Por Mariana Daderio Ricci (mariana.ricci@usp.br)
Após seis anos, o Victoria’s Fashion Show retorna para um desfile diferente dos anteriores, que eram alvos de críticas pela falta de representatividade. No anúncio do comeback, a marca prometeu refletir nas passarelas sua essência atual agregada a “tudo aquilo que conhecemos e amamos — o glamour, a passarela, as asas e a atração musical”.
Mundialmente conhecida por seus desfiles e lingeries, Victoria’s Secret estruturou-se como um dos principais nomes da indústria de moda íntima feminina. Atualmente, a marca oscila entre uma gloriosa história de ascensão escrita no início deste século e uma dolorosa queda fruto de polêmicas que afloraram no final da última década.
Criada por Roy Raymond em 1977, a grife surgiu com o intuito de suprir necessidades masculinas. A ideia era criar um ambiente confortável para homens que queriam comprar roupas íntimas para suas esposas. As peças, por sua vez, deixaram de ser apenas “roupas de baixo” e tornaram-se lingeries sensuais, sem apelar ao erótico. A empresa fez grande sucesso vendendo artigos de luxo, mas diante de uma crise financeira, Roy vendeu a marca para a L Brands, uma das principais companhias de varejo da época.
O toque de sucesso de Wexner
Fundador da L Brands, Leslie “Les” Wexner nasceu em uma família de comerciantes. Em 1982, já com seu império de lojas de varejo sedimentado, viu na marca Victoria’s Secret uma oportunidade de expandir seu domínio.
Wexner popularizou a marca que até então era de luxo. A partir da lógica de varejo, o empresário transformou os produtos da Victoria’s Secret em itens presentes nos guarda-roupas da maioria das norte-americanas.
O estilo elegante e clássico da marca foi substituído por um ar sensual e apelativo. Encabeçado por Ed Razek, o novo projeto de marketing da empresa contava com catálogos e outdoors estampados com mulheres altas, magras e semi-nuas. Assim, a marca criada por homens e para homens ganhou mais uma camada de olhar masculino: a hiperssexualização do corpo da mulher.
A pesquisadora de comunicação e práticas de consumo Sabina Lovato explica que a noção social do corpo feminino é subjetiva e moldada para suprir as necessidades do sistema capitalista neoliberal por meio do consumo. Para ela, a Victoria’s Secret se apodera desta lógica e sustenta sua rede de venda a partir “de uma ordem normativa patriarcal que ainda controla as mulheres”.
Apesar desta estrutura, a marca ainda é considerada como inovadora para a época, segundo a estudiosa. Sabina atribui à Victoria’s Secret o pioneirismo quanto a produção e venda de artigos íntimos femininos de forma popular.
No início dos anos 2000, a cultura norte-americana era palco de um processo de retomada da sexualidade feminina. Produções cinematográficas como Sex and the City (1998-2004) e canções disruptivas como as da Beyoncé incentivavam mulheres a assumirem controle de suas próprias vidas. A Victoria’s Secret fez parte daquele cenário e, com as mudanças na moda íntima, passou a promover empoderamento e liberdade para suas consumidoras.
Juntos, Wexner e Ed Razek aproveitaram-se da onda cultural de retomada de sexualidade das mulheres daquele período e levaram Victoria’s Secret à sua “era de ouro”. Naquele momento, os desfiles ultrapassaram 12 milhões de espectadores e os lucros giravam na casa dos bilhões.
O nascimento das Angels
Em 1995, foi ao ar o primeiro desfile da grife. Tamanho sucesso, que as próximas apresentações nas passarelas ficaram conhecidas como “Victoria’s Secret Fashion Show”. Idealizados pelo diretor de marketing Razek, inauguraram um novo tipo de desfile: espetáculos com modelos que chamavam mais atenção do que a roupa que estavam vestindo. Para a grife, o desfile não era apenas uma forma de vender os produtos, mas o próprio produto.
“Quando você vê um desfile da Victoria’s Secret, tem um estilo específico de passarela que não é o padrão. Eles são muito mais caracterizados. [As modelos] andam, sorriem, mandam beijo, fazem pose”, aponta a modelo Larissa Battistin. Agenciada pela companhia Ford Models, Larissa já desfilou por três anos seguidos na São Paulo Fashion Week (SPFW). “As Angels apareciam mais do que roupas que os clientes queriam vender”, finaliza.
