Repórter convive com a rotina de uma rua do centro e conta a história de personagens surpreendentes
Texto e Fotos por Alessandra Alves
Quintino Bocaiúva. O nome refere-se ao jornalista e político brasileiro, um dos principais defensores da causa Republicana. Após a Proclamação do novo regime, ele foi o primeiro ministro das relações exteriores, entre 1889 e 1891, sendo influente na Questão Platina (conflito envolvendo Brasil, Argentina e Uruguai sobre o domínio das águas da Bacia Platina). O Globo, O Estado de São Paulo e O País foram algumas publicações em que Quintino Bocaiúva trabalhou, além de ter fundado o jornal “A República”. Curiosamente, Quintino foi quem convidou um rapaz mulato para integrar a redação do jornal Diário do Rio de Janeiro. Nome do convidado? Joaquim Maria Machado de Assis.
Mas Quintino Bocaiuva não se refere apenas ao jornalista brasileiro. Esse é também o nome de uma rua cujo início se dá na Praça da Misericódia , em São Paulo. Conhecida por exibir parte da arquitetura histórica da cidade, essa rua apresenta grande diversidade de gente, de histórias, de lojas, cores, de sabores e de aromas: sebos, lanchonetes, churrascarias, papelarias, loja fitoterápica, bancas de jornal, chapelaria, garis, comerciantes, cozinheiros, paraenses, baianos, mineiros, paulistas, advogados, estudantes, moradores de rua e policiais.
Ao pedir informações a um jornaleiro no local sobre o prédio de arquitetura histórica localizado em frente à praça, sou informada de que no segundo andar, em cujas janelas estão instrumentos musicais coloridos, há uma tradicional loja de instrumentos musicais. O colorido desses instrumentos contrasta com o cinza do concreto, chamando a atenção das pessoas que passam pela Praça.
A música da arquitetura paulistana
Ao entrar no prédio e subir as escadas, vejo um pôster com imagens dos Beatles na porta da loja. O Palacete Thereza Toledo Lara foi construído em 1910 e tombado há alguns anos como patrimônio histórico. Ao entrar na loja, vejo uma infinidade de instrumentos: saxofone, violão, cavaco, bateria, teclado, berimbau, guitarra flamenca e flauta são alguns deles. A diversidade também é vista nos músicos tratados pelos diferentes tipos de material: songbooks de Tom Jobim, Villa-Lobos, Jacob do Bandolin e Elis Regina, CD’s dos Roling Stones além de partituras de compositores como Bethoven, Bach e Stravinsky. Há materiais escritos em diferentes idiomas como francês, espanhol, italiano e alemão. Muitos materiais são importados, principalmente as partituras, cujo mercado no Brasil é escasso, segundo informaram atendentes da loja.
Enquanto vejo a diversidade de materiais vendidos na loja, um homem pergunta a um dos atendentes se ali há sonetas de Bach. “São uma raridade. Comprar coisas assim é um investimento, é caro e é para quem gosta”, conta Marcos Barcellos, que estudou teclado e piano durante nove anos em um conservatório localizado na cidade de Barretos. Para ele, o centro de São Paulo foi abandonado e virou centro financeiro. “Não tem vida aqui”. Ele compara o vazio do centro de São Paulo ao da região de Wall Street, centro financeiro de Nova York.
Marcos também acha que o centro de São Paulo é muito mal cuidado. “Há muito lixo orgânico e humano espalhados por aqui”, diz ele, referindo-se aos moradores de rua. “Eles pedem dinheiro, enchem o saco”. Ele aprova a idéia de revitalização do centro, contanto que ela seja bem administrada: “Se tiver mais comércio, a polícia fica mais presente e os bandidos vão saindo daqui. Só não pode mexer na arquitetura histórico que temos aqui” o que, segundo ele, poderia ocorrer com o aumento de empresas sediadas no centro. Ele diz adorar a arquitetura dessa região e tem como local preferido o prédio localizado ao lado da Caixa Econômica Federal, onde há uma abóbada verde topázio de onde se avistar boa parte do centro.
Homero, atendente dessa loja há muitos anos, também participa da conversa.”Esse prédio é único. A arquitetura, o elevador. É muito bem conservado por dentro”, diz ele. Sobre o tombamento histórico, ele diz que não se pode alterar a estrutura interna do edifício, como encanamento e a parte elétrica. Homero, imigrante português, diz adorar o centro de São Paulo. Por que? “É diferente: tudo converge para cá”, explica ele.
