Por Samuel Cerri (samuel.cerri06@gmail.com)
Prólogo
Há exatos 95 anos, em uma rua sem saída no Rio de Janeiro, então capital federal, nascia Arlette Pinheiro Esteves da Silva, filha de imigrantes italianos e portugueses. Arlette levava uma vida simples: sua mãe era dona de casa e seu pai, mecânico, e viveu boa parte da infância em Campinho, subúrbio carioca onde nasceu. Aos 8 anos de idade, a garota começou o que se tornaria sua paixão de vida: atuação.
Sua primeira encenação como atriz foi numa peça da igreja que os pais frequentavam, que apesar de não ter muitas informações marca sua estreia nesse universo. O fator decisivo de sua carreira veio anos depois, com a inscrição para um concurso de locutora da Rádio Ministério da Educação e Saúde, atual Rádio MEC. Arlette ganhou, e assim recebeu o convite para atuar no Teatro da Mocidade, uma radionovela.
Esse foi seu primeiro emprego, e Arlette permaneceu mais uma década na emissora. Seu primeiro papel como radioatriz foi em Sinhá Moça Chorou, obra de Cláudio Fornari, na qual interpretou Manuela. Depois de ser locutora na Rádio, ela se tornou atriz e começou a escrever para a emissora.
Com uma carreira quase imensurável, a Dama da dramaturgia brasileira foi a primeira atriz contratada da TV Tupi, em 1951. Foi na verdade esse trabalho que a renomeou: a recém-inaugurada TV considerava o nome Arlette muito simples, então pediram à atriz que ela o trocasse por algo mais artístico. Foi assim que adotou o que se tornaria um dos pseudônimos mais conhecidos do Brasil: batizou-se como Fernanda Montenegro.
Já no teatro, Montenegro fez sua estreia ao lado do marido, Fernando Torres, com quem inaugurou o Teatro dos Sete em 1959. O projeto, fundado em conjunto com Gianni Ratto, Sergio Britto e Ítalo Rossi, era uma companhia de teatro que durou até 1965, exibindo espetáculos como O Mambembe, Cristo Proclamado e O Beijo no Asfalto.
Ato
Dentre os 88 filmes, dezenas de novelas e centenas de peças teatrais produzidas e encenadas por Fernanda Montenegro, algumas merecem destaque, seja pelo pioneirismo ou pelo impacto internacional que tiveram.
Em sua estreia nas telonas, Montenegro interpretou Zulmira em A Falecida (1965), adaptação do livro de Nelson Rodrigues dirigida por Leon Hirszman. Por este protagonismo, Fernanda recebeu três prêmios de Melhor Atriz: no Prêmio Governador do Estado de São Paulo, na Primeira Semana do Cinema Brasileiro e no Candango de Melhor Atriz — deste, foi a primeira premiada da história.
Com o sucesso no primeiro filme, a carioca passou a trabalhar em produções como Eles Não Usam Black-tie (1981), também dirigido por Hirszman. No papel de Romana, Fernanda Montenegro contracenou com outras figuras importantes da dramaturgia brasileira, como Bete Mendes e Milton Gonçalves. O longa-metragem rendeu ao diretor o prêmio Leão de Ouro no Festival de Veneza do mesmo ano.
A Dama da dramaturgia fez participação em muitas outras obras de peso: As Filhas da Mãe (2001), como a protagonista Lulu de Luxemburgo, Belíssima (2005-2006), como Beatriz Falcão, O Amor nos Tempos do Cólera (Love in the Time of Cholera, 2007), interpretando Tránsito Ariza – no que foi sua maior bilheteria até então. Na década de 2010, trabalhou em O Tempo e o Vento (2013), como Bibiana Terra Cambará adulta, O Outro Lado do Paraíso (2017), estrelando Mercedes Alcantara Tavares, e Piedade (2019), em que interpretou Carminha.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Mayra, estudante de arte-teatro na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) e professora, relata ter conhecido a atriz justamente através da televisão. “Na minha classe social, antes de ter contato com o teatro, a televisão é muito forte. Não fui uma criança que frequentou o SESC, eu assistia muita TV, então pessoas que se colocavam nesse espaço me influenciaram muito, e a Fernanda Montenegro sempre esteve presente e falando de sua experiência de vida no teatro”.
Apesar da extensa filmografia, alguns de seus trabalhos ficaram marcados no imaginário popular. Em uma de suas cenas mais célebres da teledramaturgia, durante a interpretação de Olga Portela para a novela da TV Globo O Dono do Mundo (1991), Fernanda Montenegro inventou uma personagem de repente, no meio da gravação. Aconteceu de durante as filmagens uma lâmpada do cenário explodir, mas ao invés de paralisar a gravação e retomar o take, Fernanda decidiu improvisar e chamar incessantemente por “Aracy” para limpar a bagunça, uma suposta empregada doméstica que não existia no roteiro original. Mas a atuação da atriz foi tão boa que o diretor Dennis Carvalho não teve outra escolha senão escalar Betty Erthal para o papel.
Outra personagem das mais famosas de Fernanda Montenegro é Nossa Senhora em O Auto da Compadecida (2000). A imagem estética da atriz marcou o início do milênio, o que gerou expectativas para seu retorno ao papel em O Auto da Compadecida 2 (2024), mas Fernanda disse preferir não participar do papel por conflito de agenda. Dessa vez, uma das aparições da “mãe de Cristo” será interpretada por Taís Araújo, como Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
Seu papel mais importante, tanto para o cinema nacional quanto para o internacional, não podia ser outro senão em Central do Brasil (1998). Sua atuação como Isadora “Dora” Teixeira marcou para sempre a cinematografia brasileira, rendendo a ela a primeira indicação latinoamericana ao Oscar de Melhor Atriz. Seu êxito foi confirmado com as vitórias do Prêmio Urso de Prata, National Board of Review e Prêmios APCA 1999, todos na categoria de Melhor Atriz, além da indicação ao prêmio na 52ª cerimônia do BAFTA.