Angels é como são chamadas as modelos da marca Victoria’s Secret. Com corpos magros, cinturas finas e seios volumosos, elas posam e desfilam com grandes asas que combinam com a lingerie que vestem.
A empresa foi pioneira em levar modelos ao estrelato. Nos anos 2000, Naomi Campbell, Adriana Lima e Gisele Bündchen foram os grandes nomes revelados. Já em uma história recente da marca, nomes previamente conhecidos nas redes sociais foram escolhidos para trazer um novo público aos desfiles, a geração Z. Deste grupo, destacam-se as irmãs Gigi e Bella Hadid e Kendall Jenner, da família Kardashian-Jenner.
As Angels eram majoritariamente muito jovens e, por isso, atraíam um público específico de adolescentes e de jovens adultas, que nelas se inspiravam. Diante do sucesso na faixa etária, Victoria’s Secret criou uma segmentação da loja, chamada Pink, para atender esse grupo de meninas que compravam suas primeiras lingeries.
Sabina aponta as Angels como grandes influenciadoras do padrão estético hegemônico da época e ainda coloca: “Elas sempre foram parte de um mundo fantasioso. Era quase onírico o cenário que elas ocupavam em desfiles e campanhas”.
De Me Too a Jeffrey Epstein
Em 2017 popularizou-se o Me Too, movimento de combate e amparo às vítimas de assédio sexual em ambiente de trabalho. Ele foi o principal responsável por expor grandes figuras masculinas de poder na mídia, em especial em Hollywood, como o ex-produtor de filmes Harvey Weinstein.
A onda de denúncias, que surgiu dentro e fora das mídias sociais, também atingiu a Victoria’s Secret. Uma matéria publicada no The New York Times expôs uma série de acusações de modelos contra Ed Razek e outros executivos da marca.
Durante o Me Too, a internet foi tomada por acusações e cancelamentos de grandes executivos e empresas que se isentaram das acusações de assédio sexual. A Victoria’s Secret não saiu impune e logo outros pontos problemáticos da marca foram apontados. Entre eles, estava a hiperssexualização dos corpos de jovens meninas que posavam para a Pink, subdivisão da grife voltada à venda de produtos íntimos para adolescentes.
O Me Too foi responsável por vulnerabilizar a imagem da Victoria’s Secret, que viria a enfrentar momentos de instabilidade. O movimento mostrou o poder da internet no final da década de 2010: ou as marcas adaptavam-se a ela, ou eram engolidas por ela.
Já em 2019, o executivo e economista Jeffrey Epstein foi preso pela segunda vez sob a acusação de tráfico e abuso de jovens meninas. O escândalo que envolvia uma série de empresários e figuras de poder dos Estados Unidos e Europa: Epstein estava ligado a nomes como Bill Clinton, Donald Trump, Príncipe Andrew e Wexner.
A suspeita sobre o CEO da Victoria’s Secret surgiu pois Epstein foi funcionário e amigo íntimo de Wexner durante anos, sendo responsável por administrar sua fortuna. Tamanha proximidade fez com que se fosse questionada a real ligação entre os dois e se o dono da marca de lingeries não seria cúmplice do esquema de Epstein.
A minissérie documental Victoria’s Secret Angels and Demons (2022), dirigida por Matt Tyrnauer, traça a trajetória da empresa, desde sua ascensão à queda. Um dos pilares da produção é o detalhamento da ligação entre Epstein e Wexner. O documentário acusa que o economista usava propriedades fornecidas a ele pelo dono da L Brands para aliciar menores.
Em dado momento da produção, a ex-CEO da Victoria’s Secret Direct, Cindy Fedus-Fields, afirma que Epstein fingia ser recrutador de modelos da Victoria’s Secret para aliciar garotas na década de 90. Na época, uma das vítimas prestou queixa e Wexner apenas afirmou que aquela situação não iria se repetir.
A primeira prisão de Epstein ocorreu em 2006 sob a mesma acusação, mas a L Brands só cortou seus laços com o executivo em 2007. Em sua segunda prisão, Wexner veio a público para afirmar que não tinha ligação alguma com os negócios ilegais de Epstein. A Victoria’s Secret também publicou uma nota atestando que o economista nunca esteve diretamente ligado à marca e que ele era funcionário exclusivamente de seu CEO, Wexner, até 2007.
