Este filme faz parte da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para conferir a programação completa clique aqui
Ofegante, trôpego, febril.
Eis aí como Guilherme irrompe às escadarias duma Salvador escandalosamente quente. A princípio, talvez seja difícil tragar a ideia dum calor tão alucinante a ponto de carcomer consciências e fazer suar as estátuas de concreto do centro. Mas a película, o tempo inteiro, apela para que sejamos sensíveis em abstrai-la; para que consigamos escapar da agressividade simbólica de cada um de seus signos; e, se assim feito, nos retribui com uma obra disposta a ser completamente desbravada.
A despeito disso, a metáfora talvez tenha sido mesmo exposta de forma súbita demais; pois que causa estranhamento, desconcerto, riso nervoso. Mas, irreversivelmente, ela atravessa a obra inteira de Daniel Lisboa. Ora sob a forma dum sol opressor, é ela – a metáfora – a quem o filme se agarra profundamente, ao mesmo tempo em que a concretude da cidade e dos semblantes humanos o puxa de volta à superfície da verossimilhança.
Nesse confronto entre delírio e materialidade, a crise de Guilherme encontra um colo pra se deitar. Em verdade, não há muito para saber sobre ele – Guima, o poeta irrequieto, mal enfiado num apartamento claustrofóbico. “Sem salvação nem Salvador”, só o que importa é que ele sofrivelmente convulsiona, entre becos moribundos e cartões-postais, autodiagnosticado com a peste da ultraviolência solar.
“Que calor é esse que você sente, meu filho?”
Pergunta, então, a mãe do protagonista, a certa altura da trama. Como todas as demais personagens, também ela parece agoniar-se à beira do sufocamento. É isto: Guima sufoca. No chão, no limiar do orgasmo, nas reentrâncias mais identitárias da capital baiana, o poeta desconjuntado apenas padece oprimido pelo abafamento de sua própria existência, ao tempo em que é também impotente para fazê-la esfriar.
Guilherme carece por isso – conclui ele próprio – dum ar-condicionado craniano. Duma redenção para dar fim à quentura que o consome por dentro. Aqui, outra vez, a simbologia é propositadamente impiedosa; e a impossibilidade de recuperar, por peripécias várias, o ar-condicionado quebrado em seu quarto é a razão [aparentemente simples, mas de novo metafórica] que mobiliza os infortúnios da narrativa.
Resta, então, o rombo deixado pela máquina obsoleta. À parede do poeta, o buraco se arregaça num feixe insuportável de luz, a qual rasgará Guilherme nas carnes, revelando que o verdadeiro protagonista da película é mesmo o Sol, não raras vezes alcunhado de “astro-rei” pelo texto da obra.
Contradizendo essa áurea entorpecida, quase apocalíptica, os planos dedicados aos cenários duma Salvador serena – belíssima – consolam a angústia do filme e acalentam os olhos de quem vê. Então, ao meio da coisa, talvez esperássemos que a cidade caísse em chamas, ateada sob o mesmo fogo que oprime Guilherme. Não se pode dizê-lo; nem tampouco importa. No fim das contas, a única pergunta a ser respondida é: E nós, do outro lado da tela? Queimaremos?