O conceito de casa é muito amplo. Para alguns, a casa pode ser uma construção, um teto sobre a cabeça. Para outros, a casa é o lar, lugar de se estar com pessoas amadas. Ou a casa pode ter ambas as definições. Independentemente desses dois conceitos, cada pessoa deixa sua marca no lugar que mora, desde a decoração até a memória dos momentos vividos ali. Cada detalhe dentro de um lar conta uma história, seja a mesa de jantar que reúne a família, seja o sofá que recebe os amigos, ou até mesmo o vaso recebido de presente. Os objetos ganham vida pela memória depositada neles. E podem permanecer por gerações contando a história de alguém ou de algum lugar.
Pensando nisso, a casa pode ser um museu, que não apenas expõe pinturas na parede, mas sim se mostra em sua dimensão íntima, e pode até revelar segredos nunca antes ditos. Para quem tem curiosidade de descobrir como é a casa de alguém e entender como alguém vivia, as casas-museu estão de portas abertas.
A transição de casa para casa-museu
As casas musealizadas pertenceram a alguma personalidade notável, como por exemplo escritores, arquitetos, engenheiros, políticos e até membros da realeza. A doutora em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Renata Puig diz que “algumas pessoas chamam de museus-casa, mas eu adotei o termo casa-museu porque a casa é sempre uma casa, o museu é uma condição e é parte de um processo”.
Em sua tese de doutorado, Puig faz a biografia das casas-museus em São Paulo. Para isso ela dividiu as áreas de diferentes instituições e mostrou como cada uma delas se relaciona com a história e as peculiaridades daquele lugar. Quando uma casa se torna um museu, há a passagem do privado para o público, e esse processo é bastante delicado. Quando uma casa é aberta para visitações, é exigida uma série de adaptações em sua estrutura, para que dê conta de um espaço para circulação, acessibilidade, instalação de um escritório administrativo, entre outros.
Além disso, há preocupação em manter sua identidade sem prejudicar a memória do local, até porque quando alguém visita uma casa-museu há o interesse em saber como aquela pessoa vivia; “as pessoas são curiosas por natureza”, como comenta Puig. Por isso, é muito importante um trabalho cuidadoso nas adaptações, pensando em preservar a originalidade da casa.
O encontro do tangível com o intangível
Os interiores, o mobiliário, os quadros pendurados na parede, todas essas decisões dentro de um lar revelam algo sobre a personalidade de alguém. Isso nos leva a pensar: quais são as referências artísticas dessa pessoa? Qual a relação dela com o espaço em quem ela vive? Do que ela realmente gosta?
Um objeto de decoração sozinho não significa nada, mas quando ele passa por uma curadoria, pelo olhar de alguém, cria um significado. Há um exemplo que vai ilustrar tudo: a Fundação Ema Klabin. Dona Ema, como era conhecida, era filha de imigrantes lituanos, uma grande apreciadora de arte e também executiva na empresa de sua família, a Indústria Klabin de Papel e Celulose.
A história de sua casa é bastante curiosa. O objetivo de Ema desde o começo era um lugar para abrigar seu grande acervo de obras de arte; de acordo com Puig, que atualmente pesquisa sobre a fundação, Ema fez praticamente um concurso para escolher o arquiteto que projetaria sua casa. A casa é marcada pelo colecionismo, em seu acervo há obras desde o Renascimento até o Modernismo. O projeto da casa, realizado pelo arquiteto Alfredo Ernesto Becker, tem um estilo clássico, mas realizado com a tecnologia moderna. A casa foi pensada como integrada à coleção de obras, tudo conversa entre si. Junto com o designer de interiores Terri Della Stuffa, Ema pensou como cada peça poderia se encaixar.
