Por Renan Affonso (rsilvaaffonso@usp.br)
“O Escarafunchar é um sonho que foi compartilhado, virou realidade, e que significa alguma coisa importante para as pessoas, de dentro e de fora do grupo”
César Augusto
Longe dos grandes teatros das cidades grandes, a arte vibra em sua mais pura essência nas peças independentes do interior. Onde qualquer simples espaço se torna palco de cultura e luta social. É essa mentalidade que mantém vivo o grupo teatral Escarafunchar, de Pilar do Sul, cidade no interior de São Paulo.
O nascimento e a trajetória
Localizada a pouco mais de 150 quilômetros da capital paulista, Pilar do Sul é uma tradicional cidade interiorana de poucos habitantes que guarda um verdadeiro tesouro: o Escarafunchar. Criado há onze anos, o grupo tem como um de seus fundadores o professor de arte César Augusto, que iniciou o projeto quando estava no fim da sua licenciatura em teatro e arte-educação na Uniso (Universidade de Sorocaba).
Em entrevista para a Jornalismo Júnior, César, popularmente conhecido como Guto, contou que com o fim da graduação seu plano era se mudar para São Paulo e tentar a vida artística na maior cidade do país. Mas, após ouvir conselhos de sua professora, decidiu continuar na pequena cidade do interior para tentar criar um teatro pilarense, visto que na metrópole já existiam muitos artistas e lá ele seria “apenas mais um”.
Depois da decisão de seguir a vida na cidade, Guto passou a oferecer oficinas semanais de teatro de forma voluntária em um espaço cedido pela Secretaria de Cultura do município. Como fruto da oficina surgiu a peça Dias de chuva, dias de terra, que, juntamente com outra apresentação trazida de um grupo de teatro de Sorocaba, compôs a primeira Mostra de Teatro de Pilar do Sul em março de 2012.
Atualmente, Guto integra o quadro de atores do grupo, além de ser um dos organizadores e articuladores do projeto. “Um lugar de multitarefas, sou ator, diretor, produtor e quando é preciso sou cenógrafo, sonoplasta e muitas outras coisas”.
O professor também é aluno do mestrado em pedagogia do teatro do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP). O foco de seu estudo é o ensino do teatro na educação, formal e não formal, e a propagação dessa arte como ação cultural. No mestrado, Guto tem a oportunidade de contar a história do Escarafunchar e abordar os desafios de sobrevivência artística no interior.
Resistir e sobreviver
Com as consequências da desvalorização cultural no Brasil, sobretudo no interior, os artistas encontram um cenário de falta de oportunidades, incentivo e estrutura. “Fazer teatro no interior é uma luta árdua porque, além de não existirem políticas públicas, não existe formação técnica”, reforça o ator e fundador do Escarafunchar. Guto ainda conta que a evolução dos artistas e dos trabalhos do grupo muitas vezes não podem ser priorizados, porque eles precisam se desdobrar para conseguir sustentar os custos do projeto. “Além de fazer teatro, nós também temos que fazer política, tenho conversas com o secretário de cultura da cidade e têm atrizes do grupo que conversam com professores da rede pública para desenvolver projetos”.
Já para manter a sede do grupo funcionando, o ator conta que eles utilizam diversas estratégias de arrecadação, que vão desde a venda de alimentos na cidade, até a organização de eventos como noites temáticas e festas.
Esses eventos aumentam o oferecimento de atividades culturais da cidade, mas escancaram a realidade dos artistas independentes brasileiros que precisam realizar funções não artísticas para compensar o esquecimento e a negligência governamental. “Nosso principal obstáculo é a falta de políticas públicas para a cultura, sobretudo na esfera municipal. Somos o único grupo de teatro na cidade, então se tivesse um projeto de incentivo cultural nós conseguiríamos ser contemplados”, analisa Guto.
Outra possibilidade de arrecadação monetária é a venda de ingressos para os espetáculos apresentados pelo grupo. “Fomos entendendo que a gente precisa viver do teatro. Depois da pandemia, a gente foi conseguindo focar no fazer teatral para pagar o aluguel e hoje a gente produz espetáculos com bilheteria, além das outras atividades que já faziamos”, explica Guto.
O possível problema em cobrar a entrada nas apresentações é a baixa adesão do público. De acordo com o professor de teatro, mesmo com 11 anos de trajetória, muitas pessoas ainda não conhecem o Escarafunchar. “Nossa sorte é que mesmo passando por dificuldades, as pessoas que nos conhecem sabem que somos um grupo de resistência”.
Para resolver a questão artística em Pilar do Sul, Guto conta que busca contribuir no desenvolvimento de políticas públicas na cidade. Foi com esse raciocínio que o mestrando ocupou o cargo de secretário de cultura da cidade e hoje é presidente do conselho municipal de políticas culturais, onde tenta elaborar um plano municipal de cultura. “Espero que num futuro próximo a gente tenha editais no nosso município que ajude projetos artísticos”, diz.
Mesmo com os desafios diários de sobrevivência, existe uma coisa que mantém o sonho do Escarafunchar em pé, o público:
“Uma das maiores alegrias que nós temos, apesar de não termos incentivo, é ter um público que nos acompanha. As pessoas depositam confiança na gente”
César Augusto
A prática
Atualmente, a atuação dos integrantes do Escarafunchar se resume em apresentações teatrais, realização de projetos culturais e o oferecimento de oficinas de teatro dadas por alguns dos atores que também são professores. O grupo sempre opta por mesclar trabalhos mais densos e reflexivos, baseados em pesquisas e na literatura, com montagens mais “leves”, como peças infantis e infantojuvenis. “A gente pode sim fazer um espetáculo reflexivo, e a gente também pode fazer espetáculos mais cômicos”, conta Guto.
A peça Estação Lembrança, lançada em maio de 2023, é a estreia mais recente do grupo e entra na seção de montagens leves que têm como objetivo entreter e tirar boas risadas do público. A peça é o primeiro texto do Escarafunchar que fala sobre Pilar do Sul. Ela acompanha a chegada da rádio em um dos bairros mais tradicionais da cidade na década de 50.
A comédia é protagonizada por personagens caricatos com traços dos pilarenses, alguns inclusive foram inspirados em pessoas reais do convívio dos atores. Essa escolha resultou em uma grande identificação do público que assistiu a peça e garantiu o sucesso do espetáculo. “Conseguimos em 6 apresentações reunir mil pessoas, que para Pilar do Sul é muita coisa. Quando a gente dialoga com a história, as pessoas se identificam”, afirma o ator, que já sonha com a continuação da história de Estação Lembrança.
Além do sucesso na estreia, o ator também afirma que a montagem representa a evolução artística do grupo: “É um espetáculo que representa o nosso crescimento, e, principalmente, o processo de aceitação com o contexto em que estamos inseridos. Um projeto feito da gente pra gente”.