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O que te serve de janela

Como entender quatro contêineres recheados de arte e abertos à visitação em plena Av. Paulista? Texto por Fillipe Augusto Galeti Mauro (fillipe.mauro@gmail.com) Fotos por Carolina Vellei (carolina.vellei@gmail.com) São Paulo choca o olhar. Choca em seu volume, choca em sua extensão, choca em seu pulso. Vibrante, efervesce no cotidiano, na naturalidade com que um transeunte é incorporado por …

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Como entender quatro contêineres recheados de arte e abertos à visitação em plena Av. Paulista?

Texto por Fillipe Augusto Galeti Mauro (fillipe.mauro@gmail.com)

Fotos por Carolina Vellei (carolina.vellei@gmail.com)

São Paulo choca o olhar. Choca em seu volume, choca em sua extensão, choca em seu pulso. Vibrante, efervesce no cotidiano, na naturalidade com que um transeunte é incorporado por uma rotina. A identidade não desaparece. Individualmente mascara-se na volatilidade de um coletivo concreto. Matizes acinzentados camuflam o olhar. Adestram um pensamento naturalmente caótico em fronteiras que, quando rompidas, frutificam-se no êxtase de perceber um algo além. Pensa-se o espaço.

“Na tarde tão fria, busquei teu calor, teu amor em São Paulo”, Tom Jobim.
“Na tarde tão fria, busquei teu calor, teu amor em São Paulo”, Tom Jobim.

A Avenida Paulista é a maior de suas clicherias. Matriz pronta para timbrar os contornos mais seguros da metrópole da garoa. Vista de cima, é artéria humana blindada por espigões de concreto. Ilusionista, tal qual o organismo a que pertence, esconde sob a pele de seu frenesi a absurda possibilidade do parar. De se reconhecer como algo em algum lugar, em algum momento. Aquela faixa em asfalto, que, entre dois vales, quer tocar o céu com dedos de metal, é disciplina obrigatória para a aprendizagem cruel a que se propõe esta cidade. Em seus domínios, da Consolação à Treze de Maio, realiza-se quem cessa o trotear e saca as viseiras de um dia-a-dia desenfreado, por mais difícil que isso venha a aparentar.

E mesmo quando tamanha restrição é vencida, ao semblante soa estranhamento. Dos camarins do conhecido, surgem personagens duvidosas, assimétricas aos filtros de um universo supostamente palpável e cômodo. Acordamos de um sonho ou voltamos novamente a sonhar? Não há ambigüidade alguma. Trata-se apenas de um paradoxo, coisa comum por esses cruzamentos. Sim, São Paulo choca o olhar.

Deixe com mais leveza os vagões do metrô. Permita que as escadas rolantes da estação o conduzam, sem que, vitimado por seus impulsos, escale os degraus na pressa de uma pontualidade ilusória. Ao atingir a superfície, pare. A cidade tão agressiva lhe recompensará de maneira curiosa. No coração da Avenida Paulista, nos arredores do Masp e do Parque Trianon, cresce um outro meandro temporário, discreto e imperceptível à visão que não se deixa percorrer por seus entornos. No âmago do volátil, repousam quatro contêineres vermelhos. São Paulo não é portuária, e por seus rios não transita embarcação cargueira alguma. Não é lá que se espera encontrar essa variedade de objeto. Dois como base, dois compondo um mezanino. Começamos a deixar o usual. Os passos desaceleram. São Paulo se revela em seus mais excêntricos caprichos.

“Das grã-finas, nas boates, dos Barões, em Cadillacs, desfilando na avenida”, Nelson Gonçalves.
“Das grã-finas, nas boates, dos Barões, em Cadillacs, desfilando na avenida”, Nelson Gonçalves.

