Não só de queratina é feito um cabelo, mas também de histórias. Ultrapassando as barreiras dos padrões, cacheadas abrem suas vidas e seus corações contando as histórias de seus cachos.
Por Júlia Vieira (juliavcamargo@usp.br)
Existem muitas histórias. Engane-se quem acha que um cabelo é só um cabelo. Alguns acham que é apenas uma questão puramente estética, mas os fios vão além. Eles são uma forma de mostrar para o mundo a sua personalidade, as suas raízes, uma maneira de dialogar com as outras pessoas sem precisar usar palavras. Cada cabelo traz consigo uma bagagem de narrativas. Narrativas de empoderamento, de superação, de amadurecimento, de força e de resistência…
A sociedade é permeada por diversos padrões. O capitalismo e a mídia querem padronizar os seres. A todo momento ditam a forma que devemos nos vestir, com quem devemos nos relacionar, o que devemos dizer, o que devemos comer e até como o nosso cabelo deve ser. A ditadura do liso é muito forte e muitos sucumbem a ela. É difícil resistir quando todos arrumam um jeito de criticar os cabelos cacheados e crespos. Essas críticas têm efeito muito negativo na vida de garotos e garotas cacheados, que acabam tendo baixa autoestima e começam a usar métodos de alisamento como chapinhas, escovas, relaxamentos e a conhecida progressiva para diminuírem seus cachos e terem os tão pregados fios lisos.
“Queria muito ter o cabelo do comercial, ter o cabelo da revista. Não queria me ver na menina daqueles comerciais que tinham metade do cabelo cacheados e aí tinha uma revolução, que era uma escova ou uma chapinha incrível, que alisava aquele cabelo”, conta Rayza Nicácio, vlogueira que hoje é conhecida por ser a voz das cacheadas no Brasil. Em frente às câmeras, ela dá um show de autoestima e empoderamento, porém nem sempre foi assim. “Eu me sentia muito mal, eu tinha muita vergonha de ser a menina do ‘antes’ e não a menina do ‘depois’.”
Com seus cabelos extremamente volumosos e os cachos definidos cascateando pelo rosto, a Ray, como é chamada por quem a acompanha, incentivou diversos meninos e meninas a assumirem seus cabelos verdadeiros pela tela do computador. Ela manteve seus fios lisos por anos. Usava chapinha e escova para manter esse efeito e nunca aderiu à progressiva. Por usar esses métodos, a vida de Rayza foi bem limitada. Durante seus anos de “lisa”, ela evitava participar de churrascos, porque a fumaça deixava o cabelo com mau cheiro e ela teria que lavá-lo em seguida, perdendo o alisamento temporário da chapinha. Para manter o cabelo sempre impecável, Rayza evitava sair em dias chuvosos também. Durante a sua adolescência, a blogueira viajou com a sua família para as praias do nordeste por um mês, mas não entrou no mar nesses 30 dias. O medo de que o cabelo enrolasse a privou de diversas coisas, como diversas outras meninas também se privaram e ainda privam.
A jovem Giselle Melo, publicitária, passou pelo mesmo. Durante a adolescência, escondeu os seus cachos das mais diversas formas e isso impactou negativamente a sua autoestima — ela estava presa a necessidade de manter os fios lisos. Porém agora, com 25 anos, Giselle desfila com seus cachos cobertos por flores, cheios de uma autenticidade que revela um pouco de sua personalidade. “A ditadura da chapinha me fez esquecer de quem eu era e das minhas raízes ao ponto de fazer eu me esquecer como era meu cabelo de verdade.” Ela demonstra uma paixão pelo seu cabelo natural e ressalta a beleza dos cachos que a ditadura da chapinha a fez esquecer. “Eu me sentia feia e não sabia que o problema era justamente com o meu cabelo e o fato de ele não acompanhar a minha identidade negra.”
A transição não trouxe apenas a autoestima de Giselle de volta, a transição também fez aflorar a sua negritude. “Com certeza assumir os meus cabelos crespos influenciou no meu reconhecimento como negra. Um dos grandes ‘culpados’ de todo esse processo de aceitação foi Nilton Leal, meu amigo de trabalho, e a religião dele: o candomblé.” O candomblé causou o encontro de Giselle com a suas origens e o amigo a fez conhecer não só a religião, mas algo ainda mais profundo: a sua identidade negra. “Ele derrubou o preconceito enraizado que eu tinha por essa religião e me mostrou o quão linda ela é”, conta. “Através dela, ele me ajudou a resgatar a minha identidade e a valorizar ainda mais a história do meu povo.”