Ele diz ter sido assaltado poucas vezes e avalia que houve aumento do policiamento local. Sobre os moradores de rua, Homero diz que, há vinte anos, o centro deixou de ser agradável devido ao grande número de mendigos que há no local. “Mas não é culpa deles [mendigos]”. Homero acha que as pessoas devem seguir dois princípios: compreensão e tolerância. “A maioria deles é infeliz e não mau elemento. Nem todo mendigo é bandido. Desemprego e problemas familiares: são fraquezas humanas, pode acontecer com qualquer um de nós”, diz.
Homero afirma ser um simples admirador de música e de quem a executa. Músicos e estudantes são os principais clientes da loja em que trabalha: “É um mercado muito específico. A maioria das partituras são importadas ”, diz Homero. Ele conta ainda que a esquina entre a Quintino Bocaiúva e a Rua Direita é conhecida como a “esquina musical”da cidade – décadas atrás, esse prédio foi sede da Rádio Record. Em uma parte do sebo, há documentos raros em exposição: fotos da Rádio Record e do contrato assinado entre ela e Adoniran Barbosa.
PM, a abordagem da mídia e de pessoas
Ao andar pelas ruas do centro, é fácil encontrar vendedores de jóias e celulares como Antônio Alves. Usando um colete amarelo no qual se lê “compro jóias”, ele leva pessoas que querem vender jóias e celulares a lojas da região.”Se fechar negócio, a loja me paga uma comissão depois”, conta ele. Antônio fala que essa comissão não possui valor fixo, mas calcula que ela equivale a 10% do valor pago pelo produto. As lojas só aceitam produtos com nota fiscal, pois é comum aparecerem produtos falsificados ou roubados. Enquanto conversava com Antônio, um homem tenta vender um celular por 50 reais, sem nota fiscal. “Aposto que é roubado”, diz Antônio.
Pergunto como é a relação entre a polícia e vendedores como ele. “Eles não estão mexendo muito com a gente. Eles pediram para não usarmos coletes e já chegaram a pegar alguns da gente”, responde. Seu Antônio conta que trabalha nisso por falta de opção. “Trabalhei numa montadora de carros por anos. Fui demitido e então fui ser vendedor ambulante. Agora faço isso daqui. Gostar, eu não gosto, mas é o que tem para fazer”, conta ele. Apesar disso, Antônio diz que não pensa em voltar para o Ceará, onde nasceu. “Eu gosto mesmo é daqui. Moro há vinte anos em São Paulo, construí minha família aqui. Só volto para lá se eu juntar uma grana”, conta.
Após falar com Antônio, vejo dois policiais militares parados próximos à Praça da Misericórdia. Aproximo-me deles e começo a conversar. O PM M. Ferreira conta que eles ficam no local das 5 às 14 horas, voltando ao fim da tarde. Durante a madrugada, é comum haver ONG’s que, parceiras da Prefeitura, passam pelo centro distribuindo “sopão” aos moradores de rua. “A Quintino fica cheia de mendigos e fica um monte de sujeira”, diz o PM.
Pergunto sobre a violência nessa região central da cidade. Thiago, o outro PM, conta que a maioria dos roubos é feita com facas, sendo pilhas e barbeadores objetos muito saqueados. “São pequenos, fáceis de carregar e valem mais do que outros objetos pequenos”, conta ele. Segundo Thiago, o dinheiro obtido com a venda desses produtos roubados é empregado na compra de drogas.
Sobre o centro de São Paulo, Ferreira afirma adorar a região porque tem todos os tipos de pessoas. ”Ganhamos muita experiência. Moradores de rua do centro vêm de vários tipos de periferia”. Ele conta que o centro é rota de fuga para criminosos e, por isso, “polícia que trabalha no centro pode trabalhar em qualquer outro lugar”.
