Imagem: capa do novo álbum, “Prequelle” / Reprodução
É difícil explicar, para alguém que não é familiar, o que é o trabalho da banda Ghost. Mas para explicar o que é Ghost, poderia demorar dias. É árduo rotular o estilo sonoro da banda, mas este se encaixa melhor por entre o campo do rock e heavy metal. A banda, porém, utiliza o recurso da teatralidade para definir seus principais aspectos: seus temas e visual. O conjunto que utiliza de uma estética de “igreja satânica” construiu, com seus álbuns, uma narrativa que chega agora em seu quarto capítulo com “Prequelle”, quarto trabalho de estúdio da banda.
A obra, porém, se concretizou em um momento conflituoso para aqueles que a produziram. Até este álbum, as identidades dos integrantes do grupo era oculta, sendo identificados apenas como os “ghouls” (almas penadas, instrumentistas da banda) e o Papa, personagem do vocalista e líder da “igreja”. Após o terceiro LP, porém, as identidades dos músicos foram reveladas. Com isso, as suspeitas sobre o cantor Tobias Forge ser o vocalista da banda e o homem por trás da máscara de caveira dos personagens Papa Emeritus I, II e III, foram confirmadas e “Prequelle” foi lançado sob essa nova luz sobre a banda. A revelação foi devida a um processo contra Forge por agora ex-membros do grupo, predominantemente Simon Söderberg, acusando o músico de não compartilhar pagamentos e direitos autorais com seus companheiros. Esta situação reflete na música presente no quarto trabalho de Ghost, agora considerado por muitos fãs um “projeto solo” de Tobias Forge, e se mescla com seu tema principal de forma intrínseca e inteligente.
“Prequelle” marca, como em todo trabalho do conjunto, um novo capítulo na história de Ghost como banda e como ato teatral. Assim como em todo lançamento de um novo álbum, um novo líder para a seita satânica fantasiosa foi escolhido. Dessa vez, porém, ao invés de um novo Papa da dinastia dos três primeiros, um cardeal assumiu a posição, chamado Cardinal Copia – do latim, cópia, imitação – e com ele, uma banda inteiramente nova, outra consequência da vida real na fantasia do grupo. Apesar das sucessões, o homem por trás dos personagens é sempre o mesmo, o compositor e letrista Tobias Forge, e as letras do novo álbum não deixam a desejar em esperteza e sagacidade ao abordar os temas escolhidos tanto por Forge, quanto pelo seu alter-ego Cardinal Copia. É evidenciado no trabalho, também, um desejo da banda de criar um material mais acessível e pop. Esse desejo traz um tempero especial ao som do grupo, que combina brilhantemente esses novos traços com suas raízes no rock e metal.
Dentro da narrativa da banda, o tema oficial de “Prequelle” é a Peste Bubônica, seus efeitos sobre a humanidade e a postura de Deus e Satã quanto a ela, dando destaque não aos que morreram durante a pandemia, mas os que tiveram que viver para ver suas consequências: nas palavras de Forge, “os sobreviventes”. A capa do LP já concretiza o tema, explorado em praticamente todas as músicas no trabalho. A arte mostra uma representação do líder da igreja satânica sentado sobre um trono de castelos, que se fundem a uma criatura dismorfa com três cabeças de rato, que representam a peste. Vale ressaltar que a capa do disco faz homenagem ao álbum de estreia da banda brasileira Sepultura, trazendo diversas referências ao debut da banda mineira que também serve de tatuagem ao próprio Tobias Forge.
A faixa de abertura Ashes traz uma cantiga de roda, cantada por uma voz infantil e invoca uma sensação desconfortante similar à abertura de um filme de terror. A voz é acompanhada por um ressoar grave que adiciona suspense à introdução. A letra da cantiga clássica serve para trazer ao plano o tema principal: a morte generalizada. Com trechos como “todos nós caímos/cinzas na água/cinzas no mar”, cantados pela filha de Tobias, Minou Forge, a atmosfera começa a se montar. A faixa, apesar de abrir decentemente o disco, não carrega tanto peso quanto parece logo de início. A grande atração, porém, é logo revelada após a breve introdução
Em Rats principal single do álbum, já se mostram as novas facetas e influências de Ghost para o capítulo atual em sua história, logo demonstrando a direção que seguiram o Cardeal e os novos ghouls. A canção energética e acelerada é uma abertura fortíssima para a nova narrativa, falando – não sobre ratos em si – mas sim sobre “algo que se espalha como um incêndio e destrói tudo mais rápido do que você percebe” disse Forge à Revolver Magazine. A segunda faixa do álbum traz uma mistura intensa e divertida do estilo pesado da banda com traços de rock clássico e glam rock e conta até com participação de um coral, trazendo o espírito sinistro do conjunto com uma nova visão: o viés de despertar um público de shows imensos. Este objetivo é justificado pelo fato de Ghost ser hoje uma das maiores bandas de rock do mundo.
Rats abre espaço então para Faith, canção que já em sua introdução demonstra puxar para o lado mais pesado do som do grupo, trazendo a pegada mais carregada do metal para o álbum. A letra fala sobre a manipulação e enganação pela fé, e combina perfeitamente com a batida intensa, contando com solos de guitarra gritantes. A faixa se encerra com um arranjo orquestral com um órgão e coral de igreja, engrandecendo a transição que logo ocorre para a próxima canção.
