Por Luiz Dias (lhp.dias11973@usp.br) e Samuel Amaral (amaral.samuel@usp.br)
No dia 12 de junho, a Câmara aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, conhecido popularmente como “PL do aborto”. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 31 outros parlamentares, o texto equipara a interrupção de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio simples, mesmo em casos decorrentes de estupro. Em urgência, o PL não passará pelas comissões da câmara e será votado diretamente no Plenário.
Na justificativa do projeto, a falta de demarcação temporal para realização do aborto é apresentada como um problema e, para alterar isso, o PL adiciona novos artigos a quatro parágrafos do Código Penal. Atualmente, não há no texto original um tempo limite para o procedimento e tampouco previsão de criminalização em casos de estupro.
O que diz a atual legislação?
Feito em 1940, o Código Penal prevê a punição da prática em três casos: um a três anos em regime aberto ou semiaberto para a gestante que provocar um aborto ou consentir que alguém o provoque, de três a dez anos em regime fechado para o indivíduo que realizar o procedimento sem o consentimento da pessoa grávida e de um a quatro anos com o consentimento da gestante. Caso a pessoa em estado de gestação sofra lesão corporal grave decorrente do processo de aborto, as penas a terceiros são aumentadas em um terço. Se resultar em morte, a penalidade é duplicada.
Há apenas três exceções de não punibilidade: quando a gestação se enquadra como risco à vida da pessoa grávida, caso o feto seja anencéfalo — situação médica em que o encéfalo não foi formado durante a gestação — e na ocorrência de gravidez por crime de estupro.
O atual projeto busca alterar essa estrutura do Código e aumentar as punições por meio da equiparação da pena pela prática de aborto a de homicídio simples. Tal decisão determinaria pena de seis a 20 anos de detenção em regime fechado à gestante ou ao sujeito responsável pelo procedimento.
Com essa mudança, abortos de gestações derivadas de abuso sexual também se tornam criminalizados após o período de 22 semanas, deixando de ser casos em que o procedimento é permitido pela legislação. Os demais dois casos em que a lei vigente garante a prática legal da interrupção da gravidez — situações de anencefalia fetal e de alto risco à vida da gestante — permanecem garantidos pela lei, mesmo com a potencial aprovação do PL.
Análise jurídica
Segundo a advogada, presidente do Observatório Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e especialista em gênero, Maíra Recchia, o projeto tem como contexto a disputa pela presidência da Câmara dos Deputados. “Há toda uma disputa de correlação de forças dentro do Congresso Nacional e os direitos das mulheres são os mais baratos. Então, são os que são colocados na mesa”, declara a jurista.
O PL também traz uma ambiguidade em relação ao uso do termo viabilidade fetal, que define a partir de quantas semanas o feto tem chance de sobreviver fora do útero. “Tem uma lacuna nesse quesito, porque se tiver um médico que ateste viabilidade fetal antes da vigésima segunda semana, em qualquer fase da gestação, o aborto pode ser considerado crime”, relata Recchia.
A equiparação de penas entre crimes distintos foi pontuada pela advogada como uma prática atípica no organismo jurídico. O comum seria a definição de penalidades específicas para cada ato criminal, e não a assemelhação de práticas diferentes.
A jurista afirma que o projeto, além de contrariar a Constituição, também se opõe a tratados internacionais sobre Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
“[O projeto] não só viola essas legislações, como é um retrocesso absoluto. Estamos falando de 84 anos da aquisição desse direito, que é a hipótese do aborto legal que temos hoje. Não estamos nem discutindo a descriminalização do aborto, só não queremos que venha o retrocesso.”
– Maíra Recchia
Opinião de especialistas da área da saúde
Em regime de urgência, o PL 1904/2024 não tramitou pelas comissões temáticas relativas ao assunto. Também não passou pela análise e julgamento dos especialistas da área, como obstetrizes, médicos ou profissionais de direitos reprodutivos.
Roselane Gonçalves, docente de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), doutora em Enfermagem e pesquisadora na área de direitos sexuais e reprodutivos comenta que “uma das principais problemáticas do projeto é a criminalização da interrupção da gravidez em casos de abuso sexual após as 22 semanas”, pois esses casos possuem peculiaridades e problemáticas que atrasam as vítimas na procura do procedimento legal.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontam que mais de 70% das vítimas de violência sexual são menores de idade e cerca de 61% dos abusadores são familiares ou conhecidos. De acordo com as especialistas, as pessoas afetadas sofrem pressão social e psicológica, que retardam a busca por ajuda, seja no apoio em relação à violência em si ou sobre a gestação derivada desse crime.
Cristiane Cabral, docente da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP-USP) e doutora em Saúde Coletiva, aponta que “a burocracia do sistema público de saúde, falta de educação sexual, pressão familiar para manter a gravidez e a baixa disponibilidade de hospitais que oferecem assistência especializada” também são fatores que contribuem para o atraso na procura do aborto com autorização da justiça.
Outra preocupação relativa à saúde pública, em caso de aprovação do texto, é um possível aumento na busca de procedimentos ilegais de aborto, segundo Cabral, agravando uma epidemia de saúde pública.
Segundo dados do Ministério da Saúde compilados pelo portal jornalistico Poder 360, entre os anos de 2016 e 2021, foram gastos R$ 189 mi de reais no tratamento de procedimentos malsucedidos de aborto no Brasil na rede pública de saúde. O valor gasto em internações decorrentes do aborto legal foi de R$ 2 mi. Segundo Cabral, as mulheres que mais recorrem a esse tipo de procedimento clandestino de alto risco são as jovens de classes socioeconômicas baixas. “Não são quaisquer grupos de mulheres que serão afetadas por esse projeto, mas um segmento muito fragilizado da sociedade”, alerta a docente.
Reação ao Texto
O regime de urgência foi recebido por uma onda de protestos em várias capitais do país, como São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte. Sob o coro de “Criança não é mãe!”, “Estuprador não é pai!” e “Abaixo ao PL do estupro”, os manifestantes e opositores ao texto manifestaram que essa lei “retira os direitos das mulheres e protege abusadores”.
Os protestos se estenderam para além das ruas e chegaram a entidades como a Comissão Arns de Direitos Humanos (CA) e a OAB. No dia 15 de junho, a Ordem emitiu um parecer que repudia o texto de Cavalcante e avalia que o projeto de lei é inconstitucional e portanto, ilegal.
Como resposta às reações negativas, a base de apoio do PL, composta de políticos de partidos de direita, articulou algumas tentativas de angariar maior apoio ao texto, como uma encenação de aborto pela artista Nyedja Gennari. Ela foi organizada pelo senador Eduardo Girão (NOVO).
O deputado Nikolas Ferreira também começou a coletar assinaturas de parlamentares para protocolar um requerimento de urgência ao PL 4.233/2020, que prevê um endurecimento na pena de estupradores. “Seria uma resposta, ficaria claro e iria expor quem quer punição maior ao estuprador e quem, de fato, só queria ser contrário ao projeto (PL 1904/2024) de forma irracional sem levar em consideração as consequências para a criança e a mulher estuprada”, declara.
Apesar da votação da urgência do PL 1904/2024, o presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), anunciou nesta semana que a votação de mérito, onde os deputados avaliam, em votação simples, se há mérito na proposta do texto apresentado, pode ser adiada para o segundo semestre de 2024. Segundo Recchia, presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP, várias podem ser as razões para o adiamento desta votação, “como as férias parlamentares e as eleições municipais que ocorrerão em outubro”.
*Imagem de capa: Reprodução/Câmara dos Deputados/Mário Agra