Mesmo após as tentativas de afastamento da marca das acusações de assédio denunciadas pelo Me Too, e dos crimes de Epstein, a Victoria’s Secret teve prejuízos. A convergência de demais fatores levaram o enfraquecimento e, posteriormente, a queda do império de lingeries.
A queda do império multimilionário
Assim como a cena cultural do início dos anos 2000 permitiu uma rápida ascensão da Victoria’s Secret, a década de 2010 trouxe sua decadência. Entre os motivos para a desestruturação do império de Wexner, está a dificuldade de acompanhar as rápidas mudanças globais que ocorriam no mundo do comércio. O mercado transferiu-se para o meio digital e Wexner, junto à L Brands, persistiu na forma tradicional de vendas. Aos poucos, suas lojas esvaziaram e o império começou a se dissolver.
Para além da manutenção do comércio tradicional, a Victoria’s Secret continuou sustentada por um discurso ultrapassado. Nas mídias sociais, crescia o número de mulheres que não se viam mais representadas pela marca. Empresas concorrentes, como a Third Love, começaram a aderir às reivindicações de suas consumidoras e criar diferentes tipos de lingeries que abrangiam as necessidades de diferentes corpos. Foi nesse momento que tornou-se popular o conceito de body positivity, movimento social que promove a valorização de todos os corpos em suas diferenças.
Em 2018, fruto desta mobilização, surge a hashtag “We Are All Angels” (“Somos todos Angels”), que espalhou-se nas redes. Em boicote à Victoria’s Secret e suas campanhas que privilegiavam a exposição de corpos magros, um grupo de mulheres que diferenciavam-se do “padrão Angel” começou a posar com lingeries de marcas concorrentes. O movimento se alastrou e foi aderido pela Third Love que, na época, teve um significativo aumento em seu número de vendas.
Outra motivação para a popularização da hashtag foram os comentários gordofóbicos e transfóbicos do então diretor de marketing da Victoria’s Secret, Ed Razek. O executivo disse em entrevista à Vogue que, para se construir um império como a Victoria’s Secret, era necessário que fosse construída uma fantasia, uma essência. Para ele, mulheres gordas ou trans destoavam desta fantasia e, portanto, não deveriam subir nas passarelas da marca.
A repercussão da entrevista foi tamanha que Razek se afastou do cargo e o deixou um ano depois. Também em 2018, a Victoria’s Secret realizou o seu último “Victoria’s Secret Fashion Show”. As vendas começaram a cair até que, em 2020, a marca teve seu pior faturamento. Frente a todas as acusações e polêmicas, Wexner afastou-se do cargo também em 2020 e se aposentou no mesmo ano.
O Renascimento
Após a saída de Wexner e Razek da diretoria da Victoria’s Secret devido aos escândalos que os envolviam, a marca passou por uma transformação. Novos executivos foram contratados e mais mulheres passaram a fazer parte da diretoria.
Por anos a marca recusou-se a aderir o movimento de body positivity e de diversidade de corpos para que sua “essência” não fosse perdida. Agora, tenta recuperar o tempo perdido e investe em modelos de corpos variados.
“Eu entro no site da Victoria’s Secret hoje e vejo várias mulheres de corpos diversos. Mas para mim isso é muito tokenismo [esforço superficial para a inclusão] da parte deles, porque não combina com a essência da marca, que está completamente ultrapassada”, assegura Sabina. Ela ainda acredita que os novos passos que a marca irá tomar vão se distanciar das noções de hiperssexualizadas do corpo feminino.
O documentário Victoria’s Secret The Tour ‘23 (2023) foi a primeira grande tentativa de mostrar a mudança de paradigma na grife. Narrado pela Angel Gigi Hadid, ele joga luz sobre artistas e modelos de todo o mundo e destaca a diversidade. A crítica especializada, porém, acredita que o filme falhou em agregar a diversidade com a essência da Victoria’s Secret. Cria-se uma expectativa de que a volta do “Victoria’s Secret Fashion Show” possa, finalmente, cumprir este papel e reparar parte dos erros cometidos ao longo dos últimos anos.