As portas da grande estrutura estão todas abertas. Na sociedade do restrito, do proibido, dos muros, grades e portões, é com receio que todos se aproximam. A tensão arrefece paulatinamente. A recepção se dá bizarra. O traficante obeso e a esposa gigante com seu marido anão preenchem toda a frente escancarada dos blocos com os fait-divers do Notícias Populares, entremeado em figuras grafitadas por Marcelo Zuffo, enraizadas tanto na própria instalação quanto nos batimentos paulistanos. Principio por interrogá-la, mas não compreendo a resposta. Quem traduz seu idioma peculiar é Henrique Luz, curador do N.A.U. BR, o Núcleo de Arte Urbana. Ele e mais dezessete artistas são pais e mães daquele ser superficialmente ininteligível, resultante de um longevo matrimônio deles com a urbanidade.

“E nesse dia então. Vai dar na primeira edição. Cena de sangue num bar da Avenida São João”, Maria Bethânia.
“E nesse dia então. Vai dar na primeira edição. Cena de sangue num bar da Avenida São João”, Maria Bethânia.

A genética se comprova logo ao primeiro passo que se dá rumo ao interior da intervenção. Apalpo as paredes na busca por uma solução para minhas suspeitas. Sou ignorado e é Henrique que me fornece a informação-chave:

—São placas cimentícias.

“Silêncio. O sambista está dormindo”, Beth Carvalho.
“Silêncio. O sambista está dormindo”, Beth Carvalho.

Lá estava uma parcela do fenótipo paulistano. Deixávamos a concretude, mas esta ainda nos acompanhava por meio de outros significantes. Como o idioma persiste incompreensível, repito o procedimento para as janelas tingidas em vermelho. Dessa vez é Alex Tessitore, outro genitor dos contêineres, que nos traduz a réplica emblemática:

—O vidro com o filtro vermelho cessa a claustrofobia do visitante, mas, mesmo assim, não dá saída para a mesma realidade a qual pertencemos.

O vermelho nos conduz a outros tons, distintos do cinza e do preto. Na porção herdada de Flávio Rossi e Fernando Costa Netto, surge a revelação de que, sob a fugacidade da vida urbana, se escondem formas e cores de um universo inusitado, para o qual raramente nos atentamos. Mesmo no vácuo humano de uma São Paulo plenamente desconhecida, ainda assim, lá estão os nossos traços. Dirigindo-se à esquerda, as cores se intensificaram em elementos típicos da Pop Art. Sobre as silhuetas do Masp e do Cristo Redentor se destaca a união de técnicas digitais e analógicas como alma do processo produtivo.

“Marginal de Vila Mariana. Tia tiete do Tietê. Sofredora corinthiana. Padroeira de São Gererê”, Rita Lee.
“Marginal de Vila Mariana. Tia tiete do Tietê. Sofredora corinthiana. Padroeira de São Gererê”, Rita Lee.

Subimos ao mezanino. Tomei fôlego e me arrisquei a tentar decifrar o dialeto daquele ser. Li uma linguagem saltando aos olhos, que não deixam de tridimensionalizar aquilo ao cotidiano planificado. Falhei. Henrique se aproxima do filho com maior cautela. Sintoniza a audição em uma freqüência mais apropriada. Tomando parte de Celso Gitahy e Simone Sapienza, ele me fala de “seqüelas da vida urbana, uma série de pensamentos organizados de maneira quase que freudiana”. E me acrescenta:

—Não é grafite, é poesia urbana.

“Um dia o Senhor apontou o farol das estrelas, para uma terra bonita, feliz e selvagem, onde homens de estranha coragem, entoavam seus cantos de guerra”, Francisco Alves.
“Um dia o Senhor apontou o farol das estrelas, para uma terra bonita, feliz e selvagem, onde homens de estranha coragem, entoavam seus cantos de guerra”, Francisco Alves.

