dignidade

A população carcerária feminina é significativamente menor que a masculina. Entretanto, o relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostra que, entre 2005 e 2024, o encarceramento de mulheres aumentou 292%, enquanto a população masculina cresceu 158% durante o mesmo período.

Para a doutora Silvia Maria Santiago, médica sanitarista e professora de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp), a explosão populacional de mulheres no sistema prisional explica algumas das dificuldades enfrentadas pelas detentas. “A penitenciária era uma estrutura para receber detentos do sexo masculino. Então, em meados dos anos 2000, houve um aumento da criminalidade entre mulheres e [esses locais] não tinham estrutura para recebê-las. A partir disso, muitas penitenciárias foram transformadas em presídios femininos”, afirma a doutora.

A adoção dessa medida impede que especificidades femininas sejam consideradas pelo Estado. É o caso, por exemplo, da ausência de  lugares apropriados para visitas íntimas e gerais, além da falta de alojamentos conjuntos para gestantes, puérperas e lactantes, até que suas crianças sejam alocadas com a família. 

Dados mais recentes do Relatório de Informações Penais (Relipen) mostram que, de julho a dezembro de 2024, a população feminina privada de liberdade no Brasil somava 29.137 presas. Entre elas, 180 eram gestantes e 98 lactantes. O levantamento mostrava também que o país contava com apenas 58 dormitórios próprios para abrigá-las. Ainda segundo os dados, a  taxa de ocupação dos presídios femininos ultrapassa os 150%, o que significa que  existem mais mulheres presas do que o sistema pode receber.

Número de detentas por unidade federativa em 2024 [Gráfico: Gabriella dos Santos/Jornalismo Júnior]

Silvia Maria também atua como supervisora de estágio com alunos do quinto ano de medicina da Unicamp na Penitenciária de Campinas, a segunda maior do estado de São Paulo. Como médica, ela atende as detentas há mais de 20 anos realizando exames de pré-natal e acompanhamento durante a gestação. Como sanitarista,  chama a atenção para a superlotação no local em que trabalha há anos.

“Em 2013, fizemos um grande inquérito na penitenciária feminina de Campinas onde a capacidade era de, no máximo, 450 mulheres. Quando chegamos lá, era em torno de 1.300 [detentas] naquele espaço. Então, a instituição tinha três vezes a sua capacidade de acomodar pessoas”, pontua Silvia.

Direitos básicos negligenciados

Embora estigmatizadas e esquecidas pelo Estado, às mulheres encarceradas ainda estão amparadas  pela Constituição Federal de 1988, que estabelece direitos básicos  a todos os cidadãos, como acesso à saúde, higiene e alimentação de qualidade. Na prática, porém, essa não é a realidade dentro das unidades prisionais.

Durante as inspeções surpresas do MNPCT em São Paulo em 2023, foi denunciado pelo órgão situações como uniformes rasgados, toalhas e lençóis velhos, privação de visitas íntimas e ausência de alojamentos para gestantes. Outro dado alarmante revelado no relatório do inquérito é a média de investimento para três refeições das detentas, que é de R$ 8,00 por dia. No dia da investigação, as marmitas contavam com arroz, feijão e salsicha, em pouca quantidade e ainda menor teor nutricional.

Falta de higiene e superlotação em presídios femininos revelam quebra de direitos humanos [Imagem: Reprodução/ Flickr]

A higiene das celas e das próprias detentas é outro desafio enfrentado pelas mulheres encarceradas. “Faltam materiais básicos de limpeza  e higiene, como por exemplo papel higiênico, sabonete e absorventes. Então, muitas vezes a gente tinha que improvisar para manter a limpeza”, relata Helen Baum, mestre em Educação Social pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e ativista egressa do sistema prisional. 

Luciana Boiteux, responsabiliza a falta de investimento do Estado para suprir as necessidades higiênicas básicas como um dos principais fatores da insalubridade dos presídios. “As mulheres têm essas demandas especiais que deveriam ser supridas, mas o que vemos hoje é um Estado que quer prender muito e não quer investir. A prisão é uma das formas mais caras de punir”, afirma.

Desumanização no atendimento médico

A saúde feminina é um dos principais desafios das encarceradas e no que se refere a saúde das gestantes, o cenário é ainda pior. No Sistema Único de Saúde (SUS), o protocolo de pré-natal especifica a necessidade de, no mínimo, seis consultas médicas obrigatórias e prioritárias, exames de curva glicêmica, ultrassons e parto humanizado para todas as gestantes. No sistema prisional, no entanto, essa especificidade não condiz com a realidade.

Falta de acompanhamento, exames de prevenção e atendimento de emergência são denunciados por egressas. “A saúde era péssima. Se você passava mal, as demais detentas tinham que fazer barulho e gritar para receber o atendimento”, diz uma egressa, que preferiu não ser identificada. Ela passou três anos e cinco meses na Penitenciária de Santana e relata a dificuldade de acesso à saúde na instituição.

No relatório do MNPCT, o órgão se opõe veemente ao tratamento que é dado a mulheres grávidas e puérperas nas  instituições inspecionadas. “O MNPCT se coloca contrariamente à manutenção de mulheres ou meninas grávidas ou puérperas em privação de liberdade. Em todas as unidades em que havia presença desse público, observamos graves violações dos direitos das mulheres e dos bebês, conforme detalhado nos respectivos relatórios”, diz o documento.