Sobre a abordagem em relação a suspeitos, Thiago diz: “Se a pessoa tem uma atitude suspeita, já fico desconfiado”. Pergunto então qual a definição de “atitude suspeita”: “se uma pessoa está vindo em nossa direção, olha para nós e desvia o caminho, já ficamos de olho. Se traz uma blusa de um lado ou movimenta só um braço, isso pode indicar que a pessoa carrega uma arma”. Thiago fala que há bandido de terno e gravata e que “não está escrito na testa de ninguém se é trabalhador ou bandido”. Ele acrescenta que, se uma pessoa está armada, não há o que pensar: “A minha vida está em jogo e a das pessoas ao redor também. Se não for nada e o cara se sentir constrangido… o que a gente pode fazer? É o nosso trabalho. Mas tem gente que entende. Os mais cultos e inteligentes gostam do trabalho da polícia”, afirma Thiago.
E a abordagem em relação aos engravatados é a mesma do que a dada para moradores de rua? Thiago diz que, se suspeita que um homem engravatado esteja portando armas, ele pede licença e o revista. “Se acho a arma, peço os documentos dela”. Já com os moradores de rua, Thiago “manda encostar” e faz vistoria. Se houver faca ou caneta, o PM apreende. Pergunto se os policiais pedem os documentos de moradores de rua. Ferreira responde que “é muito difícil eles terem documento”. Ele acrescenta que ser policial é muito difícil pois, mesmo acertando, “leva pau” (da sociedade, da própria polícia e da mídia) caso cometa algum erro.
Ambos demoram para responder qual seria o aspecto ruim de trabalhar no centro. Ferreira responde que ali há muitos curiosos. “Quando a gente aborda, algumas pessoas já pegam celulares e filmam a cena, o que constrange a pessoa abordada. Nós estamos agindo na legalidade – eu não ligo para filmagem, pois se a pessoa usar as imagens indevidamente depois, eu entro na Justiça”, diz ele. Ambos criticam a cobertura da mídia: “Aquele Percival [da TV Record] é terrível: não sabe nada de lei e só fala bobagem” dizem, rindo. Quando digo que sou estudante de jornalismo, eles me pedem para fazer um jornalismo menos sensacionalista. “Confiamos em você” é a despedida que ouço.
Café & engravatados
Ao andar pela Quintino Bocaiúva, é muito comum ver homens engravatados andando pelas ruas. Paro em um dos cafés e tento conversar com algum deles. Gregório Pinheiro é um dos inúmeros advogados que trabalham nos escritórios existentes na região. Trabalhando na rua XV de Novembro há quatro anos, na opinião dele, o excesso de mendigos e bandidos impede as pessoas de ficarem no centro da cidade após as 17 horas. “Eles [moradores de rua] bebem e fumam, pedem dinheiro para comprar cachaça. Não convivo com esse povo”, diz ele. Converso com Gregório antes de ele ir para o trabalho. Pergunto-lhe o que acha do centro da cidade: “É perto de tudo, tem muita infra-estrutura de transporte”. Ele acha o policiamento do local bom e afirma que os prédios estão sendo revitalizados. Após beber um café e conversar rapidamente comigo, Gregório sai apressado para o escritório.
A força e a delicadeza que brotam do lixo
Além de engravatados, ao passar pela Quintino Bocaiúva, noto a presença de alguns garis. Converso com Luzinete Ferreira do Nascimento, baiana de 46 anos que trabalha como gari há dez. Usando luvas, touca e blusa de manga comprida, Luzinete fala comigo enquanto varre a rua. Ela conta que deve seguir um percurso certo e varrer, quatro vezes ao dia, ruas como a XV de Novembro, a José Bonifácio e a Quintino Bocaiúva.
Ela acha que segunda-feira é o dia com mais trabalho: “Há muito lixo nas ruas depois do fim-de-semana”. Apesar de morar longe (em Guaianazes) e gastar quatro horas por dia para deslocar-se para o trabalho, ela gosta do que faz: “É um trabalho honesto. E aqui é divertido, não tem ninguém no meu pé e a gente vê muita coisa diferente: pessoas brigando ou até falando sozinhas”, diz ela, rindo. Luzinete afirma nunca ter sido assaltada enquanto trabalha e diz conversar com muitos moradores de rua, que a chamam de “tia”.
Pergunto a ela como é tratada pelos transeuntes do local. “Alguns ignoram, outros até falam com a gente”. Há pessoas que ficam irritadas quando Luzinete pede licença para varrer. “Muitas vezes, os moradores de rua me tratam melhor do que os engravatados”, conta ela. Agradeço pelos minutos gastos na conversa e pergunto se posso tirar uma foto dela. Envergonhada, ela nega a um primeiro momento, mas aceita depois. “Vai com Deus”, diz ela, andando Quintino acima para continuar varrendo a rua.