Essa tal de poesia surge de um verbo grego, poíesis, ao qual se aplica a tradução criar. De fato, as paredes daquele contêiner, em especial, criam. De cartazes que evocam “Pinócchio e Geppetto criança jogado no meio da máfia” e “Tô de Chico. Me deixa”, ao mero incandescer de uma lâmpada negra, surgem elementos, manchas que saltam ao olhar. Os painéis da loucura, cegos pelos mesmos parafusos e porcas que perderam, mudam suas cores. Quanto não daríamos para ter em nosso interior uma lâmpada tal qual a dos Contêineres, capaz de conferir expressividade à tinta invisível de nossas mentes?

“A Paulicéia devairou. A Paulicéia pirou, pirou. A Paulicéia devairou. A Paulicéia pirou, pirou”, Made In Brazil.
“A Paulicéia devairou. A Paulicéia pirou, pirou. A Paulicéia devairou. A Paulicéia pirou, pirou”, Made In Brazil.

São Paulo choca em seu volume. Spencer Tunick, embora norte-americano, também. Sua capacidade de convencer toda uma multidão a se aglutinar nua é realmente abundante. A performance coletiva já ocorreu no mundo todo e, ao contrário do contexto no qual um mero olhar predisposto nos insere, passa longe do erótico ou do pornográfico. Vemos pênis, vemos seios e bundas. Mas acima desta plataforma, há destaque para o caráter orgânico das interações urbanísticas das grandes cidades. Os contêineres emitem um ríspido grunhido. Henrique esclarece:

—Flash Mobs são uma bobagem perto disso.

“Risco o meu caminho de batalha. E ralação. Traço o meu destino desta vida. Em contra-mão”, Adryana Ribeiro.
“Risco o meu caminho de batalha. E ralação. Traço o meu destino desta vida. Em contra-mão”, Adryana Ribeiro.

Desvio levemente o semblante e me deparo com as gravuras de Pedro de Kastro. Sou informado de que se tratam de impressões digitais em acrílico, previamente executadas em pena e com nanquim. Leio uma enchente e ondas que carregam um automóvel insistente por permanecer na via, em uma mesma direção. Henrique abre-me a mente para dunas de areia sedimentando edifícios incrustados por dutos, canalizações e turbinas aéreas, sobre as quais permanece discreto, sem destaque algum, um raro morador, contemplador de uma paisagem pós-apocalíptica que ainda reserva (e no repertório de Kastro sempre reservará) um resquício de vida. Um pai sempre conhece seu filho com maior profundidade que um visitante esporádico ou um amigo sazonal. A menção ao “pós-apocalíptico” fez recordar o longa de Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro, Delicatessen, em que, num futuro distante, a escassez de comida se faz tão intensa que alimentos tornam-se moedas de troca.

Antes de descer novamente as escadas, fomos levados à um televisor posicionado em frente a um assento “estofado” com vidro estilhaçado, acomodado sobre um tapete rosa-choque em forma de ameba. Henrique nos deu um fone de ouvido e pressionou a tecla play do aparelho de DVD. O título da vídeo-instalação era Relaxe, de Renata Barros. Ao ser exibido sem áudio, surge a impressão agonizante de que as grades sobrepostas a partes do corpo humano nos aprisionam e, por vezes, nos ferem. É, contudo, com os fones adicionando precisão sonora à experiência que a obra ganha duplicidade. O que antes apenas feria e aprisionava a nós mesmos, espectadores, poderia agora atordoar e torturar a alteridade virtual apresentada. As variedades de mantras reproduzidos nos colocavam em condição de voyeurs: havia um outro por detrás daquela segregação e buscá-lo submergia-nos em transcendentalismo, em relaxamento.

Acreditava que os contêineres se colocavam praticamente decifrados. A linguagem do Mosaico Urbano aos poucos se fazia mais afável. Enxergar o cotidiano em seu avesso, diga-se de passagem, o nosso avesso e não necessariamente o avesso real, se materializava em uma proposta envolvente e luzidia. Mas como para os Contêineres todo caos psíquico (e o meu não era excessão) surge ao avesso, dissecado, logo se esvaía o protótipo de empolgação.

