Por Ana Julia Oliveira (anajulia.oliveira@usp.br)
“Eu adoro filmes porque adoro escapismo. Adoro poder fugir. Acho que quando as pessoas vão se divertir, elas podem se divertir, ter uma experiência visceral e fantástica, e então espero que voltem para casa e tenham uma ótima conversa sobre isso também”. Essa foi a resposta de Jordan Peele em uma entrevista concedida ao UOL acerca do cinema como meio para tratar de questões sociais.
Inicialmente reconhecido por seu papel na série de comédia americana Key and Peele (2012-2015), Jordan Peele, desde então, nunca mais parou. Em sua estreia como diretor, o filme Corra! (Get Out, 2017) lotou salas de cinema, e mais recentemente, as produções Nós (Us, 2019) e Não! Não Olhe! (Nope, 2022) mostraram que o terror não se constrói somente com sustos, mas também com pesadas críticas sociais.
Nascido e criado pela mãe no Upper West Side de Manhattan, em Nova York, Jordan teve contato com as artes desde cedo, o que despertou seu interesse pela atuação e pelo cinema. Ele conta que, conforme crescia, notou como sua maneira de falar se distanciava dos seus amigos negros, se aproximando da fala de sua mãe, uma mulher branca. Essa percepção também serviu como impulso para despertar mais um de seus talentos: a imitação.
Inicialmente, o jovem cineasta tinha como objetivo estudar cinema na Universidade de Nova York (NYU), mas acabou desistindo e mudando não só de faculdade, mas também de curso. Já quase formado no curso de títeres (especialização no teatro de fantoches) na escola de artes liberais Sarah Lawrence College, Jordan abandonou a graduação para formar uma dupla de comédia com sua colega de quarto, Rebecca Drysdale, intitulada 2 White Guys.
Os primeiros passos na comédia…
Após adquirir experiência com a dupla, Peele entrou para o grupo Boom Chicago, em 2000, onde conheceu futuras estrelas do humor americano, como Seth Meyers, Jason Sudeikis e mais tarde, aquele que viria a se tornar seu maior parceiro no ramo, Keegan-Michael Key.
Em 2004, os dois integraram o programa de comédia MADtv e, em 2008, Jordan foi aceito no tradicional Saturday Night Live (SNL), no qual fez diversas aparições interpretando o, na época, candidato à presidência, Barack Obama.
Após o fim de seu contrato com a MADtv, Peele produziu e atuou na série de comédia Key and Peele (2012-2015), ao lado do parceiro Keegan, durante cinco temporadas. Transmitido pelo Comedy Central, o programa foi um sucesso, recebendo um Peabody Award e dois Primetime Emmy Awards.

… E o grande salto para o terror
Após ter se consagrado como um excelente ator e produtor no ramo da comédia, Jordan Peele não se contentou. Ele conta que um dos seus maiores medos é chegar num ponto muito comum para artistas e comediantes, onde eles param de crescer. Pensando nisso, enquanto ainda estava em Key and Peele, ele já pensava no roteiro do seu primeiro longa.
Corra!
“Percebi que a única forma de lutar contra o incômodo dos meus pesadelos era me tornar um dos monstros”, e assim nasceu Corra! (Get Out, 2017). Inspirado nos clássicos de terror, O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) e As Esposas de Stepford (The Stepford Wives, 1975), o filme acompanha Chris (Daniel Kaluuya), um jovem negro convidado a passar um final de semana na casa dos pais de sua namorada branca, Rose (Allison Williams).
Em entrevista ao The Guardian, Peele afirma que “A gênese do filme foi quando Obama foi eleito e havia esse sentimento de que podemos parar de falar sobre raça agora porque acabamos de resolver o problema”. A fim de cutucar a ferida que é o racismo na sociedade americana, Corra! não tem medo de colocar o espectador em uma série de situações desagradáveis, todas vividas pelo protagonista. Tomando como cenário o habitat natural de uma elite liberal branca dos Estados Unidos, que insiste em dizer que não é racista, o longa ao mesmo tempo que reforça estereótipos, se sustenta através de uma estrutura social cristalizada há séculos, na qual corpos negros são valorizados apenas por sua capacidade física.
Peele conta que assim como ao assistir os dois filmes que o inspiraram, ele não se sentiu ofendido por ser homem, ele, na verdade, queria que o mesmo acontecesse com sua obra: que o público se identificasse com o personagem principal. “A principal coisa que Corra! me ensinou sobre o poder de uma história é que esse é um dos poucos jeitos de promover empatia através dos olhos de outra pessoa e é isso que uma boa história e um protagonista forte fazem”.
Com um orçamento apertado de apenas US$4,5 milhões, o filme foi um sucesso, arrecadando US$255 milhões nas bilheterias, e ainda sendo indicado a duas categorias no Globo de Ouro, ambas como comédia (o que gerou revolta pelos fãs), e a incríveis quatro categorias no Oscar. Em sua estreia como diretor e roteirista, Jordan Peele encerrou a noite com um prêmio de Melhor Roteiro Original em mãos e a conquista de ter sido a primeira pessoa negra a vencer na categoria.
Em seu discurso, ele agradeceu os envolvidos no processo e acrescentou: “Eu parei de escrever esse filme umas vinte vezes porque achei que era impossível. Mas sempre voltava para ele porque sabia que se alguém me deixasse fazer, as pessoas assistiriam e entenderiam”.

