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‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’: os cacos do artista | 49ª Mostra Internacional de Cinema de SP

Longa de Scott Cooper aborda o processo de criação de um dos discos mais revolucionários da música americana
Por João Lucas Casanova (joaolcasanova@usp.br)

Situar filmes biográficos de grandes artistas pelos seus pontos baixos é uma escolha incomum. A menos que o declínio em questão seja responsável por conceber um álbum como Nebraska (1982) de Bruce Springsteen.

Exibido durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre de 16 a 30 de outubro, Springsteen: Salve-me do Desconhecido (Springsteen: Deliver Me From Nowhere, 2025), do cineasta americano Scott Cooper, trata de um período complexo e introspectivo na vida do astro famoso por incendiar audiências mundo afora. 

A transformação que o Boss — alcunha pela qual Springsteen é conhecido — passa durante a produção de Nebraska é essencialmente interna. É o momento em que o artista, à época ascendente, depara-se com tudo que a fama o faria deixar para trás. O que decorre dessa fase é uma tentativa de dar a essas memórias inalcançáveis materialidade, mesmo que na fragilidade de uma gravação quase amadora, antes que o tempo ou a poeira do oeste as tirasse de vista.

Nebraska foi gravado em casa, sem o acompanhamento da elétrica banda de Springsteen. São narrativas de ecos do passado, todas de alguma forma sobre a sensação de uma condenação inescapável, um buraco do qual não se é possível sair. É o mais pessoal e o mais humano dos discos do americano, de uma franqueza transposta no som ríspido, urgente, que ecoa das canções.

O filme de Scott Cooper, por sua vez, é muito frágil na tentativa de encenar os sentimentos soterrados que assombram cada faixa do álbum. Com a exceção de raros lampejos, como quando a depressão sofrida pelo artista é transposta num ritmo denso, meio errático, que deflagra na condução narrativa, há uma imensa dificuldade em apresentar qualquer construção visual e sonora que fuja da mera ilustração.

Na esteira da leva de biografias sobre músicos a estrear nos cinemas nos últimos anos, Springsteen não faz muito para despistar a saturação clara pela qual passa o gênero. Na realidade, em parte significativa de sua duração, apenas justifica o estigma. O tradicional esquema de causa e consequência, a literalizar nuances e a minar qualquer complexidade da criação artística, permeia a forma como o longa aborda o processo de composição das canções. Uma coisa acaba sempre levando a outra e por aí vai. Opta-se por apresentar o conteúdo mastigado numa tentativa de universalização, mas o efeito alcançado é o de perda da força que por natureza emana das gravações — a pasteurização das imperfeições tão questionada no discurso pronunciado pelos personagens.

A ideia inicial era gravar Nebraska no estúdio, mas o efeito estava longe da genuinidade almejada pelo Boss [Imagem: Reprodução/TMDb]

Ainda assim, os tropeços de Springsteen não parecem atrelados a um desentendimento das significações do artista e sua obra. A questão é que essas discussões são apresentadas de maneira muito precária enquanto forma. Existe um descompasso claro entre as canções, permeadas por uma ambiguidade soturna, autossuficiente, e a tentativa brusca de colocar os pingos nos is que o filme realiza. Nas cenas em que o empresário Jon Landau, vivido por Jeremy Strong, conversa com sua mulher, numa tentativa de explicar as intenções do artista, a interação soa demasiado complacente e exemplifica a pobreza de ideias na representação dos porquês. É a utilização do diálogo, da verbalização, para suprir a fragilidade do impacto que deveria haver enquanto narrativa.

O longa de Scott Cooper não deixa de ter um tom curioso, mesmo nesses lugares comuns. Enquanto biografia, o método de clarificação do pensamento do artista segue por caminhos inusuais. A persona de Bruce Springsteen nunca soa cristalina, plenamente consolidada, apesar do excesso de descrições que a rodeia. O caráter evasivo ajuda a estabelecer contornos sobre o retrato e permite que o público encontre, nas lacunas, o potencial artístico e humano responsável por criar um disco como Nebraska.

Isso fica claro na relação do protagonista com o interesse amoroso da trama. Há afeto no que emerge entre ambos, sem com isso implicar em uma planificação das complexidades de um relacionamento. Não é a simples existência de percalços que demonstra isso, mas os espaços vagos, os momentos de ausência, de esforço e posterior incompreensão — que não partilham da banalidade que recai sobre outras partes do filme. O fato do espectador nunca ter plena consciência de como Springsteen age é honesto por representar, para além da obviedade do diálogo, a condição depressiva pela qual passava o cantor, e dá ao resto um tom de descontrole que melhor casa com o disco que disso surge.

Jeremy Allen White cantando a plenos pulmões “Born to Run”, clássico do repertório de Bruce Springsteen [Imagem: Reprodução/TMDb]

É natural que em obras desse tipo, a preocupação por vezes se volte à caracterização, à semelhança com a pessoa real e à “correta” incorporação dos maneirismos. Como é comum nas produções de dezenas de milhões de dólares de Hollywood, Springsteen não deixa a desejar nesse sentido. O Boss de Jeremy Allen White, resguardadas as terríveis diferenças na fisionomia, algo que nem o melhor dos maquiadores resolveria, mantém uma certa fragilidade, apesar do semblante carrancudo, típico do artista na vida real.

Já a voz, por sua vez, assusta pela similaridade — a ponto de confundir os fãs de primeira hora. Não é nisso, porém, que White realmente brilha. Os excessos no palco, os tiques da interpretação, impressionam, mas são esquecidos pós-sessão. O que fica mesmo são os momentos em que o personagem desce mais fundo, e a atuação acompanha. Os declínios, os cacos visíveis na não-presença. É preciso um esforço ainda maior para comunicar algo sem falar, sem mostrar colapso. Nos raros momentos em que o filme se permite essa abordagem, White se mostra a altura do papel.

É uma experiência curiosa, no fim. Hollywood filmando o que lhe é incompreensível: o caseiro, o “fora do quadrado”. O resultado só poderia ser contraditório, de alguma forma, e o longa encarna isso. Tanto pela impressão deixada de Nebraska como um meio, necessário, mas ainda assim um meio, para o que viria a ser a carreira do artista depois, quanto pelo trato semi-pedagógico, mas também realista, da corrosão da saúde mental. Agrada mais quando se permite ser errático, como Bruce Springsteen se permitiu.

Esse filme faz parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Confira no site oficial as sessões disponíveis. Para mais resenhas do festival, clique na tag no começo do texto.

Confira o trailer:

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