Humanos Exemplares (Companhia das Letras, 2022) é o novo romance de Juliana Leite. A autora coleciona prêmios e saudações desde seu romance de estreia, Entre as mãos (Grupo Editorial Record, 2018), entre eles o prêmio Sesc e APCA.
Em Humanos Exemplares, conhecemos a personagem Natalia, uma idosa que vive sozinha em seu apartamento no Rio de Janeiro. Aposentada e viúva, o ponto alto dos dias de Natalia é receber a ligação de sua filha que mora no exterior, uma das poucas pessoas em sua vida que ainda não “desapareceram”. Enquanto aguarda o contato da filha dia após dia, ela recorre às suas memórias de vida, de juventude e de sua família, mesclando-as com situações do presente.
Pela vida de Natalia já passaram inúmeras pessoas: amigos, colegas de trabalho e vizinhos que desapareceram antes dela. Em seus devaneios, a idosa chega a conclusão de que, se desaparecer era algo que todos faziam, assim devia acontecer com ela também. No entanto, sua hora demora a chegar, e a solidão da personagem em meio a esse anseio dá início a uma reflexão sobre o significado da morte e, diante de sua aproximação inegável, a utilidade da vida.
A personagem principal tem sempre a necessidade de questionar seus pensamentos e desejos enquanto alguém que está sozinha no mundo, isolada dele e sem referências. O que ela pode ou não fazer? O que é adequado a uma velha como ela? Estaria sendo vigiada por alguém que não confia na existência solitária de uma idosa em tão avançada idade? Por trás de tantas camadas, o livro traz uma nova visão sobre o envelhecer, e desintegra o senso comum que o associa à sabedoria, à segurança e à experiência.
A escrita de Juliana Leite se torna um ponto essencial para a construção dessa narrativa memorial: a escrita ansiosa por essência, com excesso de vírgulas, anacolutos e explicações entre as frases nos coloca frente à mente da protagonista, como se pudéssemos lê-la. Além disso, a descrição de sensações, sentimentos e pensamentos dos personagens é feita de forma crua e orgânica, em alguns momentos até se aproximando da animalidade naturalista.
Dentro das memórias da personagem, a primeira viagem que o livro conduz é para a juventude de Natalia, quando esta se torna professora e conhece o homem com o qual irá casar-se e viver até o fim da vida: Vicente, que também era um jovem professor e viveu um doce e intenso amor com Natalia. O fruto desse romance é a filha, identificada apenas como “a filha que mora no oceano superior”.
A vida da pequena família é envolta de vários sofrimentos como a saúde frágil da menina e aquele que pode ser identificado como o drama central do livro, vivido diretamente por Vicente e Natalia: as memórias da ditadura brasileira e a perseguição aos educadores, os impactos do encarceramento para a relação familiar e a perspectiva infantil sobre a ausência paterna na infância, causada por esse distanciamento forçado.
“Aqueles humanos tinham sobrevivido aos esconderijos, mas nada disso se parecia com um triunfo, e sim com uma sobrevivência do tipo quebradiça, estreita, arenosa.”
– Trecho do capítulo 5 de Humanos Exemplares
Viagens, passeios e refeições fazem também parte da coleção de memórias da pequena família. Há um contraste das memórias rotineiras que Juliana Leite apresenta com as impressões dos personagens, que parecem sempre inadequadas e desajustadas em relação ao que vivem. Nessas partes, percebe-se um questionamento direto sobre a humanidade dos personagens. O livro apresenta o conceito de humanos “simples”, sendo aqueles que encontram a alegria e falam sobre seus sentimentos, ao contrário de humanos como Natalia, Vicente e a filha.
Apesar do grande destaque às perseguições da ditadura e às cicatrizes deixadas, o livro não é monotemático. Encontrar um propósito único para ele é, talvez, a maior dificuldade na leitura, já que atravessa inúmeros temas, ainda que com poucas linhas, o que nos oferece diferentes reflexões ao longo do livro. Por esse mesmo motivo, é uma história que exige uma leitura atenta, calma e, por isso, pode levar tempo.
Diante de tantos temas, é possível destacar três como os mais essenciais para apreciar Humanos Exemplares da melhor maneira: o confronto com a existência material, anseio pela invisibilidade e a tentativa de escapar à normalidade. É uma obra de muita relevância e que incentiva o olhar para dentro de si, sem negar o que há de inglório e melancólico nesse processo.
*Imagem de capa: Divulgação/Companhia das Letras