Mulheres, travestis, homossexuais e pacientes de quimioterapia
Outro comércio facilmente encontrado na Quintino Bocaiúva são lojas de cabelos (naturais e sintéticos). Entro em uma delas e converso com Cíntia Silva, atendente. Chanel, fio reto, repicado, ondulado, cacheado, liso, crespo, loiro, ruivo, preto e azul. A diversidade de modelos, cores e cortes dos cabelos vendidos ma a atenção.
Paga-se, em média, 209 reais por 100 gramas de cabelo. Existem vários fatores que influenciam o preço do cabelo, como comprimento, cor, textura e quantidade de mechas. Há lojas que compram apenas de fornecedores e outras que aceitam cabelos vendidos individualmente. Segundo Cíntia, fios naturais são mais caros do que os sintéticos. Não é raro encontrar perucas de personagens (de filmes ou desenhos animados), processo denominado “cosplay”. Os penteados de Marilyn Monroe e Elvis Presley são modelos muito encontrados nessas lojas.
Enquanto entrevistava Cíntia, duas travestis adentraram a loja e olharam a vitrine. Cíntia me pede licença para atendê-las e lhes pergunta que modelo elas gostariam de ver. Luana, de cabelo loiro, curto e encaracolado, usava salto alto e estava levemente maquiada. Após olhar alguns modelos, a travesti responde: “Quero aquela ruiva ali”. Cíntia, então, retira a peruca cujos fios eram longos, ruivos e levemente ondulados. Letícia Close, a travesti que acompanha Luana, demora mais para escolher e opta por uma peruca também longa, mas de fios longos e bem loiros. “As perucas loiras são as mais caras porque, além de mais procuradas, elas são descoloridas”, conta Cíntia. Ela explica ainda que todas as perucas são descoloridas e posteriormente tingidas, pois assim se cria um padrão de cores, o que facilita a escolha da peruca pelas clientes.
Após retirar as perucas pedidas da vitrine, a vendedora acompanha as clientes até os fundos da loja, onde há espelhos para que elas possam experimentar as perucas. Ali há um cabeleireiro, responsável por alterar o corte do cabelo caso a cliente assim deseje. Cíntia conta que, muitas vezes, as compradoras gostam da cor e da textura do cabelo, mas não do corte. “Daí o nosso cabeleireiro faz o corte ou o penteado que a cliente quer”, explica ela.
Perguntada sobre o perfil dos clientes, Cíntia diz que o público é bem variado, mas estima que 80% de suas clientes sejam travestis. A vendedora conta que, diferentemente das mulheres, as travestis são mais decididas e já entram na loja sabendo o que querem. Enquanto Luana e Letícia não gastaram mais do que quinze minutos para adquirir duas perucas, uma mulher chamada Dalva demorou longos minutos escolhendo e experimentando modelos diversos, de lisos a encaracolados. Enquanto Luana perguntou se havia o modelo que desejava, Dalva mostra-se indecisa e pede sugestões à Cíntia e a mim. Outra diferença apontada pela vendedora quanto às diferenças entre esses dois perfis de clientes é que, enquanto mulheres compram cabelos provenientes do estoque, as travestis comumente adquirem modelos que estavam expostos na vitrine.
Diversos são os motivos que levam pessoas a freqüentarem lojas assim. Há clientes como Dalva que desejam apenas mudar o visual, além de pessoas que realizam quimioterapia (processo químico para tratamento de câncer). Segundo Cíntia, geralmente essas clientes vão à loja antes de começar o tratamento e raspam a cabeça na própria loja. Pergunto se homens freqüentam a loja e Cíntia responde: “Claro que sim. Geralmente, eles são cabeleireiros. Há muitos clientes homossexuais que, para disfarçar isso, dizem que estão comprando uma peruca para a mãe ou para uma amiga”.
Pergunto a Cíntia como é trabalhar no centro da cidade. “Vem gente de todos os lugares. Todo mundo sabe chegar, é de fácil localização”, conta ela. Ela diz nunca ter sido assaltada durante os quatro anos em que trabalha na loja, mas confessa ter medo de ser abordada por moradores de rua. “O lugar é meio sujo”, opina Cíntia. Quando moradores de rua entram na loja, cena não muito rara, os seguranças particulares retiram-nos do local.