A paixão pela arte corria no sangue da família Klabin. Tanto Ema quanto sua irmã Eva eram colecionadoras por influência de seu pai. Eva também tem sua casa-museu, no Rio de Janeiro, mas ao contrário de sua irmã, ela não misturava as diferentes obras. Eva tinha uma sala para cada corrente artística, ou seja, uma sala renascentista, outra gótica etc.. Já Ema gostava que as obras estivessem juntas. Para Puig, essas escolhas refletem as diferentes personalidades das duas. Eva foi casada, e ambas não tiveram filhos; Ema nunca se casou, tudo que ela comprava era para ela mesma investir em arte. Ela foi uma mulher de negócios e esteve à frente da indústria da família por muitos anos.
Isso pode ser visto claramente na composição da casa dela, que sempre tinha a mesa posta, com disposição dos talheres, a escolha de assentos de cada convidado e a apresentação do cardápio. “Klabin sempre é lembrada por promover grandes jantares, com muita gente reunida”, comenta Puig.
Esses toques pessoais podem ser vistos também na casa de outras personalidades, como por exemplo a de Guilherme de Almeida. Guilherme foi muitos em um só: poeta, jornalista, advogado, tradutor literário e crítico de cinema. Ele teve atuação decisiva na Semana de Arte Moderna de 1922, ao lado de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Em 1932, Guilherme participou ativamente da Revolução Constitucionalista, sendo considerado o “poeta da revolução”, e até hoje seu trabalho é tido como exemplo da relação íntima entre a literatura e a cidade.
Um dos exemplos é o poema Nossa Bandeira:
“Bandeira da minha terra,
Bandeira das treze listas:
São treze lanças de guerra
Cercando o chão dos paulistas! […]”
Além disso, ele foi membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras. Sua obra compreende mais de 70 publicações, compostas por poesias, prosas, traduções, sem contar com extenso trabalho jornalístico. Deste, destaca-se a coluna “Cinematographos”, pioneira da crítica cinematográfica no Brasil, mantida no jornal O Estado de S. Paulo, entre as décadas de 1920 e 1940.
Foi casado com Belkiss “Baby” Barroso do Amaral, cearense de Quixadá, mas radicada no Rio de Janeiro. Baby sempre foi uma mulher muito independente. Foi ela quem tomou a atitude de conhecer o escritor, inspirada por uma época em que ela passou na Europa, que tinha costumes mais modernos. Assim, ela resolveu enviar uma carta para Guilherme, escrita em francês, sob o pseudônimo de Ivonne, em 1922.
Com a troca constante de correspondências, Guilherme pediu uma foto da pretendente; Baby cortou algumas imagens dela, e em cada nova carta ela mandava um pedaço da fotografia, para que aos poucos o poeta construísse seu retrato. Em um ano, os dois trocaram cerca de 200 cartas, que foram publicadas em 1941 no livro Cartas do Meu Amor.
O interesse pela literatura, cultura francesa e as artes de vanguarda uniam o casal. Baby de Almeida esteve presente nos principais acontecimentos culturais e sociais na São Paulo da época, ao lado do poeta e marido. Por isso, seus traços foram retratados por grandes artistas brasileiros, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Lasar Segall — todas pinturas que estão expostas na casa-museu.
O casal tinha o costume de nomear as coisas, árvores, bichos; uma árvore frondosa em frente à casa construída na rua Macapá, no bairro do Sumaré, se chamava Julieta. E até o lugar onde viveram, entre 1946 e 1969, tinha o nome de Casa da Colina. O apelido não é à toa, a casa fica em uma região alta da cidade de São Paulo, e tem uma vista privilegiada para o centro e para a Avenida Paulista. “Aqui assentei minha casa porque o lugar era tão alto e tão sozinho que eu não precisava erguer os olhos para o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim”, escreveu Guilherme de Almeida.
A aura do passado da casa é mantida até hoje. De acordo com Ana Luiza Rocha do Valle, mestre em Museologia pela Universidade de São Paulo e pesquisadora sobre as relações entre Museologia, Museus, Estudos Literários e Literatura, tudo o que existe hoje na casa-museu de Guilherme de Almeida foi preservado pela viúva, Baby de Almeida, após a morte do poeta. O objetivo desde o começo foi transformar a casa em museu, justamente pela relação afetiva e também a relação dele com a cidade.