No Oscar, Fernanda Montenegro foi derrotada por Gwyneth Paltrow, vitoriosa pelo papel de Viola de Lesseps em Shakespeare Apaixonado (Shakespeare in Love, 1998), o que gerou insatisfação do público brasileiro e até hoje é fonte de memes nas redes sociais. Com o sucesso de Ainda Estou Aqui (2025), produzido pelo mesmo diretor de Central do Brasil, Walter Salles, e protagonizado por Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro – que também participa do longa –, o Oscar de 1999 voltou à tona e a esperança de uma reparação histórica no prêmio de Melhor Atriz retornou ao imaginário brasileiro.
Epílogo
Se não bastasse o impacto no mundo dos cinemas e do audiovisual, Arlette vai muito além do seu pseudônimo Fernanda Montenegro. Foi a partir de sua participação em roteiros, como o de Nelson Rodrigues por Ele Mesmo (2016), adaptação de autoria da atriz, que a Dama da dramaturgia brasileira foi indicada para a 17ª cadeira da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Hipólito da Costa. Fernanda recebeu a indicação em novembro de 2021, e em março de 2022 se tornou imortal pela ABL.
Mesmo aos quase 95 anos de idade, Montenegro não deixou sua paixão de servir ao público como atriz. Em 18 de agosto de 2024, em comemoração aos 100 anos do Itaú Unibanco, ela se apresentou a mais de 15 mil pessoas no Parque Ibirapuera e se emocionou ao final da performance. Muito mais do que o ato em si, o show em São Paulo confirmou duas coisas: Fernanda ainda é incomparável como atriz, assim como é a paixão do público por ela.
Outra pessoa que conta levar Montenegro como inspiração é Manoela Mendes, estudante de artes cênicas na Unesp. Ela relata que é decidida desde os 6 anos sobre a carreira que cursa hoje, muito graças à Fernanda Montenegro. “Minha família sempre acompanhou muito novelas e eu sempre acompanhei a Fernanda por elas e outros filmes que conheci. Sempre que aparecia era de uma forma completamente diferente” conta.
Para ela, Montenegro “sempre esteve lá” na televisão, quase que imortalizada, mas tem suas atuações favoritas da atriz: “Uma que eu gosto muito é a Mercedes de O outro lado do paraíso, assistia a novela só esperando ela aparecer”. Uma das qualidades que mais chama a atenção de Manoela é a volatilidade e adaptabilidade da atriz, que sempre consegue se reinventar. “Quero conseguir transitar entre papéis com tanta verdade quanto ela e que a arte sempre seja algo que surge de dentro, a verdadeira expressão do que somos”.
Já Mayra diz ainda que a Dama da dramaturgia foi uma de suas maiores referências da adolescência, principalmente pelo que chamou de sabedoria dos mais velhos. ”Fernanda sempre mostrou uma grande sabedoria sobre ser atriz, sobre a arte, sobre a vida. Ela lida com o teatro assim como eu: como um ofício. O teatro pra mim não é um hobby ou uma brincadeira, é algo sério”.
Para ambas, Fernanda Montenegro é hoje um dos maiores ícones da luta feminina e da representação dos idosos na arte. “Ela é um arquivo vivo. Fernanda não envelheceu intelectual e criticamente, ela continua uma mulher politizada, articulada, antenada”, afirma Mayra. “É bonito ver o corpo idoso em cena, traz esperança e mostra as possibilidades ao longo da vida. Apesar do teatro ser machista e misógino, Fernanda sobreviveu nessa área sendo destaque. Ela mostra que há espaço para as mulheres nesses locais, com brilhantismo”.
Uma atriz que continua em cena aos 95 anos de idade é de uma poesia…
Cristina Leifer, atriz, sobre Fernanda Montenegro
Assim como as estudantes de teatro, Cristina Leifer, atriz independente, Doutora em Artes Cênicas pela UFBA e Diretora do Cenáculo Núcleo de Estudos Teatrais também chama atenção para idade de Montenegro e como isso não é um impeditivo para ela: “O seu amor pelo teatro e a sua força vital são profundamente inspiradores. Uma atriz que continua em cena aos 95 anos de idade é de uma poesia, de uma beleza, que não é só inspiradora, mas um norte, um horizonte na direção da vida!”.
A atriz tem uma relação ainda mais profunda com a dramaturga. Tendo a oportunidade de ver Fernanda Montenegro atuando nos palcos, Leifer destaca que grande parte do ícone criado ao redor de Arlette se dá pelo amor que ela tem pelo teatro. “Fernanda sempre diz aos jovens atores que a verdadeira vocação surge de uma necessidade vital. Se ao pararmos de fazer o que amamos for como a morte, é melhor seguir em frente porque está aí a nossa vocação”.
Perguntadas se o Oscar de 1999 teria sido roubado, Mayra afirma não saber ao certo, “Mas as premiações não estão atreladas à qualidade de uma obra”; Manoela responde um eufórico “Até a Gwyneth sabe!”; e Leifer afirma, finalmente: “Fernanda Montenegro é Hors Concours!”
*Imagem da capa: arte de Ana Alice Coelho com fotos de Nelson Di Rago/Globo, Alex Carvalho/Globo e divulgação