“Salvai-nos por caridade. Pecadoras invadiram. Todo centro da cidade. Armadas de rouge e batom. Dando vivas ao bom humor. Num atentado contra o pudor”, Tom Zé.
“Salvai-nos por caridade. Pecadoras invadiram. Todo centro da cidade. Armadas de rouge e batom. Dando vivas ao bom humor. Num atentado contra o pudor”, Tom Zé.

Percorremos novamente as escadas, iluminadas por uma fonte que, ainda que natural, se distorcia e refratava, complementando o ideal de perda de contato com as silhuetas às quais estamos habituados. Elas nos conduziram ao último contêiner do Mosaico, uma sala que em suas luzes nos transportam quase que imediatamente ao Red Light District de Amsterdã. Henrique me pergunta, encabulado, provavelmente alertado pelos Contêineres:

—Te remete a isso?

As lâmpadas em neon percorrem o espaço e, por meio de sua habilidade em alertar a presença de um todo noctívago por essência, nos atentam para detalhes destoantes do conjunto. O que era apenas uma cadeira forrada por uma grossa placa de vidro estilhaçado se multiplica em diversas poltronas de igual composição. Aproximo-me. São Paulo é ilusionista. Os Contêineres também. Os estilhaços são, na realidade, trincos de vidro blindado, alvejado por armas de fogo. Pergunto a Henrique se posso tocar. Ele diz que sim e sugere que eu me sente. Receio (a fotógrafa recusa).

“São oito milhões de habitantes. De todo canto em ação. Que se agridem cortesmente. Morrendo a todo vapor. E amando com todo ódio. Se odeiam com todo amor”, Tom Zé.
“São oito milhões de habitantes. De todo canto em ação. Que se agridem cortesmente. Morrendo a todo vapor. E amando com todo ódio. Se odeiam com todo amor”, Tom Zé.

—A reação é sempre a mesma— ri — todos tem medo de se sentar e, quando se sentam, logo saem por aflição.

Concordo e me pergunto como, depois de tantos tiros, o vidro ainda tem tanta sustentação. Em lugar do tapete amebóide, agora piso em corpos de crochê, em gotas de sangue que parecem ter sido confeccionadas pela boa vóvó do imaginário comum.

— Alê Jordão intitulou esta instalação de Sex&Violence. E aonde se encaixa o sexo?

—Esta intervenção faz parte de um happening— me traduz Henrique—do qual participam diversas garotas. A sensação que fica é a de que, após tanto erotismo e sensualidade, resultam os objetos colocados, isto é, as cadeiras alvejadas, os corpos e as gotas de sangue.

Os Contêineres nos absorvem e mal percebo que o espaço vai aos poucos sendo tomado por visitantes. Henrique conta que, em média, por dia, mil pessoas tem desviado o olhar e dirigido o tempo à intervenção. Seu filho, parece, está sendo bem-sucedido. Um grupo de estudos de arte urbana solicitou o local para uma de suas reuniões. Pego-me, então, ouvindo trechos de Walter Benjamin e seu A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. “O que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura”, nos diz o pensador alemão. Mas os contêineres são irreprodutíveis e a única coisa que deles sai é justamente um horizonte mais amplo perante aquilo que os próprios dias murcham.

“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que vi. De mau gosto, mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho”, Caetano Veloso.
“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que vi. De mau gosto, mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho”, Caetano Veloso.

Ao deixar a porta de entrada, a luminosidade causa desconforto. Somos obrigados a fechar os olhos para que estes, segundos após, voltem a se calibrar a uma condição primordial. É como aprender a respirar debaixo d’água para, logo depois, retornar à vida terrestre. Henrique termina por lançar uma frase que não sei se provém dele, enquanto pai, ou de seu próprio filho, ainda de portas escancaradas ao público, que não cessa de entrar no local e se questionar sobre cada detalhe proposto:

—Quero fazer com que as pessoas pensem o espaço em que elas vivem.

São Paulo choca a si própria.

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