Estamos em 2030 e há 18 anos, desde que me mudei para São Paulo, é a mesma coisa. Basta ouvir Ave Maria após as seis badaladas da igreja que o celular toca. E eu achava que morar longe de casa era sinônimo de liberdade. Já sabendo o que me espera, deixo tocar várias vezes antes de atender, tentando manter a calma. Inspira, expira…
– Alô!
– Minha netinha, que demora pra atender! Assim você me mata de preocupação! Pelo amor de cristo, me diga que você tá em casa. Você tá?
– Não vó, estou no escritório, como sempre a esse horário…
– Dá um jeito de se proteger então! O moço na TV tá mostrando o povo todo sem saída por causa da água, empurrando carro na enchente… Toma cuidado pra não se afogar, por favor!
– Tá tudo bem vó, sério, não tem perigo…
– Deus me livre guarde de acontecer alguma coisa com você, florzinha. Promete pra vovó que, quando chegar em casa, vai ligar? Eu me preocupo com você aí, sozinha, nessa cidade grande desse jeito…
– É sério vó, a chuva nem tá tão forte. Quando chegar em casa te ligo, mas já disse que não precisa se preocupar…
– Meu coração tá pulando aqui! A TV não mente meu amor, e o moço tá gritando, falando que enchente aí não tem mais solução não… Fica bem e me liga tá? Vovó te ama.
Desligo o telefone. Inspira, expira. Tadinha da minha vó… Mal sabe ela que esse tal moço da TV (e a própria TV) mente sim. Não sei se “mentir” é o verbo mais apropriado. Mas que eles manipulam a verdade grotescamente, isso eles fazem. É uma espécie de caricatura com os fatos. Eles transformam a notícia se baseando no famigerado sensacionalismo.
Esse pseudojornalismo ainda recebe uma grande ajuda do clima. Não importa a estação, muito menos se o dia começou com baixíssima umidade. Grandes tempestades (ainda que efêmeras) são padrão aqui em São Paulo. Demorei para perceber isso. Mas morando aqui desde 2012, hoje sei muito bem que não podemos confiar na previsão do tempo (outra mentira contada pela TV?).
“Cidade grande é um perigo, não importa a época do ano.”
Diria meu tio.
Quando cheguei à capital, me assustei com tudo isso. Com os homens que, independente do canal, gritavam, olhando ferozmente para a câmera, clamando por justiça, pedindo as imagens das desgraças da cidade. Cada chuva se torna um dilúvio. Hoje, seus descendentes assustam ainda mais pessoas. E não estou falando só de caipiras e migrantes como eu. Muitos colegas de trabalho persistem com o hábito de mudar o canal para ver “os estragos da chuva nas ruas da capital” e ainda se dizem assustados. Eles não se habituam? Quando algo se torna hábito, tende a se banalizar. Mas isso não acontece.
E quase duas décadas depois, meu fim de tarde é o que acabou se tornando hábito. O sino badala e o celular toca. Minha mãe fala do assalto na Zona Leste, minha tia do sequestro na Zona Norte. Todos desesperados, achando que serei eu a próxima vítima. E na Zona Oeste, escuto religiosamente as mesmas recomendações:
“anda atenta na rua”
“cuidado com a mochila no ônibus”
“volte para casa antes de escurecer”
São as mesmas frases, os mesmos medos. Sou a chapeuzinho vermelho da capital. Só que o lobo mau não está na rua, e sim na televisão.
Por Marina Davis e Lucas Faraldo Knopf
marinadavis1810@gmail.com e lucasfk2012@gmail.com