A primeira coisa que você precisa saber sobre A mulher calada – Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia, da consagrada jornalista estadunidense Janet Malcolm, é que esse livro não é uma biografia. Está mais para uma divagação sobre os dilemas da produção biográfica, que toma o exemplo de Sylvia Plath como estudo de caso. Por mais que Malcolm se debruce sobre detalhes e episódios da vida de Plath, ela não o faz com o intuito de descobrir quem foi ou como viveu a poetisa norte-americana, mas no sentido de estudar como sua identidade foi construída através dos vários escritos publicados sobre ela.
A segunda coisa que você precisa saber, bem, é quem foi Sylvia Plath (ironicamente). Sua história é famosa e muito repetida em círculos literários; em parte porque foi contada pela própria escritora em seu romance vagamente autobiográfico A redoma de vidro, em parte por ser tão trágica. O pai de Plath morreu em sua infância, e ao longo de sua vida ela lidou com uma depressão profunda e recorrente. Com seus vinte anos, fez sua primeira tentativa de suicídio, mas sobreviveu. Uma jovem brilhante, mudou-se à Inglaterra com uma bolsa de estudos para Cambridge. Lá, conheceu o poeta britânico Ted Hughes, com quem se casou e teve dois filhos. Ted foi infiel e os dois se separaram. Pouco depois, Plath se matou em sua casa, apoiando sua cabeça no fogão e ligando o gás.
É a partir desse material que Malcolm problematiza alguns elementos da biografia, como o seu voyeurismo; os limites da pesquisa biográfica frente à privacidade do biografado e de seus amigos e familiares; e as discrepâncias entre o eu real e o eu biográfico. Ela viu no caso de Plath um exemplo interessante devido às condições singulares em que a poetisa deixou aqueles próximos a ela: “[…] uma pessoa que morre aos trinta anos, no meio de uma separação tumultuada, fica para sempre fixada no tumulto. Nunca chegará à idade em que as dificuldades da vida de um adulto jovem podem ser rememoradas com uma tolerância pesarosa […]. Ted Hughes já atingiu essa idade – há algum tempo -, mas a paz que ela costuma trazer foi-lhe negada pela fama póstuma de Sylvia Plath e pelo fascínio que a história de sua vida exerce sobre o público”.
A morte de Plath inverteu o modo como geralmente operam as biografias: enquanto, normalmente, o morto perderia seus direitos à privacidade e, em grande parte, sua proteção contra a difamação; a conexão afetiva dos leitores à obra de Plath, somada ao momento conturbado de seu relacionamento com Hughes durante o qual ela tirou a própria vida, fez com que a tendência fosse de proteger a todo custo a imagem de uma poetisa frágil e indefesa. Em detrimento, é claro, da reputação de Ted Hughes, que ficou conhecido como o “Barba Azul da literatura inglesa”. Na visão de Malcolm, “devolvendo a Sylvia Plath a condição de pessoa viva, operam apenas uma substituição: condenam os irmãos Hughes e a sra. Plath [mãe de Sylvia] às esferas inferiores, para tomarem o lugar de Sylvia Plath entre os mortos desprovidos de direitos”.
A situação torna-se ainda mais peculiar ao perceber-se que a identidade defendida de doce dona-de-casa de coração partido é diametralmente oposta à persona gélida e poderosa adotada por Plath em suas últimas – e mais consagradas – obras. Malcolm aponta que a titular mulher calada é uma mulher de silêncio ambíguo: complacente ou ameaçador. Olwyn Hughes, irmã de Ted, escreveu uma vez sobre um de seus momentos mais marcantes com Sylvia. Após uma crítica feita por Olwyn à Plath, esta não disse uma palavra sequer, mas a encarou com um silêncio agressivo. Depois do desentendimento, ela encerrou sua visita à cunhada precocemente e foi embora com Ted de madrugada, impossibilitando qualquer tipo de conciliação. Com seu suicídio, Plath repetiu o truque, dessa vez partindo definitivamente após o maior dos conflitos.
Janet Malcolm aborda essas questões com o cuidado de uma jornalista experiente. Sua escrita é direta e ocasionalmente poética, e sua pesquisa é profunda e vasta. Com suas 231 páginas, o livro não parece ter nem uma palavra sobrando: como toda boa obra de não-ficção, ela sustenta ao curso dos capítulos um ponto de interrogação permanente, e explora cada canto e minúcia do assunto sem nunca torná-lo exaustivo. Tampouco é necessário ser fã de Plath para apreciar os questionamentos levantados; ainda que os interessados na história da autora tenham muito a aprender com a curadoria de biografias feita por Malcolm. A história de Sylvia realmente é, no fim das contas, apenas o pano de fundo para uma discussão muito maior, e cada um desses níveis de A mulher calada é enriquecido por isso.
Por Fredy Alexandrakis
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