“Como te amar sem me odiar?” é o questionamento mais emblemático de Beatriz (Marjorie Estiano) em relação ao seu companheiro Marcelo (Sérgio Guizé). Ela, uma advogada que abre mão de sua carreira no Brasil e vai a Portugal para realizar o sonho dele, um escritor. Quem dera fosse esta a única renúncia de Bia em nome do relacionamento, mas a dinâmica de servilismo é muito mais intensa. A moça é musa inspiradora para os contos de Marcelo, tudo muito bonito, até o ponto em que sacrifica sua sanidade e seu corpo para alimentar as histórias do marido. Este é o pano de fundo de Beatriz (2019), dirigido por Alberto Graça.
A tentativa de romancear um relacionamento abusivo está presente durante todo o filme. Beatriz, capaz de tudo por amor, é a mulher abnegada e sortuda por ter se casado com um sujeito tão sensível. Marcelo, um gênio da literatura atormentado e incompreendido, é corajoso por se arriscar ao lidar com seus monstros internos. Nada disso convence e ele é visto pelo espectador como um escritor medíocre que precisa usar a esposa como muleta para escrever histórias. O machismo ainda impera com o esforço para justificar o caráter falho e egocêntrico de Marcelo: tendo um pai ausente na infância, seu refúgio e único estímulo para viver eram os livros. Ele é o garoto carioca solto no mundo, que vai à Europa se exilar dos próprios fantasmas e se vicia em medicamentos para curar as dores da alma. A fórmula não funciona nos dias de hoje e o próprio personagem se define como “um estereótipo”.
Mesmo com o charme da mistura de idiomas e sotaques, promovida pela presença das línguas portuguesa e espanhola, alguns diálogos soam pouco verdadeiros. Além disso, é difícil criar uma conexão mais profunda com os personagens principais, especialmente com Marcelo, já que não despertam muita verossimilhança e autenticidade. Os demais personagens são retratados de forma superficial e funcionam como acessórios ou ganchos para uma transição na narrativa, uma pena, seria muito interessante conhecer um pouco mais o casal Laura (Margarida Marinho) e Alfredo (Luís Lucas), amigos dos protagonistas e donos do prédio em que vivem, por exemplo. Camila (Lúa Testa), mais conhecida como “o anjo da guarda do Marcelo”, é uma figura dispensável, que surge sem mais nem menos na trama.
Tecnicamente, o longa é competente. Possui uma estética elegante e minimalista, complementada por belas paisagens dos países que abrigam a história do par. Com o auxílio de uma boa montagem, a divisão do roteiro em três planos, sendo eles o cotidiano do casal (eixo principal), as narrações de Beatriz e os ensaios de uma peça de teatro, também é interessante. Este último é muito bem-vindo, pois traz certo respiro e dinamismo para a trama.
Durante a sessão especial do filme em São Paulo, a atriz Marjorie Estiano sai em defesa da personagem e do roteiro (escrito por quatro homens) e se refere à Beatriz não como musa idealizada, mas como parceira e co-autora das histórias de Marcelo. Ela também revela que foi importante construir uma personagem muito real, forte e cheia de contradições. Para a intérprete, Bia de fato queria viver as experiências que servem de inspiração para o marido, ela seria uma “alfa”, uma mulher que se entrega, comanda e escolhe seu destino.
Apresentando uma nova perspectiva e interpretação da produção, o diretor Alberto Graça enfatiza que o filme provoca um olhar para a necessidade de “reeducação” masculina após séculos de controle sobre as mulheres e lança uma pergunta à audiência: “esse filme ajuda ou atrapalha?”. Cabe ao público decidir.
O longa chegou aos cinemas no dia 6 de junho e o trailer pode ser conferido aqui: