Por Amanda Yoshizaki (amanda.yoshizaki@usp.br)
Segundo novos estudos internacionais, até o fim do século o nível do mar pode subir quase dois metros devido às mudanças climáticas. No Brasil, municípios como Recife e Santos estão entre os mais ameaçados da América do Sul, cenário que demanda ações de planejamento e adaptações que combinem obras de engenharia com restauração de ecossistemas.
O aumento do nível do mar
O aquecimento global é a elevação gradual das temperaturas médias do planeta, diretamente associada às emissões de gases de efeito estufa (GEE), como dióxido de carbono (CO₂), metano (CH₄), e outros que são resultado de atividades humanas como a queima de combustíveis fósseis, desmatamento e agricultura intensiva.
O aumento da concentração dos GEE na atmosfera intensifica o efeito estufa, que é um fenômeno natural que mantém a Terra aquecida e habitável. Esses gases funcionam como um filtro, que retém parte do calor irradiado pela superfície terrestre. Com o excesso de emissões geradas por ações antrópicas, mais calor fica preso na atmosfera, o que acelera o aquecimento global.

Segundo Osvaldo Girão, professor de geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um dos efeitos das mudanças climáticas associadas ao aquecimento global é o aumento relativo do nível do mar. Esse fenômeno ocorre devido ao derretimento de geleiras, dos campos de gelo e da expansão térmica das águas superficiais dos oceanos, processo que acontece quando o líquido esquenta e se dilata, ou seja, a altura do oceano sobe mesmo sem degelo.

O professor apresenta dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que informam que, ao longo do século XX, a subida relativa do nível do mar foi, em média, de 1,7 mm, mas que pode ter alcançado até 3 mm a partir da década de 1990. “Apesar de parecerem valores baixos, são médias que, na dependência da linha de costa, e de outros aspectos ambientais locais, como características oceanográficas, climáticas e geológicas, podem resultar em elevações da ordem de metros” relata Girão.
“A intensificação de eventos como inundação e erosão de áreas costeiras seriam resultantes do processo de aquecimento climático”
Osvaldo Girão
Pesquisadores da NTU Singapore e da TU Delft, na Holanda, desenvolveram um novo método para calcular a elevação futura do nível do mar. O estudo indica que, se as emissões globais de CO₂ continuarem em alta, os oceanos poderão subir entre 0,5 e 1,9 metro até 2100 — quase um metro acima do que estimam as projeções mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), que variam de 0,6 a 1,0 metro.
O diferencial do estudo está na metodologia, chamada de “abordagem de fusão”, que reúne diferentes modelos climáticos, que vão desde o derretimento de geleiras a eventos mais incertos, como o possível colapso de plataformas de gelo, e incorpora opiniões de especialistas para abordar as incertezas nas projeções atuais da elevação do nível dos oceanos.

Segundo os autores, essa técnica oferece uma estimativa mais clara e confiável, que funciona como um complemento às análises do IPCC e ajuda governos e cidades costeiras a planejar medidas de adaptação com base em cenários de risco mais realistas. A projeção considera uma faixa “muito provável”, com 90% de chance de ocorrência, que oferece um quadro mais abrangente do que o divulgado pela ONU, que trabalhou com cenários de 66% de probabilidade.
Impactos no meio ambiente
Eduardo Siegle, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), explica que a ocupação desordenada do litoral agrava os impactos do avanço do mar. Segundo ele, a retirada de dunas e manguezais, a impermeabilização do solo e as construções muito próximas à costa eliminam barreiras naturais, intensificam os efeitos das ressacas e, por isso, a água passa a atingir diretamente a infraestrutura.