Suani Moraes também teve um encontro com a sua negritude causado pela transição. Depois de resolver assumir os seus cabelos naturais, Suani entrou em um período de pesquisa e de intensas descobertas. “A gente começa a ver que tudo é uma questão histórica e percebe que usava o cabelo liso não simplesmente porque achava bonito, mas porque a sua cultura lhe levava a fazer isso.” Em seus estudos, ela retomou a história de seus cachos, do povo negro e descobriu o preconceito enraizado contra os cabelos cacheados e crespos. “Nós somos negras, nós fomos escravas e não tínhamos oportunidade de vida. Nós éramos daquelas que tínhamos vindo apenas para servir aos brancos. Na primeira oportunidade que nós tínhamos, nós queríamos ser iguais a elas”, conta, referindo-se às mulheres brancas e aos colonizadores. “Não podíamos ser brancas, mas podíamos usar as mesmas roupas, podíamos tentar fazer a mesma maquiagem e podíamos tentar ter o mesmo cabelo.”
A internet não ajudou apenas as pessoas que acompanhavam a vlogger Rayza a assumirem os seus cachos, mas também a ajudou a descobrir e assumir as suas próprias origens. Foi uma troca mútua entre Ray e seus fãs. “Essas discussões começaram na internet, porque na minha vida pessoal, eu não tinha esse tipo de conflito de ‘se eu era negra ou não’.” Rayza Nicácio toca na questão da representatividade. “Como eu falei num vídeo recente sobre ser negra, a minha referência brasileira era a Taís Araújo. As pessoas que eu amava e me inspirava, me inspiro até hoje, eram Rihanna e Beyoncé, que são duas mulheres negras. Mas, eu as via como mulheres negras, eu conseguia me ver nelas, mas eu não me via como uma mulher negra e é muito louco isso.” A descoberta de seus próprios cachos ajudaram Ray a se encontrar. “O meu cabelo foi um peso a mais para eu me caracterizar como mulher negra, além de todos os meus traços físicos, de rosto e todos os meus traços étnicos. O cabelo era uma forma de reafirmar.” Hoje ela usa o espaço do seu canal para tratar sobre essas questões e dialoga bastante com seus inscritos sobre sua negritude.
Sobre ser a porta-voz das cacheadas dentro do youtube, Ray ainda se impressiona. Ela conta que se achava a pessoa menos provável para exercer esse papel, porque o cabelo sempre foi uma questão de insegurança durante sua infância e adolescência. “Eu sou cristã, então eu acredito que Deus usa as pessoas que são menos prováveis, e eu era uma pessoa muito pouco provável, porque eu era extremamente insegura. Sempre fui muito insegura em relação à coisa que mais me assustava, que me ofendia, me oprimia, que era o meu cabelo.”
“Eu sempre falei ‘passe essa mensagem para mais pessoas’, porque eu acho muito importante não só porque o cabelo cacheado é bonito, mas porque é muito difícil tentar mudar o que a gente é, e o cabelo é uma coisa muito especial”, conta “Se a gente der artifícios e técnicas para as meninas finalizarem, é muito mais fácil elas optarem por não fazer alisamentos do que simplesmente dizer ‘ah, tem que alisar, é o único jeito de cuidar desse cabelo’.” Rayza mostra a necessidade da representatividade das cacheadas e dos cacheados. “Dificilmente você vê uma menina que era cacheada e sabia finalizar, sabia os cremes que usar e aí fez progressiva, esse é um assunto raro. Geralmente as pessoas não sabem lidar com o seu cabelo e fazem progressiva.” A finalização citada pela Ray, é um método de definição dos fios. Para movimentar os cachos, aplica-se um leave-in ou algum outro tipo de creme sem enxágue e após a aplicação, massageia-se os cabelos, com ajuda dos próprios dedos ou toalha, fazendo movimentos de baixo para cima. “Acho que a grande maioria das mulheres que alisam o cabelo nem se conhecem cacheadas, porque nunca foi ‘permitido’ a elas ter o cabelo natural. E esse é o maior trunfo dessa libertação”, conta Natália Pereira, recifense ruiva e cacheada.
“A transição é uma coisa que eleva”
Citada pela Ray, Taís Araújo tem sido essa imagem para muitas outras garotas. E foi por uma foto da atriz que Suani decidiu fazer a transição. “Surgiu no facebook uma matéria dela em uma época em que ela havia sofrido preconceito racial e a foto que colocaram dela nessa matéria era belíssima, eu acho que com um maiô cintilante e com o cabelo dela super cheião, super cacheado, maravilhoso.” Ao ver a foto, Suani começou a questionar se o cabelo dela não ficaria daquele jeito. No mesmo dia, ela saiu do trabalho e correu ao shopping para comprar um difusor, estava decidida a ter seus cachos de volta. Porém, a transição não foi simples e fácil como ela pensava.
“Quando eu vi que seria muito difícil, comecei a procurar como as pessoas estavam passando pela transição e a melhor forma que todos indicam é cortar.” Suani tinha longos cabelos que cobriam toda a suas costas. Seu comprimento chegava a cintura e a ideia de fazer o Grande Corte a assustava. “Eu fui cortando aos poucos. Todo mês eu ia no salão e cortava um pouquinho e não via resultado. Eu parei de usar a progressiva, eu usava o cabelo molhado, mas o cabelo não cacheava.” Determinada a ter seus cabelos volumosos e definidos, Suani decidiu se desapegar do cabelo grande. Foi ao salão e contou da sua decisão ao seu cabeleireiro, que no início não acreditou.
