por Diego C. Smirne
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Criou-se uma expectativa colossal em torno de O Regresso (The Revenant, 2015), e não é para menos. Dirigido pelo ousado e premiado diretor mexicano Alejandro González Iñárritu – o que, por si só, já é promessa de algo grandioso -, o filme lidera a lista de indicados ao Oscar 2016 com nada menos que 12 indicações, teve uma produção complicada, cheia de peculiaridades e pode, de quebra, finalmente acabar com o drama do ator Leonardo DiCaprio, que já teve por cinco vezes (uma delas como produtor) a chance de levar a estatueta para casa, mas saiu da premiação de mãos vazias.
O Regresso baseia-se numa história verídica e, ao mesmo tempo, folclórica, pois já foi contada em muitas versões – entre elas outra produção cinematográfica, o faroeste Fúria Selvagem (Man in the Wilderness, 1971) -, sobre um homem chamado Hugh Glass (DiCaprio), que liderava um grupo de exploradores em busca das valiosas peles dos animais do Oeste selvagem dos Estados Unidos. Enquanto caçava, Glass cruza o caminho de uma ursa e seus filhotes, e é brutalmente atacado. Embora tenha conseguido matar a fera, os ferimentos o deixam à beira da morte. Sem condições de levá-lo de volta ao forte de onde saiu a expedição, seus companheiros seguem em frente, deixando-o aos cuidados do hostil Fitzgerald (Tom Hardy) e dos jovens Bridger (Will Poulter) e Hawk (Forrest Goodluck), filho de Glass com uma índia Pawnee.
Interessado apenas na recompensa prometida por cuidar que o moribundo tivesse um fim digno, sabendo que há índios guerreiros perseguindo o grupo e sem abrigo do rigoroso inverno, Fitzgerald se cansa de esperar que a morte leve Glass, e decide ele mesmo acabar com sua vida. Quando o filho de Glass, Hawk, tenta impedi-lo, Fitzgerald o esfaqueia mortalmente, e depois convence Bridger, que não viu nada do que aconteceu, de que ambos precisam partir se quiserem viver. Assim, Glass é abandonado, desprovido de armas e quase sem nenhuma mobilidade, para morrer com a ciência de que seu filho foi assassinado.
A partir daí começa a jornada de Hugh Glass em busca do acerto de contas, superando suas mutilações e os obstáculos da natureza para encontrar o homem que o deixou para morrer e vingar seu filho. Daí em diante, nem o personagem de DiCaprio nem o espectador têm sequer um minuto para respirar aliviados.
O grande trunfo de Iñárritu em O Regresso foi conseguir que os espectadores realmente fiquem imersos no filme, mais do que em qualquer 3D, e o diretor usou diversos artifícios para isso. Logo na primeira cena, somos colocados no meio de uma sangrenta batalha entre os caçadores e os índios Arikara. Filmando em plano-sequência, isto é, numa única tomada sem cortes, Iñárritu acompanha com a câmera ora um branco, ora um índio, mudando o alvo à medida que vão sendo abatidos, um a um, num primoroso trabalho. A coreografia do confronto foi ensaiada por um mês, resultando numa cena de batalha minuciosamente construída, cuja fluidez é aumentada pela técnica do diretor, que aqueles que assistiram à sua última obra, o premiado Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), 2014), já conhecem.
Além do plano-sequência, outro detalhe que contribui para fazer o espectador se sentir dentro da batalha, bem como no restante do filme, é o fato de Iñárritu ter escolhido gravá-lo exclusivamente com luz natural. Embora tenha complicado muito a produção, feita no inverno do Canadá – o que reduziu consideravelmente o tempo hábil para filmagens -, a opção do cineasta deu margem para o trabalho exuberante feito pelo diretor de fotografia Emmanuel Lubezki. Premiado nas duas últimas edições do Oscar pela fotografia de Gravidade (Gravity, 2013), do também mexicano e conceituado diretor Alfonso Cuarón, e de Birdman, Lubezki transforma a beleza natural das montanhas e florestas canadenses em obras de arte em O Regresso, e é forte candidato a ganhar a estatueta pela terceira vez seguida.
Quanto a Leonardo DiCaprio, é consenso que o ator há tempos merece o reconhecimento da Academia. No papel de Hugh Glass, porém, vemos uma atuação bastante diferente dos eloquentes últimos papéis do ator, mas igualmente impressionante. Após a traumática cena do ataque da ursa (gerada digitalmente com a ajuda do processo de captura de movimento), Glass fica praticamente imobilizado e incapaz de falar por dias. Para representar a luta pela sobrevivência de seu personagem, DiCaprio entrega uma interpretação muito mais física, e o faz de forma a também envolver o espectador em sua agonia e angústia.
Embora seja difícil acreditar que uma pessoa possa sobreviver a tudo pelo que o protagonista passa no filme, e de fato Iñárritu acrescentou muitos detalhes sórdidos à sua jornada, o verdadeiro Glass realmente saiu vivo da luta com a ursa e percorreu mais de 300 quilômetros através do rio Missouri até Fort Kiowa, após ser abandonado totalmente debilitado e sem qualquer recurso por seus companheiros. Apesar dos exageros no roteiro, DiCaprio transmite perfeitamente a dor e a fúria de Glass, e, assim como ele, Tom Hardy também se mostra em excelente forma no papel do ardiloso antagonista Fitzgerald, pelo qual também foi indicado ao Oscar como ator coadjuvante.
O Regresso é uma obra superlativa em muitos aspectos. A direção e produção impressionantes, fotografia belíssima e atuações inspiradas têm tudo para conquistar diversos prêmios na noite de 28 de fevereiro. A história, porém, é bastante rudimentar, assim como os dois principais elementos dos quais trata. O primeiro deles é o selvagem, representado na época e local onde se passam os acontecimentos, e nos seus personagens, tanto os brancos quanto os índios; não há qualquer romantização de um lado ou de outro, e a mensagem fica clara na cena em que Glass avista um índio enforcado numa árvore, com a inscrição “somos todos selvagens” deixada por exploradores franceses. O segundo elemento é a vingança, que é o que dá forças a Glass para se manter vivo. Mas, embora leia-se nos cartezes do filme o slogan “sangue perdido, vida encontrada”, a última sensação transmitida após a imersão promovida pela equipe e a direção de Iñárritu e a atuação de DiCaprio não é nada disso. Depois de muito sangue perdido e de sentir ao longo do enredo toda a dor, o desconforto, a raiva e a exaustão de Glass, o que se encontra no desfecho de O Regresso não é vida, e sim o único sentimento trazido pela vingança: o vazio.