Nós
“Tem uma família na nossa garagem”. Imagine que, durante uma viagem à praia com sua família, todos são surpreendidos por um grupo de indivíduos fisicamente idênticos a si mesmos em frente à sua casa, motivados unicamente por sua sede por vingança. Essa é a premissa do segundo trabalho do diretor, Nós (Us, 2019), que, apesar da proposta muito diferente do filme anterior, reproduziu o mesmo sucesso arrecadando novamente US$255 milhões nas bilheterias.
Baseado em seu medo incurável de sósias, Jordan Peele cria no longa uma narrativa mais subjetiva quando comparada à Corra!, na qual se torna difícil distinguir heróis de vilões, afinal, trata-se de uma luta contra o próprio eu. A ironia não escapa de Peele, que em resposta ao The Guardian, comenta: “Temos medo do ‘outro’ sombrio e misterioso que virá nos matar, roubar nossos empregos e fazer o que for, mas o que realmente tememos é aquilo que estamos suprimindo: nosso pecado, nossa culpa, nossa contribuição para nossa própria ruína…”.
“Somos nossos piores inimigos, não apenas como indivíduos, mas, principalmente, como grupo, como família, como sociedade, como país, como mundo”
Jordan Peele em entrevista ao The Guardian
Mais do que apenas uma crítica aos Estados Unidos, o filme se compromete em outras pautas, como, por exemplo, a respeito da cultura de privilégios que rege a sociedade. “É sobre identificar o tipo de privilégio social no qual estamos incluídos e ao qual não damos tanto valor. E perceber: qual o meu papel em todo o mal do mundo?”.
Com atuações de tirar o fôlego de Lupita Nyong’o, Winston Duke, Evan Flex e Shahadi Wright Joseph nos papéis da família principal, Nós convida o público a revisitar a vida confortável em detrimento do sofrimento alheio. A trama também revela ao espectador que não é preciso ir longe para encontrar o perigo e que, muitas vezes, esse está mais perto do que se imagina, mais especificamente, no reflexo do espelho.

Não! Não Olhe!
“Lançarei imundícies em você, tratarei com desprezo e farei de você um espetáculo.” É com essa frase, tirada de um versículo bíblico, que Jordan Peele inicia seu trabalho mais recente, Não! Não Olhe! (Nope, 2022). A obra segue um casal de irmãos responsáveis por uma fazenda de cavalos utilizados em gravações de Hollywood, OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer), que se deparam com uma criatura extraterrestre no céu, e junto com ela, uma oportunidade de fazer sucesso, ou melhor, de se tornarem inesquecíveis.
Com um dos maiores sets de filmagens da história cinema (cerca de 3 km de extensão), Peele opta pela abordagem da metalinguagem para contar sua história, como o primeiro registro de um jóquei montando em um cavalo e mais tarde, o uso de câmeras IMAX para produzir um filme. Em entrevista ao Fandango, ele conta: “Eu escrevi [o filme] em uma época em que estávamos um pouco preocupados com o futuro do cinema. Então, a primeira coisa que eu sabia é que queria criar um espetáculo. Eu queria criar algo que o público tivesse que assistir.”
Espetáculo. Talvez essa seja a palavra-chave e discussão principal do filme. Até onde estamos dispostos a ir para garantir um bom espetáculo? E por que a espetacularização da tragédia nos atrai tanto?
Pensando nisso, Peele apresenta ao espectador outro personagem importante na trama. Jupe (Steven Yeun) é um ex-ator mirim que, durante sua infância, protagonizou um acidente traumatizante dentro de um set de filmagem, o qual, anos depois, se converteu em sua fonte de renda, assim que descobriu que o ocorrido interessava muitos turistas.
“O filme é sobre espetáculo, e o nosso vício em espetáculo, o fato de sermos atraídos para isso, mas também é sobre nossa natureza, sobre nossa necessidade interior, insidiosa ou não, de protagonizar o espetáculo, de ser visto, de ser reconhecido por quem somos, por aquilo que somos.”
Jordan Peele sobre Não! Não Olhe!
Ao fazer uma crítica à indústria cinematográfica, Jordan Peele não ignora a questão racial, fazendo questão de direcionar os holofotes a figuras históricas. No longa Não! Não Olhe!, por exemplo, o diretor representa como teria sido o homem negro responsável pela primeira imagem em movimento, que por sofrer uma tentativa de apagamento, raramente é mencionado na história do cinema.

Planos para o futuro
E fazendo jus ao seu medo de se contentar em parar de crescer, a mente de Jordan Peele não para de trabalhar em outras ideias mirabolantes.
Atuando também como produtor, sua próxima obra intitulada HIM acompanha um jovem atleta em ascensão, interpretado por Tyriq Withers, que sofre uma lesão e precisa se afastar da carreira. A situação muda quando Tyriq recebe a proposta de ser treinado por um famoso quarterback aposentado, interpretado por Marlon Wayans, conhecido por As Branquelas (White Chicks, 2004).
O trailer revela cenas ambientadas em grandes estádios, utilizando de elementos do terror para abordar a seguinte questão: até onde um atleta está disposto a ir para se tornar o melhor?
Com estreia prevista para 18 de setembro no Brasil, Peele promete levar seu público em peso novamente para as telas do cinema, e proporcionar outra experiência que gere longos diálogos no caminho para casa.
Confira o teaser:
*Imagem de capa: Reprodução/Wikimedia Commons