“Não havia um cuidado ao levar a mulher grávida, gestante, aprisionada para o hospital. Os agentes esperavam muito para levar aquelas grávidas  e nós ouvimos relatos de duas mulheres que deram à luz dentro do Camburão”, expõe Luciana. O fato relatado ocorreu quando a advogada foi perita da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro.

A saúde mental nos  presídios também não é um tema discutido e tratado pelo Estado. Helen Baum denuncia que crises e doenças psicológicas não são uma preocupação dos funcionários. “Muitas mulheres tinham crises de ansiedade, depressão ou mesmo dores físicas. Elas não eram atendidas e nem sequer levadas a sério pelos funcionários”, diz.

A violência sofrida por agentes penitenciários também é um fator determinante para o agravamento da saúde psicológica dessas mulheres. Egressa do sistema prisional, Nêga Jô, como prefere ser identificada, relata  tratamentos violentos e desumanos por guardas da unidade prisional.

“Eles não tiram só a nossa liberdade, eles arrancam a nossa dignidade. Existem pouquíssimos agentes que nos tratam com um mínimo de respeito. A maioria age com abuso de poder, com indiferença e de forma humilhante”, acrescenta Helen.

“O sistema penal não foi feito para ressocializar, ele foi feito para estigmatizar, para punir como uma forma de vingança.”

Luciana Boiteux

Afeto negado pelo sistema prisional

Além dos riscos de falta de acesso à saúde, o cárcere também impede a manutenção dos vínculos afetivos entre as detentas e seus familiares. Muitas vezes, as ingressas são mães solo e chefes de família e, ao serem encarceradas, são separadas de seus filhos e abandonadas por familiares.

Para Silvia Maria, o abandono que a mulher encarcerada sofre está diretamente relacionado ao machismo estrutural da sociedade. Quando um homem é encarcerado, é comum haver grandes filas para visitação em presídios e até vídeos na internet de mulheres montando o chamado “jumbo”, kits com refeições para serem entregues aos seus parceiros privados de liberdade. Quando se trata da mulher, esses registros ficam cada vez mais raros.

“Eu vejo que o abandono da mulher na sociedade, principalmente da mulher mais pobre, vai se refletir depois no encarceramento. É sabido que as mulheres, diferentemente da população masculina, é muito abandonada e ainda mais quando sofre o encarceramento”, pontua Silvia.

Segundo dados levantados pelo Relatório de Informações Penais (Relipen) no segundo semestre de 2024, o número de visitas para presos do sexo masculino foi consideravelmente maior em todo o país. O estado que mais registrou visitas para detentos foi São Paulo, que contabilizou mais de 297 mil visitas. Enquanto no estado do Amapá, na região norte do país, não foi registrada nenhuma visita nos últimos seis meses de 2024. 

número de visitas aos presídios femininos e masculinos no Brasil de julho a dezembro de 2024
Número de presos que receberam visitas [Gráfico: Gabriella dos Santos/ Jornalismo Júnior]

A ativista Helen Baum afirma que esse dado se explica devido ao tratamento violento dado aos familiares e visitantes das detentas nas  penitenciárias. Segundo ela, os visitantes passam por revistas vexatórias realizadas pelos guardas, o que faz com que as visitas diminuam cada vez mais. “Eu acredito que seja uma forma proposital para que não haja visitas mesmo”, diz.

“As grades e os muros são físicos e simbólicos, porque aprisionam também nossos projetos de vida.”

Helen Baum

Vida após o cárcere

Fora do sistema prisional, a realidade das mulheres egressas ainda se mostra repleta de desafios. Segundo a Lei de Execução Penal, o Estado é obrigado a disponibilizar assistência educacional a pessoas privadas de liberdade, entretanto o número de participantes desses projetos ainda é muito pequeno. 

Helen Baum ingressou no sistema prisional em 2013 e hoje atua como ativista de direitos humanos, educadora social no Núcleo Memórias Carandiru e pesquisadora do Instituto Rino Educação, voltado para o ensino de inclusão e cidadania no estado de São Paulo. 

Iniciativas como o Libertas, formada por mulheres que superaram o encarceramento e encontraram uma oportunidade de recomeçar, e a Coostafe, cooperativa em Belém que é considerada o maior projeto de reinserção do Brasil, são exemplos que têm mostrado resultados positivos na reinserção dessas mulheres. 

Além de projetos que auxiliem a ressocialização das mulheres egressas na sociedade, Luciana Boiteux acredita que é necessário a efetivação de políticas que previnam que elas ingressem no sistema prisional. “Se essas mulheres tivessem uma condição de sustento e acesso a políticas públicas que garantam um emprego minimamente razoável para pagar suas contas, elas não estariam disponíveis ou acessíveis para esse comércio ilícito”, afirma.

1 comentário em “Do abandono ao abuso: a vida nas prisões femininas brasileiras”

  1. Muito necessário esse tipo de reportagem.em todos os lugares tem mulheres que precisam espor uma realidade desconhecida do povo. Mais conhecimento menos descriminalização.

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