Dessa maneira, a casa foi mantida com todos os objetos, os móveis, e sempre com a intenção de deixar os cômodos da maneira que eles eram. “Praticamente tudo foi preservado, desde as obras de arte até os cartões de condolências recebidos por Baby”, acrescenta Valle. No acervo da Casa da Colina estão presentes cerca de 5.500 livros, incluindo raridades como o exemplar da quinta impressão da primeira edição de Ulysses, de James Joyce.
Também estão inclusas as obras de artes dos amigos modernistas do casal, incluindo telas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Wagner de Castro, entre outros; a casa também é cheia de “cantinhos” com bibelôs e suvenires. Valle comenta que a partir desses objetos é possível estabelecer uma série de associações sobre a vida do casal; a casa é a prova do amor deles pela arte, e mostra como eles tinham uma forte vínculo com as pessoas do círculo modernista. Além disso, outros objetos como canetas e máquinas de escrever conseguem contar sobre o processo de escrita dele e como as obras eram recebidas.
O museu e a literatura
A ideia de museu sempre esteve intimamente relacionada àquela de literatura, como observado na dissertação de mestrado de Ana Luiza Rocha do Valle. O mouseion grego, origem da palavra museu, era o templo das nove musas, filhas de Zeus e Mnemósine, e um local privilegiado para o pensamento artístico, científico e filosófico. Dentre as nove divindades, a maioria apresenta alguma relação com o universo literário: Calíope, da poesia épica, Clio, da poesia história, e Euterpe, da poesia lírica.
Para Valle, nem sempre um museu-casa pertenceu a algum escritor. Podem ser museus relacionados à literatura de um país, museus de teatro e casas que foram musealizadas em função de sua arquitetura. É importante ressaltar também que nem toda casa de personalidade é necessariamente um museu: “Uma casa de escritor pode ser lida como museu, mas para ser considerada um museu, essa instituição precisa de um tripé composto por pesquisa, preservação e comunicação”, esclarece Valle.
A fim de tratar dessa relação entre a casa e a literatura, um exemplo muito marcante é o Museu-Casa Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Minas Gerais. A criação desse espaço foi iniciativa da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, mas ao contrário da Casa Guilherme de Almeida, que chegou com todos seus objetos, a antiga casa de Rosa estava vazia e descaracterizada.
“Além de vazia, era uma casa em que ele viveu até os nove anos de idade, ou seja, tudo ali dentro precisou ser reconstituído”, comenta Valle. Em paralelo, a equipe da Secretaria de Cultura fez uma pesquisa minuciosa sobre essa relação entre a literatura e casa, que resultou em uma constatação: faltava literatura ali dentro. Mas como trazer a literatura para dentro desse lugar? Afinal, se trata da casa de um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Valle conta que, a partir desse diagnóstico, toda exposição de longa duração foi formulada. Eles reconstruíram de maneira cenográfica os cômodos da casa, em xilogravura, começando a partir do quarto que pertencia à avó de Rosa. Para isso, a equipe se baseou não só em fotografias da época, mas também em descrições feitas por Rosa no livro Campo Geral, com a personagem vó Isidra. Também incluíram trechos de outros livros dele nas paredes e trouxeram esses elementos literários na tentativa de recriar a casa e incluir a literatura.
Valle elucida que a preocupação com o elemento literário é uma constante, tanto na casa quanto na cidade de Cordisburgo. A equipe educativa tenta relacionar as descrições da cidade na literatura com o cotidiano da comunidade que ali vive. Nesse sentido, foi feita uma “cartografia rosiana” que mapeou lugares de Cordisburgo que tiveram relação com a vida do autor, e colocou placas na cidade, que servem para guiar turistas.