O oceanógrafo afirma que, quanto mais espaço for deixado para os ambientes naturais atuem, mais eficaz será a proteção contra os efeitos do avanço do mar. Siegle também chama atenção para o risco da salinização: “O aumento do nível do mar causa intrusão salina, e isso pode afetar aquíferos e comprometer a disponibilidade de água potável”.
“O que a gente sente hoje, em função dessas mudanças na zona costeira, é um resultado direto de se ter construído onde não deveria ter construído”
Eduardo Siegle
De acordo com Eduardo, a elevação do nível do mar é um processo lento, constante e irreversível no curto e médio prazo. “Mesmo que todas as emissões fossem interrompidas hoje, os oceanos continuariam a subir por muitos anos, em função dessa inércia do sistema climático”, relata. Esse avanço, que já adicionou mais de 20 centímetros ao mar no último século, amplifica problemas existentes e torna eventos extremos cada vez mais destrutivos.
As comunidades que vivem próximas ao mar já sentem esses impactos no dia a dia. Nega Assis, moradora de Santos há 54 anos, contou em entrevista concedida à Jornalismo Júnior: “Percebo que o mar avança de uma forma mais rápida do que antigamente. Na Ponta da Praia, a maré sempre invade. Já houve alagamentos no subsolo de prédios que causaram muitos prejuízos.”
Cidades brasileiras ameaçadas
As cidades costeiras convivem com os efeitos do avanço do mar e tendem a enfrentar desafios ainda maiores nas próximas décadas. De acordo com projeções da organização Climate Central — uma organização sem fins lucrativos que pesquisa e divulga informações sobre mudanças climáticas, com uso de ciência e tecnologia — regiões litorâneas brasileiras podem ser impactadas por inundações até 2050.

O mapa interativo simula como várias cidades ao redor do mundo podem ser afetadas pelo aumento do nível do mar e funciona como ferramenta de triagem de riscos costeiros, mas não substitui estudos locais mais precisos. Essa projeção reforça análises feitas por pesquisadores nacionais e internacionais, que apontam Santos como uma das cidades mais vulneráveis da América do Sul à elevação do mar.

Um dos fatores que agravam a situação é a subsidência do solo — o rebaixamento gradual do terreno. Esse processo pode ocorrer de forma natural, pela compactação de sedimentos, ou ser acelerado por atividades humanas, como a retirada de água e petróleo do subsolo. De acordo com Eduardo Siegle, em cidades como Santos e Recife, esse fenômeno amplifica a elevação relativa do mar, o que faz com que os efeitos sejam sentidos de forma ainda mais intensa.
Em Recife, o processo de subsidência pode ocasionar um aumento relativo do nível do mar de até 50 cm até 2050, segundo Siegle. Já em Santos, estima-se uma elevação de cerca de 45 centímetros no mesmo período, resultado da combinação entre a subida global dos oceanos e o afundamento local do solo. “Regiões que têm menos subsidência, por exemplo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, vão seguir mais essa projeção global, na faixa dos 30 ou 40 centímetros de elevação”, comenta o professor.