“Eu cortei meu cabelo curtinho, quase ‘joãzinho’ pros cachos aparecerem. E com o tempo eu fui entendendo o que as pessoas falam de empoderamento.” Suani explica: “Eu realmente me senti muito mais confiante, eu me sinto muito mais mulher depois que eu cortei o cabelo. Não é que o cabelo escovado me tirasse isso, mas é que eu fui forte para passar por tudo aquilo, que eu fui forte para mudar completamente e é como se isso levantasse você.” A vlogueira Rayza acredita que a transição é revolucionária. “O processo de transição fortalece as pessoas, sabe? E eu acho que é isso que é de maior revolução. É um fortalecimento de dentro para fora.”
Mas a transição também pode ser um período traumático para algumas mulheres e homens, porque é o momento no qual eles vão contra a maré dos padrões. “Durante ela, você se sente feia, seu cabelo não tem jeito e você quer sair e realmente não tem o que fazer.”, conta Suani. Enquanto passa pela transição, os cabelos costumam ficar com duas texturas diferentes e sem uma forma muito definida. Os cachos demoram a aparecer de forma sólida, porém quando eles aparecem, a sensação é mágica. “É algo que eu não consigo explicar, depois que eu cortei meu cabelo é como se tivesse aparecido a pessoa que estava escondida.”
Suani viu o machismo e o preconceito de perto. Gestora de obras, ela trabalha com diversos homens, que a julgaram durante o processo de transição. “Os homens têm um padrão de beleza definido na cabeça”, diz. Ao chegar com os cabelos curtíssimos e cacheados, desafiando esses padrões impostos, Suani ouviu diversos comentários e sentiu olhares pelas costas. “O pessoal ficava me olhando estranho, tirando onda com o meu cabelo. E você escuta coisas como ‘negra e ainda faz isso com o cabelo’ e isso é muito ruim, você se sente muito mal.”
A ruiva Natália Pereira teve seus cabelos alisados desde pequena. Sua mãe não sabia como cuidar dos cachos e fez um relaxamento usando amaciante quando Natália tinha 6 anos ainda. Porém como a química era fraca, ela sempre teve uns cachos ao seu lado. Cameleoa, usou diversos tipos de cabelos durante a vida. Alisou com progressiva quando completou 13 anos, decidiu voltar para os cachos e fez uma permanente afro. Cansou e voltou ao liso. Com os fios escorridos, Natália passou por todos os comprimentos de cabelo imagináveis, até que deixou a cabeleira crescer. Seus cabelos estavam roçando na cintura quando algo sério aconteceu.
“A minha mãe foi diagnosticada com câncer de mama, aí eu parei e pensei ‘putz, minha mãe é tão vaidosa com o cabelo, ela tem tanto carinho para cuidar dele, tanto apego, eu acho que ela vai ficar triste se me ver com o cabelo tão comprido dentro de casa, um cabelo que ela não pode ter’.” A mãe nunca disse isso para a garota, mas ela decidiu que rasparia o cabelo como um ato de amor e companheirismo. Natália conta das dificuldades para manter o cabelo liso: “Eu já tava muito cansada da progressiva, porque é uma escravidão mesmo. A raiz cresce e começa a aparecer e eu sou muito perfeccionista, então eu não gostava daquela raiz aparecendo e nem sempre eu conseguia dinheiro suficiente para fazer o tratamento, porque é caro.”
O desafio de manter os fios alisados aliado ao desejo de se juntar a mãe na caminhada contra o câncer fizeram com que Natália decidisse cortar os longos cabelos vermelhos. Ela cortou e essa foi a última vez que fez progressiva. Hoje ela desfila com longos cabelos volumosos e ardentes que deixam todos de queixo caído. Ela sempre se moveu pela própria vontade, sempre seguiu a vida pelos próprios termos e ressalta a importância disso. “Eu vejo que tem muita cobrança para que as pessoas assumam seu cabelo natural, mas não é uma questão de se assumir ou não, é uma questão de como você se sente bem.”
Natália fala sobre a nova febre de transição, de assumir os cachos, de fazer fitagem para ter a definição perfeita e diz que as pessoas não podem cair nessa armadilha também. “Eu não acho que porque a pessoa tem um cabelo cacheado ou crespo ela tem que usar ele natural. Tem muito disso hoje em dia. As vezes meninas que se sentem muito melhor com o cabelo de química se sentem pressionadas a assumirem seus cachos, porque ‘tá na moda’”. Ela diz que não pode-se sair de uma ditadura para entrar em outra, o desejo pessoal da pessoa deve prevalecer sob o padrão da sociedade. Os cabelos devem ser livres, porque as pessoas são livres.