Por Beatriz Cristina
beatrizcristina.sg2000@gmail.com
Cobras, aranhas, escorpiões e carrapatos. Quando escutamos esses nomes, já temos em mente que eles podem ser perigosos para os seres humanos, seja por serem venenosos ou por transmitir doenças. Já faz parte do senso comum que acidentes com esses animais devem ser remediados com a aplicação de soros nas unidades de saúde, mas você sabe de onde eles surgiram? Outra pergunta: já ouviu falar do Instituto Butantan?
Esse instituto localizado em São Paulo é reconhecido mundialmente pela sua produção de vacinas e soros contra o veneno de animais peçonhentos e ações virais (como a raiva) e bacterianas (no caso da difteria e do tétano). Sua maior e mais antiga sede, próximo à Universidade de São Paulo, conta com laboratórios de pesquisas, produção de vacinas, hospital de emergência de acidentes com animais peçonhentos e quatro museus abertos ao público. Sua outra unidade em Araçariguama, interior do estado, é responsável pela produção de soros e desenvolvimento de pesquisas. É muito comum relacionarmos suas pesquisas e funções com a Universidade de São Paulo (USP) por causa da sua proximidade, mesmo assim, sua função social se distancia da universidade e mostra que as pesquisas atuais exploram os novos rumos da saúde e qualidade de vida. O Laboratório foi a fundo: conversou com alguns pesquisadores acerca do desenvolvimento de seus estudos e resultados, estudou a história do Instituto e suas contribuições sociais, além dos desafios enfrentados pela ciência brasileira. Confira aqui tudo que descobrimos!
Uma breve História do Butantan.
A região da Zona Oeste de São Paulo ー onde hoje se encontra parte do bairro do Butantã, a USP e o Instituto ー era a enorme Fazenda Butantan, que teve parte desapropriada pelo governo da época para dar lugar ao Instituto. Em 1899 o Butantan foi projetado para a produção do soro antipestoso a fim de combater a peste bubônica no Porto de Santos num estudo realizado por Vital Brazil, Adolpho Lutz e Oswaldo Cruz. Além disso, tinha um vínculo com o Instituto Bacteriológico (o atual Instituto Adolpho Lutz) e possuía o nome de Instituto Serumtherápico. Por causa da expansão da cafeicultura no interior da região Sudeste, especialmente em São Paulo, havia um crescente número de acidentes com serpentes venenosas que fizeram o diretor Vital Brazil iniciar seus estudos e produzir o primeiro soro antiofídico contra o veneno de cascavéis e jararacas. Vital também fundou um Instituto com seu nome na cidade de Niterói em 1919, sua ideia era aumentar o número de instituições científicas pelo país que conseguissem resolver os problemas graves da época. O Instituto Vital Brazil funciona até hoje.
Mas infelizmente nem tudo na sua história foi marcado pelas grandes descobertas científicas: em 2009 o Instituto foi alvo de uma investigação do Ministério Público do Estado de São Paulo devido a denúncias do desvio de 30 milhões de reais de verbas repassadas pelo Ministério da Saúde para a produção de soros e vacinas. Nesse caso, sete funcionários foram demitidos. Outro caso, que nos remete à atual situação da preservação dos registros históricos brasileiros, foi o incêndio no Prédio das Coleções em 2010, o qual possuía milhares de espécies conservadas em álcool e formol (produtos altamente inflamáveis), mas nenhum sistema de proteção contra incêndios. Na época, alguns jornais chegaram a estimar a destruição de aproximadamente 85 mil serpentes (7 mil aguardavam a catalogação) e 450 mil aracnídeos (muitos não catalogados), sendo que muitos haviam sido coletados a mais de 100 anos, significando uma perda insubstituível para a história biológica brasileira.
O que está sendo pesquisado e sua importância?