De escapulários a roupas de padre
Outra loja comumente encontrada nessa região do centro da cidade é a de artigos católicos. Imagens de santos, livros, CD’s, terços, escapulários, velas, quadros, incensos e até roupas de padres são encontrados nessas lojas. Segundo a vendedora de um desses estabelecimentos, as pessoas que os freqüentam têm perfil bem variado. “Muitos jovens vieram comprar aqui o presente para o dia das mães”, conta ela. Enquanto estava na loja, conversei com uma cliente que circulava pela loja. Dona Rosa, senhora simpática dona de lindos olhos azuis, procurava duas imagens de anjos da guarda para dar às três netas que estão de mudança para os EUA. Ela conta já ter ido em outras duas lojas na tentativa de comprar os anjos, mas acha que está “difícil de encontrar”.
Medicina fitoterápica: prevenção acima da cura
Seguindo pela rua, encontra-se uma loja de produtos fitoterápicos. Os alimentos como prevenção das doenças é a idéia que guia esse tipo de loja, praticante da medicina preventiva. Arroz vermelho, vinagre artesanal de maçã, incensos, suplementos alimentares e a “ração humana” (composto de ingredientes ricos em fibra como linhaça, aveia, gergelim e quinoa) são encontradas em lojas como essa. Além de alimentos, mandalas, livros sobre dietas, CD’s com músicas relaxantes e produtos de higiene (shampoos, condicionadores, perfumes, sabonetes e cremes corporais) feitos a partir de plantas como guaraná, melão e cupuaçu são também oferecidos. A musicoterapia e a aromaterapia são táticas empregadas a fim de tornar o ambiente mais calmo e, assim, fazer os clientes relaxarem. Em um balcão localizado ao lado do caixa, o cliente pode degustar algum alimento oferecido na loja. No dia em que passei pelo local, havia pedaços de pão sueco de cebola e orégano, acompanhado de chá verde com limão.
“A idéia é seguir uma linha de cura, a fitoterapia, e assim manter a distância de medicamentos alopáticos” (aqueles fabricados em laboratórios), conta Ildeberto, farmacêutico dono de uma dessas lojas localizadas na rua Quintino Bocaiúva. Ele discutiu ainda o papel do Estado no incentivo dessa medicina preventiva muito praticada em países orientais. Na visão dele, países ocidentais possuem uma lógica diferente, pois procuram cura rápida e não buscam a prevenção de doenças.
Ao procurar Ildeberto para pedir mais informações, ele me convida a sentar para conversar um pouco. Ele conta que faz isso com os clientes sempre que possível, pois acredita que o conceito de saúde não se refere somente à saúde física. “Boa alimentação é uma parte. A parte emocional também conta muito: o modo de tratar o cliente, dar um pouco de atenção a ele e ouvi-lo faz toda a diferença”. Quando entrei na loja, vi que ele conversava com uma senhora que comprava alguns produtos. Converso brevemente com uma mulher que fazia compras na loja. Tânia Nunes de Sá diz ser cliente da loja há quatro anos porque no local há produtos saudáveis. “Saúde não tem preço”, afirma ela, que compra desde salgadinhos integrais até pães e chás.
Pergunto a ele por que a loja localiza-se no centro da cidade e o que faz daquele local comercialmente interessante. “O grande numero de pessoas e a diversidade do público é muito boa. Tem de tudo no centro”, conta ele. Durante o período em que converso com Ildeberto, vejo desde jovens até homens engravatados e donas de casa olhando as prateleiras.
O caldo de mocotó e a dor de sacrificar animais
Em frente à loja de produtos fitoterápicos, encontra-se um restaurante de comida nordestina. Segundo o cearense José Maria, dono do comércio, esse restaurante é o único do centro com o cardápio nordestino. Arrumadinho, baião de dois, escondidinhos, buchada e cabrito atolado são alguns dos pratos servidos. Durante a conversa, por volta das nove da manhã, José me oferece cuzcuz com caldo de mocotó e pimenta e me pede para experimentar a carne seca que José preparava desde as 6h30 da manhã.
