“Devassos, de qualquer idade ou sexo, só a vós dedico esta obra”. É com esta mensagem que se iniciam os 76 minutos, definindo muito bem o tom do que vem pela frente. Não demora mais de um minuto para entender toda essa aura, e o porquê do filme não ser recomendado para menores de 18 anos. Com uma trama que gira em torno de sexo, uma trilha sonora forte e um elenco afiado, A filosofia na alcova (2017) surpreende positivamente – mesmo que pareça improvável.
A filosofia na alcova é uma obra da literatura escrita pelo grande mestre do erotismo, Marquês de Sade. Sua adaptação para o cinema mantém o mesmo enredo, contando a história de Eugenie, uma garota virgem de 16 anos que vivia em um convento. Sua mãe, responsável por sua criação, era muito religiosa. No entanto, seu pai, era o extremo oposto. Em um dado momento, o pai da garota – um dos aficcionados pelos desejos devassos – envia a garota para Juliette e Dolmancé, especialistas no assunto, que ficam encarregados de quebrar a inocência da garota e ensiná-la tudo o que ela precisa saber sobre a libertinagem.
Feito isto, os mestres desse estilo de vida passam a dar suas lições sobre o assunto, através de histórias sobre orgias, aventuras sexuais de suas vidas, e pensamentos filosóficos de Dolmancé, contrariando completamente tudo o que Eugenie havia aprendido por toda a vida – como a própria crença em Deus. Assim, nesse ambiente escuro e sujo, remetendo a estrutura de um bordel, a garota aprende de forma prática sobre seu corpo e sobre sexo – a princípio, involuntariamente. Pouco depois a garota se entrega aos seus desejos e passa a praticar os princípios libertinos, ouvindo agora a palavra dos dois mestres, e não mais às palavras do seu prévio conhecimento conservador.
Tratando-se de uma história sobre libertinagem, não há outra forma de representá-la senão sendo fiel a esse ideal. Por conta disso, não demora até assistirmos a primeira cena de nudez explícita – apenas o ponto de partida. Seios, vaginas, pênis, bundas, gemidos, orgasmos, aparecem como em uma passeata dando vislumbre a cada parte do corpo em excitação, concretizando a nudez com as sucessivas cenas de sexo. Todo esse erotismo domina ao longo de todo o filme, com as histórias sendo contadas por pessoas nuas ou mesmo pela representação em relações sexuais.
Mesmo após mais de 200 anos, o resultado é algo que, possivelmente, agradaria o criador da obra original. O roteiro é muito poético e, a cada discurso, o público é convidado a participar nas reflexões de uma sabedoria diferente da qual estão acostumados. Muito bem escrita, essa filosofia ganha um tom ainda mais forte na voz de Henrique Mello, que interpreta Dolmancé. Os ensinamentos à Eugenie constituem grande parte da história e são contribuições fundamentais para que o filme seja tão atrativo como ele é.
É inegável a percepção do tom irônico que permeia o filme. Percebe-se um tipo de sarcasmo em todos os personagens, como uma acidez em cada fala, sempre com um ar malicioso, como é visto logo na chegada da menina e seu primeiro encontro com os novos tutores. Isso fica ainda mais explícito ao ver o sorriso quase maléfico de Dolmancé, que chega a se assimilar ao de Heath Ledger na interpretação do icônico Coringa de Batman: O cavaleiro das trevas (2008), um dos pequenos toques que acabam sendo de muita importância e incrementando a narrativa.
A atuação também é algo impecável. O elenco composto pelos atores do grupo Os Satyros – que já apresenta essa obra há anos -, por serem do teatro, trazem atuações muito mais profundas do que a já rotineira atuação no cinema. Aliás, todos os atores são dignos de honra por entregarem um excelente resultado em cenas que exigem muito esforço, tendo que se despir e, literalmente, se entregar. Como exemplo dessa entrega, vemos as cenas em que é preciso ejacular e representar o sexo sem nada técnico, ou fake.
Um outro detalhe que merece destaque é a fotografia do filme. Por mais que o jogo de câmeras e angulações não sejam dos melhores, a suave e amena iluminação, e a paleta em tons escuros com predominância do vermelho representam muito bem essa atmosfera que exala a lascívia e os prazeres carnais. Essas cores já são típicas quando o assunto são as práticas sadomasoquistas (que, aliás, ganham esse nome por conta do Marquês de Sade), como vemos também no quarto vermelho, de 50 tons de cinza (2015). Todo esse contraste em preto e vermelho, além de agregar beleza, é extremamente adequado.
Talvez um dos pontos que mais chamam a atenção é a mistura de passado com presente. Chega a ser cômico ver personagens caracterizados com roupas de época em meio a uma São Paulo contemporânea. Todos os personagens utilizam um figurino fiel ao século XVII, tem seus rostos cobertos pelo pó branco (pancake) e ainda assim vivem no presente. Não sabemos se estamos assistindo a um filme de época ou contemporâneo. O contraste fica claro na cena em que Juliette está no topo de um prédio e parte em um voo de helicóptero, ou quando vemos uma limusine andando pela cidade. O oposto é visto quando a mãe de Eugenie é transportada por uma carruagem que é puxada por dois homens, seus escravos. Essa escolha conflitante pode, na verdade, ser vista como uma ideia conceitual, tendo um interessante resultado final.
Tudo isso é embalado por uma ótima trilha sonora, que é muito mais do que plano de fundo. Os sons de piano, violino dão ritmo e energia às cenas do longa. Toda essa mistura da música forte fazem com que o longa tenha um aspecto artístico muito interessante, complementando sua fotografia.
Um telespectador desavisado ou despreparado pode se constranger ou até mesmo se irritar com o choque que o filme promove em várias cenas. No entanto, em dois momentos esse choque ultrapassa os limites, sendo desconfortáveis pelos personagens forçarem outros em relações sexuais. Mas o ápice dos choques são as cenas finais do filme, que surpreendem e nos fazem pensar em como as coisas foram longe demais aos personagens.
Apesar de não ser de uma grande produtora, estando mais próximo do universo indie, A filosofia na alcova nos prova que o cinema independente tem muito a oferecer. Mesmo que seus recursos não se comparem às grandes produções de outros estúdios brasileiros, ainda assim se mostra uma grande obra. O tema polêmico é bem desenvolvido, e tudo é bem construído. Todos esses fatores apenas nos comprovam que o cinema nacional é promissor e pode sempre nos surpreender.
A filosofia na alcova estreia dia 23 de novembro. Confira o trailer:
por Gabriel Bastos
gabriel.bastos@usp.br