Vimos acima que o Instituto Butantan é referência no estudo de animais peçonhentos e em epidemias virais. Mas seu trabalho está mais além disso. Atualmente, é mundialmente reconhecido por suas pesquisas e parcerias com outros Institutos pelo mundo, como o Instituto Pasteur na França e Institutos da Universidade de São Paulo, como por exemplo, o de Ciências Biológicas (ICB-USP). Também produzem vacinas em parcerias com laboratórios farmacêuticos privados e para o Plano Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, além de novas pesquisas relacionadas ao uso de nanotecnologia, verminoses e protozooses e enzimas. Segundo Osvaldo Augusto Brazil Esteves Sant Anna, do Laboratório de Imunoquímica, o atual momento de corte nos auxílios da pesquisas e projetos científicos brasileiros e a incerteza com o próximo governo faz com que essas parcerias entre os Institutos públicos sejam fundamentais para a continuidade das pesquisas e produções do Butantan: “Antes de existir essas parcerias público-privadas, digo que houve uma parceria público-público entre conhecimento e tecnologia e fazemos isso muito bem. Se não houver interferência política, na qual as instituições públicas de pesquisas acabam sendo suscetíveis às tentativas de fragmentação. Então a cada entrada de governo ficamos temerosos, porque já foram realizadas várias investidas, no sentido de privatizar o Instituto Butantan e isso é o decreto de morte dessa relação de conhecimento e produção.” Quase em sua totalidade, os financiamentos das pesquisas e bolsas de estudos ocorrem através de instituições públicas como FAPESP e CAPEs.
Devido à proximidade com a Cidade Universitária, é muito comum pensar que todas as pesquisas são feitas na Universidade de São Paulo. Mas não é bem assim. Conversamos com Eliana Miyaji, pesquisadora do Laboratório de Bacteriologia do Butantan, que tem sua pesquisa mais recente voltada para análises de virulência de bactérias estreptococos (causadora de pneumonia e otite). Segundo Eliana, mesmo sendo instituições com missões diferentes, a formação acadêmica e de pesquisas acabam ocorrendo entre a Universidade e o Instituto: “Nos últimos anos houve muitas discussões sobre: ‘o Instituto não é a Universidade de São Paulo’. E o que é diferente? É um perfil e missão diferente do que é a Universidade.”
Os pesquisadores também precisam lidar com a burocracia e as infraestruturas antigas do local. Para entendermos melhor, antes do início das pesquisas, os pesquisadores precisam regulamentar todos os procedimentos e garantir que nada “sairá do controle”. Mesmo assim, essa burocracia excessiva pode acabar atrasando os desenvolvimentos de pesquisa. Além disso, as infraestruturas antigas não comportam a expansão dos laboratórios e de falta de manutenção. Segundo Rogério Bertani, cientista do Laboratório de Ecologia e Evolução, isso também tem um custo alto, pois muitas vezes estruturas são construídas e criadas de forma errada e posteriormente tem de ser descartadas: “Alguns equipamentos, estruturas e serviços poderiam ser centralizados e racionalizados, permitindo o uso por todos os pesquisadores e economia de espaço e recursos. Mas esse planejamento normalmente não ocorre, ou quando ocorre, há dificuldade de implantação ou falta de discussão com os pesquisadores que irão utilizar o espaço/equipamento. O uso racional dos recursos poderia suprir, pelo menos em parte, a deficiência crônica de investimento em ciência que temos em nosso país.”
Outro ponto importante é a questão ética. Além disso, o uso de animais como cobaias de estudo ainda é bastante discutido, mas acaba sendo a única alternativa que muitos pesquisadores possuem, desde que cumpram com todas as normas exigidas.
Quando os malefícios podem nos ajudar.
Vírus, bactérias, animais parasitas e peçonhentos sempre foram um problema para os seres humanos. A busca pela cura de diversas doenças não é algo recente, mas acabou abrindo novos caminhos para as pesquisas científicas. Para termos uma ideia melhor, temos como exemplo a esquistossomose, doença causada pelo contato com água contaminada com a forma larval do verme Schistosoma, que possui caramujos como hospedeiros intermediários. Para entender o ciclo de contágio do Schistosoma, observe abaixo:
As recomendações de prevenção, como saneamento básico, o buscar tratamento adequado e controlar o caramujo hospedeiro do Schistosoma são algumas medidas conhecidas, como nos explicou Eliana Nakano: “O praziquantel é o único fármaco recomendado para o tratamento de pacientes e programas de controle da esquistossomose. É um medicamento seguro e efetivo contra todas as espécies de Schistosoma. Mas não age sobre as formas jovens do parasita e não previne a reinfecção e, ainda, há o risco de resistência. Para o controle dos caramujos hospedeiros é usada a niclosamida, que é eficaz contra caramujos adultos e ovos, mas bastante tóxica para outras espécies aquáticas.” Por causa dessa toxicidade prejudicial às outras espécies aquáticas, a pesquisa de Eliana está estudando o potencial bioativo de algas marinhas brasileiras que apresentaram bons resultados na busca de compostos com atividade anti helmíntica e moluscicida, mesmo que realizados em laboratório.