Entre as cidades brasileiras, Recife aparece como uma das mais ameaçadas, sendo classificada pelo IPCC como a 16ª no mundo em risco devido à elevação do mar. Girão explica que a capital pernambucana reúne uma combinação de fatores agravantes: grande área de planícies e zonas alagadas, baixa altitude — entre cinco e dez metros acima do mar — e a presença de rios que desembocam na cidade.
Outros centros urbanos também preocupam. O docente cita Rio de Janeiro, Santos, Florianópolis e Porto Alegre como cidades suscetíveis a ressacas, chuvas intensas e tempestades que, combinadas à elevação do nível do mar, já causam danos estruturais. No Sul, por exemplo, os chamados “lestadas” — ventos fortes associados a ciclones extratropicais — intensificam alagamentos e erosão.
Para Osvaldo Girão, a vulnerabilidade costeira não depende apenas de fatores naturais, mas também da gestão urbana e socioambiental. Ele explica que locais mal planejados tendem a sofrer mais com inundações, erosão costeira e ressacas. “A vulnerabilidade é um conceito que envolve tanto a condição física da orla quanto o perfil socioeconômico da população que a ocupa”, menciona.
“A vulnerabilidade é um conceito que leva em consideração aspectos de gestão pública e socioambientais, que abarcam elementos físico-naturais”
Osvaldo Girão
“Teve chuva no mês passado que alagou toda a cidade em questão de horas e o mar ainda avançou para a avenida. De certo modo o mar vai tomar o que era dele antes”. O relato cotidiano de Nega Assis confirma os alertas de pesquisadores e reforça a necessidade de medidas urgentes de adaptação.
“A prefeitura precisa investir em infraestrutura de drenagem. E nós, moradores, temos que cobrar isso todos os anos, não só em época de eleição”
Nega Assis
O planejamento urbano e o futuro
Diante das projeções de elevação do nível do mar, especialistas defendem que as ações das cidades costeiras em relação às mudanças climáticas precisam mudar de foco: deixar de ser reativas e passar a ser preventivas. Eduardo Siegle destaca que não basta agir apenas após os desastres, é necessário se preparar com antecedência.
Siegle destaca o papel dos modelos de previsão oceanográfica como ferramentas essenciais para o planejamento urbano. Esses instrumentos, baseados em ciência, podem ser soluções práticas ao indicar áreas mais suscetíveis e as melhores formas de adaptar a região a essas mudanças.
“Cada cidade precisa planejar sua adaptação. Não existe receita única, mas com ciência, engenharia e participação social, podemos reduzir riscos e salvar vidas”
Eduardo Siegle
Em entrevista ao Laboratório, Paolo Alfredini, professor de engenharia portuária e costeira da USP, comenta que o país precisa avançar em soluções estruturais de longo prazo. “A engenharia costeira é fundamental em termos do projeto, de intervenções e de medidas, para mitigar esses efeitos da elevação do nível do mar, principalmente nas áreas onde há mais urbanização”.
O engenheiro ressalta que, em áreas densamente povoadas, onde não há possibilidade de realocar comunidades inteiras, é necessário investir em defesas como diques, que para ele são “verdadeiras barragens para proteger determinadas regiões”, mas alerta para os riscos de depender apenas dessa solução. Pois se houver uma falha, a ruptura de uma estrutura desse tipo pode gerar impactos devastadores.
“Fazer diques é assumir uma grande responsabilidade, porque se houver uma falha, a ruptura de um dique é como a de uma barragem, o que causa um dano muito severo”
Paolo Alfredini

Alfredini cita o engordamento de praias — adição de areia para ampliar a faixa da orla e criar uma barreira extra contra o avanço do mar — como outro exemplo de possíveis soluções. Essa técnica pode reduzir erosões e proteger construções próximas, mas precisa ser refeita com o tempo,pois a areia tende a se deslocar naturalmente.
Outra alternativa discutida por Alfredini é o recuo planejado. Para ele, em algumas regiões não faz sentido insistir em investimentos de infraestrutura, uma vez que a tendência é que a água avance inevitavelmente. “O outro caso é recuar, não investir mais em instalações naquele local, porque ali, nas próximas décadas e talvez séculos, será ocupado pelo mar”, reconhece.
Do ponto de vista do oceanógrafo, Eduardo Siegle, soluções tradicionais como muros e barreiras rígidas não protegem os ecossistemas e, em muitos casos, intensificam a perda de areia nas faixas costeiras. Um muro nunca é feito para proteger a praia, mas sim ruas, prédios e casas. Essas construções prejudicam o ambiente natural”, explica.

Siegle defende que a resposta mais eficaz está nas soluções baseadas na natureza, que buscam preservar ou reconstruir ambientes como dunas, manguezais e restingas, que servem como barreiras. “A melhor forma de proteger a região costeira é o ambiente natural”.
“Precisamos combinar obras de engenharia com restauração de ecossistemas. O planejamento urbano precisa considerar essas áreas como parte da infraestrutura de proteção”
Eduardo Siegle
Países como a Holanda, conhecidos pelo uso de diques, têm investido cada vez mais em estratégias que integram engenharia e natureza. “Eles já tiveram uma visão focada na engenharia, mas hoje em dia usam bastante o conceito de trabalhar com a natureza para adaptar suas costas”, relata Siegle.