Há catorze anos no centro de São Paulo, José diz que a região é excelente para o comércio: “Hoje, faltam mesas para atender os clientes”,. Funcionando de 2ª a 6ª das 11 da manhã às 18 horas, o restaurante é perfumado pelo cheiro da carne seca e do feijão de corda. José conta que há restaurantes mais baratos nas proximidades, mas nenhum deles oferece as delícias da culinária nordestina.
O público? Variado. “Atendo desde trabalhadores até desembargadores”, fala José. Ele conta também que há pessoas que dizem que não comerão comida nordestina por achá-la muito forte e por temerem passar mal. “Eu acho isso engraçado. Se fizesse mal não teria nordestino vivo. A diferença é que a comida é bem temperada”, diz ele rindo. Muitos de seus clientes são nordestinos ou parentes de alguns. Pergunto a ele sobre o preconceito sofrido por nordestinos: “Hoje é bem menor, quase não tem: nordestino praticamente dominou”, opina José.
Apesar de ser da “terrinha”, José se diz praticamente vegetariano. “Tenho dó dos bichos. Cresci vendo meu pai matar porco e cabrito pra gente comer. Se você matar um bicho e houver alguém olhando, ele demora mais para morrer. Meus bisavós sempre falavam ‘hoje vamos matar o porco, então tira fulano daqui’. Eu cresci com isso na cabeça”, conta ele, que hoje não come buchada nem cabrito. José adora comidas feitas a partir do milho. “É gostoso e saudável. Dá trabalho fazer, mas é muito bom”, diz ele.
Morador de São Paulo há mais de trinta anos, José diz adorar a cidade. “Não sou paulista de natureza, mas de coração”, afirma ele. O motivo? Aqui existe muita diversidade: tudo pode ser achado aqui. Apesar disso, José confessa achar o centro degradado, mal cuidado. “Ele fica vazio após as 18 horas. Você tem que atrair gente pra cá, colocando teatro, cinema, comércio de modo geral”. José afirma que nunca foi assaltado e que os moradores de rua não costumam entrar no seu restaurante. “Eles esperam a gente sair na rua para pedir comida. Eu dou: melhor fazer isso do que jogar fora”, conta o cearense. O lixo nas proximidades também é outro problema: na busca por comida, muitos moradores de rua rasgam sacos de lixo, o que acaba sujando as calçadas.
Se ele pretende voltar ao Ceará? Só para passear. “Construí família em São Paulo, tenho filhos e netos aqui. Voltei algumas vezes para lá e me atrapalhei todo na hora de cozinhar: não consigo acertar a medida, pois sou acostumado a cozinhar para muita gente”, conta José.
Best sellers, jazz, Charles Chaplin e bom atendimento
Seguindo rua acima, chega-se a um sebo, outro tipo de loja muito visto na Quintino Bocaiúva. Livros, revistas, gibis, discos, CD’s e DVD’s podem ser vistos ali.
Procuro o dono do sebo. O paranaense Rinaldo sempre trabalhou no centro da cidade. Há cinco anos, ele abriu um sebo ali. E por que escolheu o centro de São Paulo? “A meu ver, é o grande pólo comercial, muito mais do que os bairros”, conta Rinaldo. Segundo ele, há mais pessoas ali do que nas regiões de bairro. “Desde mendigo até turista”. Na visão de Rinaldo, os moradores de rua atrapalham o comércio, pois acabam pedindo dinheiro e isso afasta os clientes. “Você tem que dar algo para eles saírem daqui”. Enquanto conversava com Rinaldo, uma cliente chamada Santinha confirma a fale dele: “Tem povo de tudo quanto é lado. É sempre variado”. Ela afirma ver “sempre as mesmas carinhas” na papelaria que possui no bairro onde mora.
A facilidade de ir até o centro (metrô e ônibus) é um aspecto positivo do centro da cidade mencionado por Rinaldo. Há, porém, a dificuldade para quem vai de carro – na opinião dele, não há muitos espaços onde deixar o carro e os estacionamentos do centro são muito caros. Ele conta que, há alguns anos, lojas vêm fechando suas portas e vêm surgindo estacionamentos no lugar. “Às vezes, você chega a encontrar cinco estacionamentos em uma rua”, acrescenta. Ele acha que o policiamento aumentou nos últimos anos, mas critica a falta de proximidade entre policiais e comerciantes. “Se somos assaltados, não sabemos de um telefone para o qual pedir ajuda. Você não ouve um ‘bom dia’ e eles não perguntam nada para nós: só mandam a gente fazer um boletim de ocorrência na delegacia”. Outro problema da região é o lixo: Rinaldo conta que, além das pessoas jogarem lixo nas ruas, às vezes há problemas de recolhimento pela Prefeitura. “Já houve dia em que ela deixou de recolher o lixo por dois ou três dias”, diz ele.
