Por André Romani
O futebol brasileiro sempre se mostrou diferente em relação ao resto do mundo, mais solto, alegre e ousado do que o praticado fora de terras tupiniquins. Isso tem total relação com a personalidade de nossos craques. De Mané Garrincha a Ronaldinho Gaúcho, não faltaram personagens aos nossos campos, que abusavam tanto dos adversários, quanto nas particularidades fora deles, principalmente em relação a farra. Porém nenhum desses chega perto do pitoresco Sócrates – nome que veio do pai, leitor nato e amante de filosofia – o craque, político, artista, médico e acima de tudo boêmio, alvo dessa biografia de Tom Cardoso.
E é assim de forma bem suave, que vamos nos encontrando em bares europeus e tupiniquins, enquanto conhecemos as histórias do Magrão, seja na capital paulista, em Florença, no Rio ou em Ribeirão Preto. Como em uma conversa de boteco, Tom nos conduz por histórias deliciosas desde o começo do livro, que, já introduzem a personalidade do jogador para aqueles que não o conhecem, e fazem aquele sorriso bobo nostálgico sair do rosto daqueles que já são familiarizados com o meio campista, saudosos desses personagens espontâneos do esporte mais amado do país.
O Doutor tinha o coração dividido. Não fora poucas as vezes em que ele diria que jamais jogaria futebol para finalmente se dedicar a medicina, ou que deixou esta última para voltar aos campos, nem que fosse como técnico. O pai, Seu Raimundo, só permitiu que o filho se tornasse jogador, após este conseguir seu diploma de Medicina. Sócrates, mais tarde, completou sua residência, transformando o pequeno hospital da Ilha da Fundão, e praticamente se instalando onde os médicos ficavam para ’’ tomar uma’’ entre ou depois do expediente
Sócrates nasceu santista, mas não é exagero dizer que o clube de seu coração é outro. Apesar de na infância e na adolescência, como todo o Mundo, ter se encantado pelo time de Pelé, foi no Corinthians, o time do povo, que o democrata, no melhor sentido da palavra, virou ídolo. Afinal, como cantava a torcida: ‘’Doutor eu não me engano, seu coração é corinthiano’’. Ele já impressionava em Ribeirão Preto, com um estilo cadenciado de jogo, muito por causa de seu condicionamento físico, ou a falta dele. Até na hora de comemorar os gols ele era contido, e essa forma totalmente não corinthiana de demonstrar paixão e vontade, é alvo de muitas histórias no caminho do Doutor em conquistar de vez a fiel. ‘’Onde já se viu não dar carrinho, não mudar seu estilo de acordo com o resultado, não dar arrancada e não comemorar no alambrado?’’, bradavam os torcedores do timão.
Porém, sua passagem pelo alvinegro teve também uma importância política muito grande. Pelas vozes de Wladimir, Casagrande e outros amigos, ficamos sabendo da formação, do funcionamento, dos bastidores, e dos inimigos da Democracia Corinthiana. Em meio a ditadura, pensar que diversas decisões dentro de um clube de futebol eram tomadas de forma democrática, com massagistas, comissão técnica e jogadores, com o mesmo poder de voto, é algo incrível. O movimento que transcendeu os campos, atraindo admiradores, também teve seus líderes presentes no movimento Diretas Já. Esse teor político foi visto no jogador em todos os clubes pelos quais passou, movimentando desde cidades do interior do Rio às européias, batendo de frente com cristãos conservadores italianos e políticos brasileiros. É irônico perceber, no entanto, como muitos nomes da política da época continuam comandando o cenário nacional, e melancólico constatar que boa parte das pautas do movimento, não seguiram com o tempo, como o fim das concentrações, por exemplo.
Apesar de no prefácio ser dito que o livro contará a história do Doutor muito além dos campos, é perceptível como a biografia é do jogador de futebol Sócrates e não do homem como um todo. Em alguns momentos, como em sua passagem pelo o Flamengo, ou em sua curta vida como técnico, a leitura fica um pouco arrastada. Além disso, residência como médico e os últimos 15 anos de vida do craque, em que atuou como comentarista, apresentador, diretor e etc, são colocados todos de forma muito sucinta nos últimos capítulos, deixando o leitor, faminto por mais histórias dessa fase da vida do Doutor. A relação com irmão, o jogador Raí, também está muito compacta.
Porém, as resenhas antes das Copas do Mundo, principalmente em relação a de 82, já valem a leitura. Dita por muitos como o melhor time da história, a decepção de perder aquele torneio permanece no imaginário de todos que viram aquele esquadrão jogar. Saber como eram os treinos, os bastidores, a concentração e especialmente a dedicação fora do comum do Doutor para disputar aquele campeonato, são como ouro para os amantes de futebol. A Copa de México em 86, também revela grandes histórias, que ocorrem, em sua maioria, porém, nos bastidores relacionadas à política.
Outro grande ponto do livro é a desmitificação do personagem. Sócrates aqui é uma pessoa comum, com erros e acertos. Existe o costume da mídia de colocar os craques do futebol em um patamar quase olímpico. Aqui, porém, isso não ocorre. Em diversos momentos do livro Magrão mostra condutas no mínimo arrogantes, como quando deixou de dar o ponta pé inicial em um jogo beneficente, por estar cansado, ao qual tinha tinha se comprometido a ir. Essas passagens, de certo modo, humanizam o personagem e trazem uma maior verossimilhança a biografia, algo que apesar de parecer redundante nem sempre ocorre no gênero.
Magrão aproveitou a vida. Seu fascínio pela cerveja e pelo cigarro rende ótimos contos, como quando colocou várias ‘’geladas’’ no freezer do vestiário, que serviria para guardar o gelo para as lesões dos jogadores, fazendo com que o massagista de seu time tivesse que pedir emprestado ao adversário depois. Além disso, ele se mostrou muito passional. São muitas as vezes em que Sócrates larga algum compromisso por causa da saudade das namoradas, ou simples convicção. Porém, se esses vícios não o atingiram a curto prazo – ele era o primeiro a chegar no bar, o último a sair e ainda voltava a pé pra casa – com certeza o fizeram a longo.
O espírito hedonista de vida que o jogador levou sua vida toda, chega a ser invejável. Contudo, as últimas páginas carregadas de sofrimento, projetos inacabados e familiares deixados, nos levam a pensar da mesma forma que seus críticos: ‘’O que ele poderia ter sido, em todos os aspectos, se tivesse se cuidado mais?”. Acho que a resposta Tom deixa no próprio livro, mais precisamente ao próprio Sócrates: ‘’Se tivesse me dedicado mais, não seria uma pessoa tão completa como sou agora’’.