Quem se remete a Tom Cruise e Dakota Fanning quando ouve falar de A Guerra dos Mundos, talvez não saiba que o primeiro solo alvo de destruição dos marcianos não é, em verdade, estadunidense, mas britânico. Melhor: os mundos a que o título se refere são Marte e a Inglaterra. Em 1898, o escritor de ficção científica H. G. Wells já havia projetado o conflito interplanetário a partir de uma zona rural inglesa, onde se instalaram alguns cilindros suspeitos vindos do céu. Confundidos com meteoros, atraem a atenção da população desacostumada com situações irregulares. Após alguma acomodação, os objetos tornam-se logo seres de tentáculos munidos de raios de calor e pouca disposição ao diálogo. O que sucede é a procissão da devastação terráquea narrada em primeira pessoa.
Matéria-prima para filmes, série e programa de rádio, A guerra dos mundos, numa linguagem jornalística, precisa, vacila algumas certezas sobre a condição da vida humana enquanto perpassa as dificuldades de sobrevivência do protagonista. Nas descrições, o personagem central é levado a reflexões catalisadas pela presença do outro como uma forma do autor de elaborar uma autoavaliação coletiva: até que ponto as ações dos seres humanos diferem dos ímpetos colonialistas extraterrestres? Com uma biografia de ativismo, Wells é estratégico ao buscar alguma coesão social contra um inimigo comum.
O autor não poupa esforços ao tentar pintar imagens da aniquilação. Abusa dos detalhes e põe o leitor no cenário de destruição ao qual recorreu com maestria o cineasta Orson Welles numa adaptação radiofônica da obra. Welles realizou um teatro através do rádio simulando a invasão marciana, mas a população não reagiu bem: proliferou-se o caos nos Estados Unidos entre os que acreditaram na veracidade da transmissão. Não bastasse o tom futurístico e visionário do livro, repleto de referências a teorias e descobertas científicas da época e com forte imaginação tecnológica, o episódio de Orson Welles contribuiu ainda mais para imprimir o caráter Black Mirror ao clássico.
Não só morte, raios destruidores, escombros, entretanto: acompanha a narrativa a dimensão psicológica das personagens, certamente afetada quando sob circunstâncias de extermínio iminente. Como seria afetado, afinal, seu sistema de valores se um dia, quando acordasse, desse com trípodes gigantes abatendo toda a vida na Terra como formigas?
A edição recente da Companhia das Letras, em especial, é notável. Traz ilustrações vívidas realizadas por um brasileiro em 1906, o que torna a leitura ainda mais instigante, compondo um corpo visual muito bem arranjado. Ao fim, uma entrevista com o polêmico Orson.
Por Wagner Nascimento
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