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Reflexões em frente ao espelho

Crônica para a J.Press
Por Aline Fiori (alinefiori05@usp.br)

Arthur encarou o espelho mais uma vez naquela manhã antes de sair para o trabalho. O reflexo devolvia um homem que, por muito tempo, acreditou que precisava ser inabalável. Seu avô foi assim, seu pai é assim. Todas as suas referências masculinas são assim, e, esse ciclo de relações, também o fizeram assim. Naquele dia, tudo parecia em ordem para que sua rotina fatídica começasse. Mas, por trás dessa imagem bem construída, desse credo em sua fortaleza masculina, havia um turbilhão de questionamentos que, até pouco tempo, ele jamais ousaria enfrentar.

Ele havia aprendido desde pequeno que homem não chora, e, se chorar, “é coisa de mulherzinha”, que a força reside na capacidade de criar uma casca grossa para ocultar suas emoções, de seguir em frente, mesmo que a alma pese toneladas. Foi assim que Arthur moldou sua masculinidade: como uma fortaleza de pedra inquestionável. 

Esse imaginário patriarcal reproduzido às cegas, não só oprime as mulheres e outros gêneros, mas também fazem os homens serem vítimas da própria postura. Perdem por não dar espaço para a própria subjetividade, em detrimento de uma identidade que lhe concede poder, mas não permite falhas. A sociedade sempre reforçou essa ideia, alimentada por padrões patriarcais que ditavam que ser homem era ser dominante, racional e competitivo, enquanto a sensibilidade e a emoção eram deixadas para o mundo feminino, como algo frágil. 

Por muito tempo, Arthur acreditou que essa era a única maneira de ser homem. E assim ele fez: dedicou-se à carreira, construiu uma família e vestiu a armadura de invulnerabilidade que é esperada de todo homem, sem a consciência do caminho que o levou onde está. Mas, em algum momento, ele começou a perceber que algo não estava certo. O sucesso no trabalho, o reconhecimento profissional, tudo isso que outrora diziam a ele que traria uma sensação de completude, não conseguia preencher o vazio que crescia dentro de si. De que adiantaria todas essas coisas quando Arthur sequer sabe dizer quem ele é?

As mudanças no mundo à sua volta começaram a afetá-lo de forma diferente em uma crise subjetiva, na qual uma primeira faísca de percepção atingiu Arthur. As mulheres, que antes eram confinadas ao espaço doméstico, agora ocupam os espaços públicos com cada vez mais força na luta por igualdade e liberdade. O movimento feminista ganhava força, questionando normas que por séculos limitaram o papel da mulher e, indiretamente, o do homem, onde a diferenciação biológica definia os comportamentos. As conversas sobre gênero se tornaram inevitáveis diante de tantas lutas e movimentos, elas faziam Arthur se sentir desconfortável, mas o faziam questionar o que ele sempre acreditou ser “o certo”. 

Era como se as paredes da fortaleza masculina, construídas ao longo dos séculos, começassem a desmoronar. A pressão para ser o provedor, o pilar da família, o líder indiscutível, estava sendo questionada não só pelas mulheres, mas também pelos próprios homens. 

A sociedade, antes organizada de forma clara e rígida, estava se reconfigurando. As fronteiras entre o que era masculino e feminino estavam dando seus primeiros passos para uma dissolução. Arthur percebeu que precisava encontrar seu lugar nesse novo cenário. Mesmo que a sociedade já tivesse dado grandes passos no repúdio ao machismo – por meio de leis como a Lei Maria da Penha, Lei do Divórcio e da inclusão ao voto e ambientes educacionais, por exemplo –  as ferramentas para a conscientização da masculinidade tóxica eram escassas, ainda havia um grande caminho a ser trilhado e um caminho antigo a ser desconstruído. 

Ainda que muitos homens relutem a isso; vejam como algo ruim e digam que na sua época não existia esse “mimimi” a figura do homem forte, impassível, estava dando lugar a algo mais fluido, mais sensível. As discussões sobre novas masculinidades chegaram até Arthur como uma descarga elétrica carregada de possibilidades que até então estavam escondidas em um clima nublado. Pela primeira vez, Arthur se permitiu explorar essas ideias. Afinal, por que ele não poderia ser um homem que expressa suas emoções? Por que a vulnerabilidade sempre foi vista como fraqueza e não como uma expressão legítima de humanidade? Ele começou a perceber que não precisava se encaixar nos antigos moldes que o aprisionavam, ele poderia ser quem quisesse.

Foi então que Arthur descobriu que seu corpo, antes apenas uma ferramenta de força e produtividade, podia ser também um meio de expressão. Ele passou a ver a moda, o autocuidado e o bem-estar de outra maneira. Antes, as roupas eram apenas uma questão de funcionalidade; agora, eram uma forma de se comunicar com o mundo, de dizer e amar quem ele realmente era. Cores, cortes, acessórios – tudo isso começou a ganhar um novo significado. Ele começou a se permitir brincar com essas escolhas, sem medo de parecer “menos homem”. 

Essa transformação, no entanto, não foi fácil. A resistência era grande, tanto dentro de si quanto fora. Os olhares julgadores na rua, os comentários no ambiente de trabalho e familiar – tudo isso fazia parte do processo. Mas Arthur sabia que não estava sozinho. Ele podia ver que, em cada canto, homens estavam começando a questionar seus papéis tradicionais e a buscar algo mais verdadeiro. Arthur percebeu que não era mais possível separar a vaidade masculina da busca por autenticidade. Uma nova versão que não tinha medo de ser julgada, que encontrava liberdade na diversidade de formas de ser. 

Naquela manhã, enquanto ajeitava a gravata diante do espelho, Arthur sentiu uma leveza inédita. O homem que o espelho refletia não era mais uma máscara. Pela primeira vez, ele via a si mesmo, não como o homem que a sociedade esperava que ele fosse, mas como o homem que ele estava escolhendo ser. Um homem em constante transformação, disposto a explorar novas possibilidades, a se reconectar com ele mesmo. Arthur sabia que o caminho seria longo. Haveria dias difíceis, dias em que as velhas armaduras pareceriam mais seguras e confortáveis. Mas ele também sabia que seguir em frente, nesse novo caminho de descoberta, era o único jeito de encontrar a verdadeira liberdade. E isso, afinal, era tudo o que ele sempre quis: ser livre para ser quem realmente é.

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