Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
O legado cultural e artístico venezuelano muito se deve a Oswaldo Vigas. Pintor, escultor e muralista, Vigas absorveu elementos vindos das raízes pré-históricas da Venezuela, da cultura ibero-americana e das correntes plásticas modernas para compor as suas obras, hoje apreciadas por visitantes dos maiores museus do mundo. Suas pinceladas têm imaginação, melancolia, nostalgia e tradição cultural.
Em O Vendedor de Orquídeas (El Vendedor de Orquídeas, 2016), temos Vigas já aos 80 anos. Seu corpo é frágil, não suporta grandes aventuras, mas ele ainda pinta – sempre ao lado de um auxiliar que posiciona a tela conforme a conveniência e o conforto para o pintor – com vigor e todo o amor às artes. A primeira cena do documentário já nos faz entender isso, quando o velho artista, sobre uma cadeira de rodas, é carregado morro acima por um grupo de quatro pessoas. Lá em cima, encontram-se antigas gravuras cravadas sobre uma rocha. Vigas levanta de sua cadeira de rodas, passa a mão sobre a pedra, sente os vincos talhados por algum ser humano de um passado muito distante e afirma, em tom de fascínio: “é bem melhor do que eu imaginava.”
O longa é um retrato familiar sobre a vida dos Vigas. Não de Oswaldo, apenas, mas de esposa, filho, pais e irmãos também. A direção de Lorenzo Vigas já pressupõe a imersão no universo familiar que o documentário nos propiciará em sua uma hora e 15 minutos de duração: aos olhos do filho, temos o retrato mais verdadeiro e íntimo do que se pode extrair de um pai. Vale enfatizar que, mais do que filho de um artista renomado, Lorenzo é um já premiado cineasta. E com este seu último trabalho acabou ovacionado pelo exigente público de Veneza no festival internacional do ano passado. À propósito, é fascinante para nós, o público, a abertura dos personagens com a câmera, a forma tão natural de se expressar, a facilidade deles para chorar (e que nos faz chorar junto), a forma que se entreolham e conversam entre si. Só uma relação familiar tão próxima permitiria tanta sinceridade e comoção.
Na época em que se iniciam as gravações do documentário, o pintor e sua esposa, Janine, estão recuperando e ordenando obras para uma exposição que estrearia no ano seguinte. Os quadros e sketches se espalham em uma “bagunça organizada” pelo cômodo, esperando para serem expostos numa mostra intitulada Vigas: Los Comienzos. Tudo está aparentemente nos conformes, exceto por um grande buraco na cronologia da coleção que se remontará nas paredes do museu. O quadro “O Vendedor de Orquídeas”, de mais de 60 anos, que sumiu do mapa e que teria um valor simbólico inestimável. A partir daí, inicia-se a busca pelo quadro perdido, através de ligações, anúncios nos jornais, viagens às pequenas cidades onde Vigas construiu sua trajetória. É aí que memórias do passado vão sendo despertadas no artista e em Janine, que vão incrementando a rota com preciosos relatos há muito tempo guardados e de se arrepiar a espinha.
É dessa forma que vamos descobrindo aos poucos o porquê da obsessão pelo vendedor de orquídeas da pintura e a relação do artista com as memórias do passado. Nas palavras do pintor: “Reynaldo, o meu irmão mais próximo. Que tomou um frasco de remédios e que nunca mais acordou.” O vendedor retratado na tela não era vendedor de orquídeas ou coisa parecida. Na realidade, era o irmão servindo de modelo. Era a última vez que Reynaldo serviria de modelo para uma pintura de Oswaldo.
Mergulho biográfico, nostalgia o tempo todo. Conhecer a arte de um artista é conhecer o seu passado, é entendê-la, e é o que ocorre em O Vendedor de Orquídeas. Descobrimos as dores de uma infância na pobreza, as cicatrizes do passado, a saudade e o amor verdadeiro. Como resultado, uma bela homenagem de um filho admirado ao seu recém falecido pai.
Trailer com legendas em inglês:
por Laura Molinari
lauratmolinari@gmail.com