Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Enquanto em São Paulo e no resto do mundo o cinema de rua se desgasta, perdendo espaço para as gigantes franquias de shopping centers e suas produções de larga bilheteria, um pequeno gesto movido inteiramente por uma paixão inabalável pelo cinema nos emociona. Estamos falando da mais digna das cinefilias, aquela que dispensa a fala pomposa, as minúcias técnicas ou conhecimentos elevados sobre diretores e produções. Estamos falando do cinéfilo apaixonado pela magia da sala escurinha, pelos grânulos de poeira visíveis à luz da projeção, pelo cheiro de pipoca e pelo burburinho da plateia antes do filme começar a rodar. Estamos falando do velho e humilde pedreiro, comerciante nas horas vagas, locutor de uma pequena rádio local, mas sobretudo amante de carteirinha da sétima arte, Omar José Borcard.
Argentino, trabalhador e de origem humilde, Omar se encantou pelo cinema desde o seu primeiro contato na adolescência, quando começou a frequentar uma majestosa sala na pequena Villa Elisa, cidade onde nasceu e viveu toda a vida. Um dia, aquele cinema veio a fechar suas portas, e a simples aceitação do público frustrou o homem profundamente. “Eu não entendo as pessoas que costumavam ir ao cinema todos os fins de semana e que agora não ligam mais para os filmes, que hoje não sentem nada pelo cinema. Eu não posso perder essas coisas”, pensou Omar, que a partir daí começou a arquitetar a cura para a sua inquietude. Economizando uns trocados aqui e ali, subindo tijolo por tijolo, ele iria construir o seu próprio cinema. O Cine Paradiso.
De pouco em pouco, Omar consegue dar forma ao seu tão sonhado projeto. Ele ergue o esqueleto da salinha sobre a sua própria casa e, como solução acústica, forra as paredes com pedaços de tecido. Garimpa antigas e pesadas cadeiras de madeira de uma velha sala de cinema. E o projetor, a última aquisição, é um enferrujado exemplar de 1928. Com o suficiente para fazer os filmes começarem a rodar, Omar vai de carro às ruas da cidade, distribuindo bilhetes aos moradores da região. Mais tarde, monta na entrada uma bombonière improvisada, onde vende guloseimas por um precinho amigo à criançada. Tudo pronto para começar, a sala lotada, o silêncio paira. O velhinho apaga a luz, aciona a projeção, a música de abertura domina o ambiente. E a magia acontece.
Omar tem sua história contada em um singelo e intimista documentário. A câmera se esconde nos cantinhos, senta na mesa para almoçar, entra nos quartos, observa o movimento através da janela do carro. Luz Ruciello, a diretora, brinca com o real e a encenação, sem em nenhum momento sujeitar seus entrevistados ao papel de atores. São pessoas comuns que claramente se incomodam com a presença de uma lente os perseguindo, transparecendo isso a todo tempo. O que não é algo negativo, apenas natural. O processo de produção do longa Um Cinema em Concreto (Un Cine en Concreto, 2017) foi demorado, acompanhando por dias a rotina de Omar e de sua família. As gravações de vídeo e áudio não são sempre de mesma qualidade – algo que, no entanto, não rebaixa a produção ao posto do “malfeito”. Ao contrário, reforça ainda mais a impressão de filme caseiro, de colagem, remendo e improviso, mesma imagem também transpassada pela construção do Cine Paradiso, o cinema de Omar.
Os acontecimentos futuros vão sendo pincelados devagarinho e em doses homeopáticas, seguindo o pacato ritmo de vida dos aproximados 10 mil habitantes de Villa Elisa. É somente através dessa lentidão que o espectador consegue compreender a simplicidade e o cotidiano local. De pouco em pouco, a trama vai dando as caras, surpreendendo, arrepiando, emocionando e encantando. Não é à toa que, no Festival de Lima de 2017, Luz e Omar tenham recebido aplausos tão calorosos do público presente. Porque Um Cinema em Concreto não é apenas um documentário, e sim uma homenagem ao amor pelo cinema e ao homem que tanto lutou para disseminar esse amor aos outros.
Trailer com legendas em inglês:
por Laura Molinari
lauratmolinari@gmail.com