Mas, o grande diferencial da Casa Guimarães Rosa é o trabalho feito pelos miguilins. Os miguilins são crianças e jovens que contam e recitam as obras de Guimarães Rosa, contribuindo nessa ponte entre memória e literatura. Valle menciona a dimensão encantadora que esse projeto traz para os visitantes, que está justamente na forma envolvente com que eles declamam os poemas e histórias, porque aprendem técnicas de oratória e mnemônica para transmitir essa literatura.
Na Casa Guilherme de Almeida, além da preservação de todos os cômodos, também é feito um trabalho de relacionar a vida do escritor com as atividades que são feitas lá. Uma delas é a Sala Cinematographos, que promove desde oficinas de cinema até exibições gratuitas de filmes.
Outro trabalho muito interessante feito é relacionar a poesia de Almeida com a vista da cidade. Em muitos de seus poemas, Almeida descrevia o cenário da cidade visto por sua janela; por isso, a equipe educativa da casa promove sessões de leitura de poemas e observação da vista pelas grandes janelas da casa, o que promove a reflexão acerca da mudança da paisagem ao longo dos anos e a profunda relação desse lugar com sua localização geográfica.
Para a museóloga, com o propósito de garantir a preservação da memória, o ideal é unir as atividades de imaginação e reflexão ao trabalho com as palavras e a literatura. Mais do que museus, essas casas se tornaram espaços culturais, que dialogam o tempo inteiro com a comunidade na qual estão inseridos. Desse modo, os eventos, palestras e oficinas precisam estar relacionadas com a história daquele local para que haja sentido no trabalho realizado.
A função social das casas-museu
Valle explica que as funções sociais das casas-museu são diversas. Elas têm um potencial transformador e humanizador que são próprios da arte e da literatura. Mas também cumprem papel como espaço cultural, promovem pensamento crítico e formam público leitor.
Para a arquiteta Renata Puig, as casas-museu também têm muitas funções, e cada lugar tem sua peculiaridade. Por exemplo, a Casa Guilherme de Almeida não costuma ser tão lembrada por sua arquitetura, mas é um polo reconhecido de tradução literária, tem um acervo rico e conta com programação cultural intensa.
Puig também menciona a Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, um marco da arquitetura brasileira e paulista. Projetada por Oswaldo Arthur Bratke, é um exemplar modernista da Escola Paulista. Nela, é possível ver a setorização dos cômodos, que possibilita compreender a vida na casa pelo seu uso, pela disposição do mobiliário. Isso tem uma relevância arquitetônica enorme na visão de Puig.
Outro exemplo é o Solar da Marquesa, que fica no centro de São Paulo; o local não é uma casa-museu, mas tem todo potencial para ser. É uma casa que foi totalmente descaracterizada ao longo do tempo. Mas não deixa de ser um exemplar da arquitetura colonial da cidade de São Paulo.
A construção foi feita em taipa, e isso é um marco, porque toda a cidade de taipa paulista foi destruída quando chegou a construção em alvenaria. A questão histórica desse lugar é muito importante, sobretudo pela sua localização geográfica: o Solar está cravado no centro, ao lado do Pateo do Collegio e da Fundação de São Paulo.
A arquitetura conta muito sobre a história de uma cidade. As ocupações dos lotes mostram como o desenvolvimento se deu; os lotes ocupados por Maria Luísa e Oscar Americano e pela Casa de Vidro Lina Bo Bardi, ambas no Morumbi, eram chácaras enormes, em uma região ainda em desenvolvimento, e contam uma parte dessa narrativa do modernismo. A casa da marquesa está no centro, exemplo colonial, agora cercada por prédios e também algumas construções em decadência.
A curiosidade está na convivência das diferenças no espaço urbano e na relação dos objetos com a memória das pessoas; intimidade, memória, literatura e arquitetura são separadas apenas na teoria. Na vida real, o todo é o conjunto.
Trabalho maravilhoso, conhecimento incrível.
Muito orgulho desse amigo lindo e inteligente.
Parabéns Vitor!!! Você vai longe.