Tão diversa quanto a população do centro da cidade é a variação do acervo dos sebos do centro – que possuem desde gibis até livros acadêmicos. Apesar de afirmar não ter um publico especifico, Rinaldo admite que os materiais acadêmicos ocupam boa parte das estantes do sebo. Direito é o principal assunto, fato explicado pela sua proximidade em relação à Faculdade de Direito da USP e a inúmeros cartórios e escritórios de advocacia.
Advogados como Francisco, com quem conversei rapidamente, são clientes fiéis do sebo. Para ele, aquele sebo localiza-se em um “ponto estratégico” e, além disso, também afirma que bom tratamento é a chave de um bom comércio. Para ele, isso “fideliza o cliente”. Ele compra nesse sebo há quatro anos e diz gostar muito do atendimento que recebe de funcionários como Marcelo, que trabalha no sebo desde que ele abriu.
Marcelo Ricciardi é um dos atendentes de um sebo da Quintino Bocaiúva. Usa óculos, fala calmamente e mostra-se prestativo aos clientes que o abordam. Funcionário do sebo há quatro anos e meio, ele diz adorar sebos e, por isso, gosta de trabalhar ali. “Eu não tive muita escolha, mas gosto do que faço: atender pessoas está na minha natureza”, conta ele.
Na opinião de Marcelo, o centro de São Paulo é um universo cultural incrível. “A mistura que rola aqui no centro é muito legal. Há um fluxo muito grande de gente, desde franciscanos até judeus”, conta ele. Segundo ele, cada área do centro possui um perfil sociocultural. “´No terminal Parque Dom Pedro há livros mais populares, já aqui há muitos livros acadêmicos, principalmente na área de Direito”. A poluição é um dos problemas do centro de São Paulo que mais incomodam Marcelo: “É muito ruim para respirar”, conta ele. Sobre os moradores de rua, Marcelo afirma que eles sabem quem freqüenta a região e procuram pessoas que não fazem isso.
Ele afirma nunca ter sido assaltado e diz conhecer muitos moradores que possuem família: “Muitos saíram de casa porque têm problemas com seus familiares”. Pergunto a Marcelo se moradores de rua costumam abordar os clientes do sebo e, se isso ocorre, como Marcelo reage. “É difícil eles entrarem aqui e os clientes não gostam. Eu não tenho coragem de ignorar uma pessoa só porque ela está maltrapilha”, conta ele. Marcelo acha que muitas pessoas dão dinheiro a moradores na tentativa de “se livrarem” deles. Ele confessa já ter pago comida a alguns deles e diz que o acesso de mendigos varia de um lugar do centro para outro. “É mais comum vê-los próximos a igrejas como a Catedral da Sé”, acrescenta.
Ao circular pelo sebo, vejo uma sessão destinada somente à MPB – Tom Jobim, Elis Regina, Chico Buarque, Noel Rosa, Clementina de Jesus são algumas das personalidades presentes na estante. A meu lado, está um senhor de cabelo grisalho, jaqueta jeans e óculos. Depois de disputar parte dessa estante, decido interagir com ele. “Algo me diz que o senhor gosta muito de MPB”, digo na tentativa de começar a conversa. “Digamos que eu tento aprender”, responde ele. Então, Geraldo Julião começa a falar de um moço, nascido na Bahia na década de 1940 que revolucionou o mundo após inventar uma tal de… Bossa Nova. “Eu detesto quem diz não gostar de João Gilberto porque ele é antipático. O cara é simplesmente genial”, diz ele.
