por Heloísa Iaconis
helo.iaconis@hotmail.com
Este filme faz parte da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para conferir a programação completa clique aqui
Data de validade: dois anos. Trata-se de uma bebida? Não. Uma comida? Resposta negativa. Desistiu? Pense um pouco, vai… Quer umas dicas? Matéria-prima de belas músicas, causa de noites sem dormir, elemento de poesias, novelas e da maioria (amém!) dos seres humanos. Sabe, uma coisinha que leva a pessoa do céu ao inferno, com clichês e frases prontas, em dois tempos. Mexe, remexe no peito, dói, acalma e, às vezes, parece eterno. Suspira: ah, o amor… Respira. Mas, as estações mudam, “o pra sempre sempre acaba” e, acredite, não é só Legião Urbana e Cássia Eller que cantam essa mensagem. Bem antes, Nelson Rodrigues já espalhava o recado: dois anos é o período limite para o amor. E, através de uma película baseada na obra do escritor pernambucano, o aviso é materializado: Ninguém ama ninguém… por mais de dois anos (2015), filme de Clovis Mello, revolve, com descontração suficiente, o balaio das relações amorosas, indo da sedução à traição consumada, temperado por um humor fino. Vale aqui uma observação: nada de alimentar o “complexo de vira-lata” dentro de si. No mínimo, é deselegante dar asas ao narciso às avessas, ainda mais frente a uma leitura do criador da expressão. Não fique de costas para o cinema nacional. Cachorro só é aceito na trama, em prol de uns bons risos frouxos. Combinado?
Cinco casais constituem a teia do enredo, o qual é quase um slogan de liquidação: compre o ingresso para uma história, leve cinco. Os (a priori) pombinhos vivem em solo tupiniquim no início da década de 1960. No âmbito de uma sociedade conservadora, os personagens são tidos como convencionais. Porém, na esfera íntima, o moralismo é posto de lado e cede lugar às insatisfações e aos desejos pulsantes. Caretice e quadradismo não são protagonistas no meio privado, segmento no qual a liberdade baila. Tac-tac… Tac-tac-tac… Máquina de escrever batendo anuncia que o longa começou. Eis, então, que, por cerca de uma hora e meia, o público pode acompanhar os quiproquós de um bocado de corações selvagens. Raimundo, Asdrúbal, Terezinha, Euzébio, Orozimbo, Elvira, Leocádio, Jandira, Juventino e mais alguns são os donos desses corações. Além do mote fílmico, o bar do Epitácio, de alguma maneira, amarra as micro histórias, configura-se como um ponto de encontro. O point, inclusive, recebeu a ilustre presença de Juscelino Kubitschek (será?).
Como ação para promover o filme, a máquina de escrever de Nelson Rodrigues, modelo Remington Portable Model 5T, utilizada por ele entre 1940 e 1960, ficará exposta na Livraria da Vila (unidade Fradique Coutinho), em São Paulo, de 31 de outubro a 31 de novembro. Clique aqui para mais informações.
Em cada caso, há aquele que traiu e quem foi traído. Todavia, o desenrolar dos acontecimentos não cai na mesmice, a repetição simples do óbvio não tem vez e surpresas são pontos altos do filme. Guarde o conselho: não ache que já sabe o que acontecerá nas cenas seguintes. Alguns palpites podem até estar certos, mas não se acostume. Acomodação não é a palavra. Não ocorrem as mortes de todos os que pularam a cerca. Nem todas as armas atiram. O homem obediente explode quando menos se espera e foge. A mulher ousada não recebe um “castigo”. O rapaz-coelho é canalha e ganha um troco inesperado. O amante de terça é o traído na quinta-feira. Determinada coroa de flores revela um segredo no meio de um velório. O senhor certinho, que não andava fora dos trilhos, puxa uma faca no fim. Quebras de expectativas são o carro chefe de uma comédia leve, a qual discute a infidelidade conjugal sem carregar nos tons. Tema que tanto é abordado, apresenta-se com construções não usuais. Captura-se o cotidiano de pares que, em um primeiro momento, não possuem nada fora do comum. Filhos, trabalho, preocupação com o preço do remédio necessário, aluguel atrasado, emprego que não chega, comentário sobre Mengão e Bacalhau (Flamengo X Vasco). Situações-detalhes que posicionam as figuras retratadas ao rés-do-chão. No entanto, os laços matrimoniais balançam: uma das partes cansa do corriqueiro, a rotina amorosa clama por galopes e, com isso, tem-se o argumento cinematográfico e a deixa para prosear sobre a fragilidade do amor.