Já a outra pesquisa, realizada por Solange Afence e seus colaboradores no Laboratório de Farmacologia, está trabalhando com toxinas isoladas do veneno das serpente Micrurus lemniscatus (uma espécie de cobra coral) e como essas toxinas podem barrar a proliferação de células cancerígenas. “Isolamos toxinas com atividade de fosfolipase A2 [enzimas envolvidas em processos inflamatórios] e estudamos seus efeitos em células neuronais e gliais em cultura (astrócitos e neurônios hipocampais), [células que compõem o sistema nervoso]. Vimos que essas toxinas reduzem a proliferação celular em astrócitos e induzem morte celular em neurônios. Estamos investigando o papel dessas fosfolipases A2 em células tumorais, glioblastomas [conhecido popularmente como tumor cerebral].”
A produção de anticorpos para o uso em tratamentos imunoterápicos, isto é, que potencializam o sistema de defesa do organismo para combate à doenças (nesse caso, para o combate às toxinas do veneno das serpentes) mas podem causar alguns efeitos colaterais nos pacientes. Outro problema recorrente é que esses anticorpos são produzidos em animais de grande porte (cavalos) que necessitam de grandes áreas. Para reduzir esses problemas, a equipe do Laboratório de Imunoquímica, comandada por Wilmar Dias da Silva, está realizando pesquisas em relação à modelagem de anticorpos anti toxinas sobre sequências de aminoácidos utilizados no processo a fim de reduzir os custos e ampliar a eficiência. A pesquisa ainda não não possui aplicação prática em grande escala, mas teve seus resultados divulgados em diversos artigos científicos.
Outras pesquisas pesquisas desenvolvidas pela equipe também estão relacionadas com o a produção de vacinas e soros, como o desenvolvimento de uma vacina anti-EPEC (Escherichia coli enteropatogênica), bactéria responsável por diversos surtos de diarreia infantil na África Subsaariana e no Sul da Ásia. Para termos uma ideia melhor, as infecções gastrintestinais estão entre as principais causas de mortalidade infantil ao redor do mundo com milhões de óbitos. “A importância epidemiológica de Escherichia coli (EPEC) como causa de diarreia infantil estimulou desenvolvimento de vacina. Seguindo tendência moderna da tecnologia de vacinas decidiu-se desenvolver recombinantes de fatores de virulência usados pela bactéria para aderir e lesar a célula alvo” informou Wilmar. Por enquanto, os efeitos ainda estão em fases de testes também.
Além disso, a equipe está realizando a pesquisa de anticorpos IgY anti Influenza na gema de ovos de galinha. Com os resultados obtidos,os pesquisadores deduziram que galinhas destinadas à produção industrial de ovos e frangos, de acordo com agências reguladoras, são imunizadas com diferentes vacinas anti-infecções aviárias. Essa imunização acaba afetando seus ovos, apresentando anticorpos na gema.
Programa PROÁFRICA
O Butantan, representado pela equipe de Wilmar também participa de projetos de cooperação internacional, como o Programa de Cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação com países da África (PROÁFRICA). Sob a forma de um projeto de extensão que foi aprovado pelo CNPq, tem como objetivo principal a melhoria na infraestrutura moçambicana e capacitação de profissionais de saúde para atender as vítimas de acidentes com animais peçonhentos, que segundos dados não-oficiais, os acidentes e mortes são bem elevados no país.O projeto ainda conta com a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (UPM) e a Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em Maputo, capital moçambicana. Moçambique não dispõe atualmente de infraestrutura adequada à produção própria de soros antiofídicos recorrendo, em muito poucos casos, à importação de antivenenos produzidos em outros países. No entanto, estes antivenenos são caros para serem usados pela maioria da população humana e no tratamento de animais. Por isso, se torna necessário que o país desenvolva métodos de produção de antivenenos específicos para serpentes africanas. Além disso, o projeto visa a formação de pessoal capacitado e orientação dos estudantes moçambicanos nos projetos de pesquisa e ainda prevê a instalação de um serpentário para a manutenção das espécies de serpentes vivas.
Os aracnídeos também são temas de pesquisas.
Os aracnídeos são predadores de diversos animais que alimentam-se de plantações agrícolas. É através dessa lógica que a equipe da pesquisadora Adriana Rocha, do Laboratório de Bioquímica e Biofísica, está estudando as enzimas digestivas de aranhas, escorpiões e carrapatos e como elas poderão reduzir o uso de defensivos agrícolas. No caso dos carrapatos, parasitas e transmissores de doenças, o enfoque da pesquisa continua sendo as enzimas digestivas: “É um outro aracnídeo [carrapatos] e estudá-lo com outro enfoque agora em animal que é um vetor e no enfoque comparativo de você estudar aracnídeos que são predadores e aracnídeos que tem outro tipo de alimentação, e quais foram as adaptações necessárias para cada tipo de dieta.“ afirma Adriana. O mercado de enzimas, tanto na produção de produtos do dia a dia como na aplicação biológica movimenta milhões de dólares por ano, sendo necessário a patente em tudo que eles desenvolveram em período curto de 12 anos.
Classificar também é uma forma de pesquisa.
A Taxonomia e a Filogenética são ramos da Biologia que nomeiam formalmente as espécies e procuram conhecer o relacionamento evolutivo entre elas. O Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEV) também atua em áreas como História Natural, Reprodução, Taxonomia, Sistemática, Biogeografia, Biologia Molecular e Citogenética voltadas para a caracterização da Biodiversidade, Conservação fora do lugar de origem, bem como o estudo de moléculas do veneno e defensinas de algumas espécies peçonhentas e suas atividades antimicrobianas. Mas na prática, o quê isso significa? “Não tem uma importância aplicada direta, porém é a base do conhecimento de muitas áreas da ciência. Sem a identificação correta das espécies envolvidas em acidentes por animais peçonhentos, por exemplo, fica difícil fazer um diagnóstico correto de um paciente acidentado. Além disso, os toxicologistas, que estudam a composição e ação do veneno produzido por animais, precisam saber com qual espécie estão trabalhando para que os experimentos que fazem possam ser replicados por outros cientistas ou por eles mesmos. A taxonomia é a base para o trabalho de diversos profissionais nas áreas de saúde, farmacologia, bioquímica, fisiologia, biologia, entre outras” conta Rogério Bertani, que trabalha no Laboratório e tem sua linha de pesquisa voltada para aranhas e escorpiões.
Os resultados obtidos por sua pesquisa são conhecimentos sobre aranhas e escorpiões, descrevendo espécies novas para a ciência, área de ocorrência e formas de identificação das mesmas. Essas informações são utilizadas por médicos, farmacologistas, bioquímicos, fisiologistas ou biólogos que estudam venenos e envenenamento buscando conhecer suas atividades biológicas. Esses venenos podem ser úteis para entender processos biológicos ou podem levar ao desenvolvimento de fármacos contra diversas doenças. As informações sobre aranhas e escorpiões são também utilizadas na conservação dessas espécies, muitas delas ameaçadas de extinção.
Além da pesquisa de animais, também é possível realizar estudos acerca do passado evolutivo da biodiversidade. Com sua pesquisa voltada para a caracterização da biodiversidade neotropical, Maria José explicou que as informações obtidas, desde análises celulares até os formatos dos membros, auxiliam na conclusão dos estudos que podem ser importantes, do ponto de vista médico e de saúde pública.
Nanoestruturas na Imunologia
As nanoestruturas são estruturas muito pequenas de tamanho aproximado entre estruturas moleculares e microscópicas. Na pesquisa chefiada por Osvaldo Augusto Brazil, as nanoestruturas poderão ser usadas na aplicação de vacinas por via oral. Segundo ele, nosso estômago possui protease, uma enzima que digere proteínas e que pode digerir uma vacina antes dela chegar ao intestino, onde está localizado nosso sistema imune. Outro problema que a vacinação atual possui é sua falta de universalidade por causa do preparo de profissionais que muitas vezes não estão em áreas mais isoladas. Seguindo sua explicação, as nanoestruturas poderiam proteger as proteínas das vacinas contra as enzimas estomacais, tendo maior efetivação ao chegarem na região dos intestinos e ainda, combiná-las com outras vacinas numa única dose e possuir uma aplicação menos dolorosa por via oral. Esse trabalho conseguiu ter seu conceito patenteado em diversos países, como Japão, China, México, Índia, União Europeia, Estados Unidos e África do Sul. Não é propriamente um produto, ainda, mas que poderá existir futuramente a todo vapor.