Morador de Ilha Bela, no litoral norte paulistano, Geraldo é engenheiro de formação e terrivelmente apaixonado por MPB desde adolescente – na juventude, Geraldo tocava em bares paulistanos. Apesar de nunca ter seguido carreira profissional, Geraldo conta que compôs uma música (“Para Tânia”) e se diz fascinado pela música (não só a popular brasileira, mas também a clássica e ritmos como o jazz). Desde cedo, quando morava em São Paulo, já freqüentava os sebos da cidade em busca de raridades. “O centro da cidade tem sebos muito bons, mas a Teodoro Sampaio também é um lugar ótimo”. Para Geraldo, a cultura brasileiro de modo geral é muito respeitada e admirada lá fora. “Só aqui Tom Jobim, Clara Nunes e Villa-Lobos não são tão populares”, diz ele, que cita Stacey Kent e Karrin Allison – cantoras estrangeiras apaixonadas por música brasileira e que já gravaram clássicos como “Águas de Março” e “Samba Saravah”.
Outra paixão de Geraldo é o carioca de família tradicional que estourou na época da ditadura militar. “Chico [Buarque] é uma entidade profundamente ligada à alma brasileira. Pensar o Brasil sem o Chico é o mesmo que pensar o Brasil sem o samba, sem Pelé, sem Machado de Assis, sem a saudade, sem Jobim, sem a caipirinha, sem a feijoada e alguns poucos símbolos inequívocos de nossa terra e de nossa gente”. Geraldo, que conheceu Chico Buarque pessoalmente, contou o episódio em que ele foi apresentado à Elis Retina: “Chico Buarque é um cara tímido, calado. Passado um tempo depois que Elis entrou na sala onde ele estava, ela perguntou se ele não ia cantar, pois cantor que fica mudo não dá muito certo”. Chico Buarque saiu rápido da sala. Acho que isso fez a Elis perder oportunidades de gravar mais músicas em parceria com ele”, opina Geraldo.
Dono do restaurante que herdou do pai, em Ilha Bela, Geraldo é quem seleciona a música ambiente do estabelecimento. “Os comércios, de modo geral, não selecionam muito as músicas. É só aquilo o que toca na rádio. Eu seleciono os nomes que mais contribuíram para o patrimônio musical do mundo e que, de algum modo, ajudaram a diminuir o sofrimento das pessoas”, conta ele.
Depois de pedir algumas dicas de MPB, me despeço de Geraldo dizendo que, quando for até Ilha Bela, irei ao “Bar Prainha do Juliano” ver a trilha sonora que ele seleciona. “Apareça por lá. Acho que você não vai se arrepender”, diz ele.
Os visíveis ignorados e a rua como casa
Em todo o centro de São Paulo, vêem-se moradores circulando ou pedindo esmola. Nas proximidades da Quintino Bocaiúva não é diferente. Anderson, rapaz de 26 anos, usava boné, uma camiseta e estava embrulhado em seu cobertor quando me aproximo para conversar com ele.
Morador de rua desde 2002, Anderson conta que saiu de casa após desavenças com a ex-mulher: deixou-a na casa e veio para a rua. Ele diz não possuir um local fixo: Avenida São João, Terminal Princesa Isabel e Largo de São Francisco são outros lugares onde ele também fica. Anderson já trabalhou como pintor de carro
Pergunto a Anderson como é a abordagem dada por policiais. “Às vezes eles chegam na ignorância, mas não todos. Eles nos acordam e sempre levam alguma coisa: papelão, colchão. Às vezes, levam o cobertor também. Se eu falar para eles não levarem, eles começam a bater”, conta Anderson, que já apanhou de policial.
Segundo Anderson, os moradores de rua possuem um “código de ética”. Cada um possui o seu cobertor e eles respeitam mulheres e crianças. “Se roubar cobertor de criança, o resto corre atrás do ladrão”, diz. Ele considera os moradores com quem partilha as ruas uma família. “Tenho amigos aqui”, conta ele, cabisbaixo.
Anderson gosta do centro da cidade porque ali há bastante gente, tem comida e é sossegado para dormir. Ele conta que a maioria dos donos de restaurantes prefere jogar comida fora a dá-la aos moradores de rua. “Eles pedem para a gente sair ou voltar na hora em que fechar”, confessa Anderson. Pergunto a ele se há preconceito das pessoas que passam pelo centro diariamente: “Tem gente que olha torto, ninguém conversa. Mas eu nem ligo mais para isso”, responde.
Uma rua sem fim
Explosão e a coexistência das diferenças. Eis o que define o centro da cidade de São Paulo, região cujas diversidades são retratadas em ruas como a Quintino Bocaiuva.
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