A fotografia, assinada por Marcelo Brasil, porta beleza. Cenários, figurinos, pequenos objetos e falas elaboram uma boa contextualização temporal. Nelson Rodrigues Filho acompanha Raul Doria na função de produtor. A história zomba da letra de Only You, canção tocada em dada sequência, e tal contraposição irônica é um dos exemplos do humor presente na película. Sem carnavalização ou caricaturas esdrúxulas. Somente você? Apenas na composição ritmada. Na vida real, só por dois anos. Carinhoso é cantarolada pela moça nua: “vem, vem, vem” e o homem casado vai. Gabriela Duarte, Marcelo Faria, Ernani Moraes, entre outros, integram o elenco afinado. Luana Piovani faz uma participação especial. Os vocábulos “que comédia!” devem ser aplicados no melhor sentido ao se tratar do longa em questão.
(Três parênteses, por favor)
No filme, há três pormenores que, talvez, passem de relance aos espectadores desatentos. Contudo, essas colocações fazem a diferença, visto que os assuntos pincelados, com maior ou menor intensidade, são de extrema importância. Os tópicos: nudez, infidelidade feminina e relação patrão-empregado.
Diferente dos outros aspectos, a nudez está mais ligada à estética da película, ao tratamento cênico. “Amor sem sexo é amizade”, já dizia Rita Lee. Portanto, ao lidar com traição conjugal, não se espera que o longa apresente freiras rezando, não é? Brincadeiras à parte, as sequências sensuais, que envolvem nudez, são de bom gosto. O nu é tratado de forma natural, na medida certa. Passa longe do conservadorismo hipócrita e, concomitantemente, não beira ao excesso apelativo. A intimidade é contada sem falsos pudores, de um modo nada vulgar. Equilíbrio rege o barco. Invertendo um outro título de Nelson Rodrigues: nem toda a nudez não será castigada.
A infidelidade, na maioria dos casais dessa ficção, vem da mulher. O desejo de traição que emerge como uma revolta contra o marido machista. O revide que um esposo cafajeste mereceu. A ousadia de uma mulher não típica da época. A companheira que gosta de transar tanto quanto o homem. A obra não as olha como “pecadoras”, “vadias”; julgamentos morais não afetam o prisma das câmeras. Elvira (Gabriela Duarte) chama a atenção: ela toma as iniciativas amorosas e não se preocupa com a sua “reputação” perante à vizinhança fofoqueira.
Por fim, o elo entre patrão e funcionário também é desenhado. Asdrúbal e Raimundo possuem um chefe carente de educação. E como definir Terezinha? Uma madame rica, campeã em humilhar os empregados. Não contrata domésticas brancas por medo do marido a trair. Negras, em sua visão preconceituosa, tudo bem, posto que o esposo, crê a esnobe, não dormiria com elas. (Será?). Em sua casa, empregados não comem a mesma comida dos patrões. Relembre, pois, dos debates gerados por Que Horas Ela Volta? (2015) e reflita sobre posturas que, infelizmente, não foram deixadas na década de 60.
Infidelidade genética? Que saia justa!
Na semana em que Ninguém ama ninguém… por mais de dois anos participa da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o programa Saia Justa (GNT) discutiu sobre a chance da infidelidade ser motivada por fatores genéticos. A possibilidade foi exposta pela professora Lygia da Veiga Pereira (USP). Entretanto, mesmo nessa perspectiva, Lygia diz que o livre arbítrio ainda tem grande peso na decisão de trair ou não. A velha temática com novos ares, seja no cinema, na televisão ou na universidade. Quem nunca pensou ou passou por essa emboscada que atire o primeiro chifre. Clique aqui para conferir a matéria transmitida pela atração.
A falecida, a bonitinha (mas ordinária), a mulher do próximo, a menina sem estrela, a senhora dos afogados, a viúva (porém honesta)… E o sexo masculino então? Vestido de noiva e altar não garantem fidelidade. Ninguém ama ninguém… por mais de dois anos, a comédia que pode ser encarada como um drama para quem já foi traído, oferece ao espectador uma dose de risadas soltas, uma narrativa sagaz. Sem vulgaridade ou resquícios de hipocrisia, o filme é uma bela adaptação do escrito de Nelson Rodrigues. Com as pontas aparadas, a costura das traições não tem linhas sobrando: resulta em uma película encantadora. Que ela dure por mais de dois anos!
Veja o trailer do longa que estreia dia 12 de novembro no grande circuito:
https://www.youtube.com/watch?v=0nJOuIRwxLk
Ouça as palavras de Nelson Rodrigues Filho sobre a obra cinematográfica: