Por Rachel M. Mendes (rachelmmendes@usp.br)
No fervor sólido e efêmero do anoitecer paulistano, os arranha-céus se transformavam nas grades de uma grande masmorra inescapável. Era febril, caro leitor, a ansiedade a sequestrar os meus sentidos enquanto eu andava pela vasta e tumultuada calçada.
A pacatez da vida me causava dor. A temporalidade do existir me inquietava. O pavor dos prazos me assaltava a mente. E sob a sombra do dever, a passagem dos dias em muito se parecia com a arquitetura metropolitana: ambas de concreto monótono e perpétuo.
O engarrafamento na Vila Olímpia fazia-se numa grande orquestra de estrondos de buzinas, cuja música se repetia sem jamais encontrar fim. As palmas de minhas mãos passeavam pela textura do volante. E, no banco traseiro, repousava, em risos de amargor, minha única acompanhante: a perturbação.

A sinfonia de buzinas de mesmice, ganha então sua mais abrupta mudança de compasso: estouro de um trovão, trazendo consigo uma infinitude de volumosas gotas de chuva e o palpitar de meu coração em susto. A possibilidade de arruinar a tintura de meu carro acresce as razões para a existência de minha inconveniente passageira. Redireciono a rota, percebendo a proximidade do estacionamento do shopping. Eu faria dos os pilares do templo do consumo em abrigo, até que se encerrasse a tempestade.
Caro leitor, me responda: poderia haver mais desassossego em minha alma? Para o temporal, eram inexistentes quaisquer previsões de fim. Era certeiro que eu tardaria a chegar em meu lar. Demandas intensas me aguardavam no adentrar de meu apartamento. E a privação de descanso não detinha poder algum para alterar as tarefas do meu dia seguinte.
E, por mais uma vez, os arranhas-céus se transformavam nas grades de uma grande masmorra inescapável: E no centro de minha sentença, o estresse era o carcereiro de minha mente. Todavia, de repente, a prisioneira é encontrada por um plano de fuga: eu poderia esperar no cinema.
As salas de exibição se localizavam no último dos andares do centro comercial. Tornava-se impossível, a esse ponto, não perceber a ininterrupta gradação sonora das gotas sobre o teto. O aroma amanteigado da pipoca capturava a atmosfera de meu calabouço mental, num calor singelo e libertador.

Adentro as portas do cômodo escuro, sentando-me sobre a poltrona afofada em carmesim aveludado. Minha cela tinha suas luzes apagadas: o breu tomava conta da sala de cinema. Pela primeira vez em tempos, havia apenas o aqui e o agora.
Surge, então, o magnífico som de uma orquestra, fazendo com que arrepios travessos dancem sobre a pista de minha pele. Iluminando meu ser hipnotizado. Me conquistando na graça da curiosidade do que viria a seguir. Tencionando o bombeador de sangue em meu peito em incessantes pulsações. Paralisando meus pulmões. Consumindo meus olhos em fulgor..
Atores reinam no universo projetado no plano. Movimentos ensaiados se tornam poesia para fascinar a visão. O tempo servia o viver. O viver sequer obedecia o cronos.
E há música, leitor. Bela e arrebatadora música. Há cor. Há cor e cadência e música. Há pranto e há riso. Há ódio, há amor. Há guerra, há paz. Há divisão, há aliança. Há queda, há redenção. Há trevas, há luz. Há derrota, há vitória. Há vida, caro leitor meu. Há vida.
Os créditos finais descem pela tela do cinema, e a glória do filme e eu nos despedimos em saudade. E prometo, no mais profundo de meu ser, jamais me esquecer das belezas sensoriais vividas nas últimas duas horas. Ah! Do contrário, viveriam em mim para sempre. Num pedaço de meus assuntos. Num pedaço de minha personalidade Num pedaço de minha alma. E os intensos aplausos eram a mais expressiva forma de dizer “adeus”. Bravo!

Pois a arte elevou a humanidade em mim essa noite. A sétima dentre as artes, minha catártica companheira.. Que me arrebatou em uma graça cativante. Que me encantou em sensações magnéticas e as mais inéditas emoções. Que rompeu o calabouço de concreto e ansiedades. Que tornou em escombros o materialismo que há tão pouco tempo parecia me devorar.
Minha catártica companheira me fez sobrevoar os arranhas-céus e, agora fora da masmorra, concluir que há glória na vida. Ah, leitor! A catarse de uma mera visita ao cinema me levou ao entendimento de que há mais. Mais que a masmorra ansiosa. Mais que a insanidade dos prazos. Mais que o fervor desgastante da rotina. Mais que a incessante corrida dos méritos. Mais coisas, elevadas coisas, reservadas em misericórdia à espécie humana. Mais coisas em uma majestade rotineira.
E então percebo, caro leitor meu, enquanto as pesadas nuvens abrem alas ao tímido clarão da lua, que até no acaso do temporal ao me levar ao cinema, havia mais. Na arquitetura urbana, no engarrafamento diário, há mais, mais coisas. Coisas que a arte viu e em poesia e paixão declama e divulga. Num bonito poema de encantamento e catarse.