See the light é uma balada dramática e grandiosa, que se inicia com um piano suave sob a voz de Copia. Essa introdução leva ao refrão estrondoso e pesado, o qual fala sobre crescer e se fortalecer a partir do ódio e negatividade que se recebe. O refrão, junto a alguns versos da canção como “de muitos ratos me tornei amigo/e muitos espinhos cresceram entre nós” levam a crer que a letra da canção é um desabafo de Forge sobre a situação na qual este se encontra, sendo processado por aqueles que um dia foram seus amigos.
O álbum segue com a faixa instrumental Miasma, uma coleção sinistra de melodias e solos de cada integrante da banda, com uma agradável surpresa ao final. É energética e ajuda a estabelecer a atmosfera épica do álbum, além de servir muito bem para apresentar a nova banda de ghouls. Ao final, recebemos uma aposta sonicamente interessante do grupo: um solo de saxofone em meio às guitarras pesadas. Aposta muito bem escolhida, visto que o instrumento harmoniza incrivelmente bem com o som e humor estabelecidos e enriquece a performance ainda mais.
Após a faixa instrumental, somos premiados com a divertidíssima Dance macabre, canção que poderia ter saído diretamente de um álbum do grupo sueco ABBA (conhecida influência do Ghost). A música enfatiza uma temática recorrente no álbum, o carpe diem. A mensagem da letra vem da ótica de um habitante da Europa medieval durante a praga, o qual pensa que, se a morte se alastra pelos países, todos estão a morrer e sua hora vai chegar de qualquer maneira, então o melhor que há a fazer é viver e se divertir ao máximo antes do juízo final. Como o próprio título sugere, a faixa é incrivelmente dançante e demonstra a grande influência do “stadium rock” na banda, que cria um ritmo hipnotizante e irresistível.
Seguindo em frente temos Pro Memoria, uma balada baseada novamente em piano, com uma sonoridade incrivelmente teatral. A canção chega a remeter à introdução épica do vilão de um musical com sua abertura cinemática com cordas em ascensão. Como a faixa anterior a letra de Pro Memoria também remete a uma temática recorrente. Dessa vez, porém, essa é o memento mori, a lembrança e consciência de nossa mortalidade como seres humanos. Isso fica evidente com o refrão, o qual vai direto ao ponto: “Não se esqueça da morte/não se esqueça que você morrerá”. A canção é um ótimo exemplo da força de Ghost com outros estilos que não o metal, visto que o estilo teatral e dramático da canção é manuseada com perícia por Cardinal Copia e os ghouls.
Adentrando o fim do LP, chegamos a Witch Image, um hino ao memento mori grandioso e, ao mesmo tempo, gracioso. A canção é energética e levada por guitarras incrivelmente bem harmonizadas com os vocais, adicionando à profundidade sonora da canção. A curta faixa tem como pano de fundo para sua letra a visão da própria morte em relação a nós, mortais. Esta faz questão de, novamente, relembrar-nos de nossa mortalidade e de nosso curto tempo nesta terra (quase uma fusão entre os temas de Dance Macabre e Pro Memoria), com os versos “Enquanto você dorme sob as delícias terrenas/a carne de outro apodrece esta noite”, que apesar de macabros, nos remete à rapidez e preciosidade da vida.
A penúltima canção do disco é a segunda instrumental deste, servindo como um fechamento para a temática principal do álbum e de abertura para seu grand finale. Helvetesfonster, ou “Janelas do inferno”, do sueco, é um tema instrumental atmosférico e sombrio. Como uma valsa macabra, a primeira parte da canção nos leva lentamente a uma ascensão épica dos instrumentos, mais energética e acelerada, com direito a um solo dos teclados. Já na segunda parte, há um contraste direto, com um calmo violão, que soa quase como um alaúde, toca uma melodia serena e prolongada, nos levando diretamente para a idade média. Na faixa, o violão é tocado por Mikael Åkerfeldt, veterano do metal sueco e líder da banda Opeth. O instrumental serve como a antecipação perfeita para o encerramento do álbum, que, na última faixa, se eleva ao máximo de sua dramaticidade.
Life Eternal encerra “Prequelle” com uma reflexão proposta a nós pelo homem que deu vida aos três papas e agora ao cardeal macabro: “Se você pudesse mudar a ordem natural das coisas e tivesse carta branca para viver para sempre, você o faria?” perguntou Tobias Forge em entrevista sobre a canção. A faixa que fecha o álbum faz justamente essa pergunta em sua letra, e sintetiza todo o sentimento de mortalidade do álbum em um último espetáculo grandioso e repleto de drama. “Prequelle” termina com este sentimento de eternidade, ciclicidade, algo que não se pode escapar, a maneira que a vida leva à morte. Seu final nos deixa ainda suspensos, com um ar de mistério e ansiosos pelo que ainda há de vir. Life Eternal é um verdadeiro hino à vida e, em sua própria maneira, à morte.
“Prequelle” nos deixa com a sensação de ser a transição para algo muito maior, um ponto de virada na carreira de Forge e da música do Ghost, mas ao mesmo tempo um ponto alto. Reunindo temas interessantes e trançando-os com os próprios acontecimentos na vida de seu líder, o grupo nos presenteia com mais um trabalho de altíssima qualidade. O novo álbum representa tudo que já há de bom no som da banda e o potencial que esta nova fase pode trazer para esta. Para nós fãs, nos resta aguardar as novas mensagens do clero e desfrutar deste novo e incrível trabalho deste grupo que já vem se tornando um clássico do rock e metal e amadurece cada vez mais, agradando fiéis do mundo todo.
Por Marcus De Rosa
mesderosa@usp.br