Por Maria Eduarda Nogueira e Thaislane Xavier
mariaeduardanogueira@usp.br e thaislanexavier@usp.br
Meus filhos estão perdendo a cabeça e, junto com ela, todo o respeito por mim. A nova moda é dizer que sou uma acumuladora. Onde já se viu? Nunca passaram uma necessidade na vida ‒ graças a mim! ‒ e agora vêm com essa história de que estou guardando coisa demais. É bom que estão vindo menos aqui em casa! Não aguento mais ser atacada dessa maneira.
Primeiro de tudo, só guardo as coisas necessárias. Uma pessoa precisa estar bem preparada, para caso algum dia as coisas comecem a dar errado. Ninguém lembra das crises nesse país? Só quem sofreu sabe! Desde quando eu era novinha, mamãe já sabia das coisas: guardava tudo que podia ser útil. Sábia mulher. Não me passou toda a força de operária de fábrica, mas de certo adquiri seu mais valioso hábito.
Desde pequena, aprendi com ela que tudo um dia pode ser útil, por isso devemos guardar as coisas. Agora que já tenho 70 anos, meus filhos querem dizer que é errado, que pode ser perigoso guardar todas essas coisas? Olha, não acredito que ouvi isso deles!
A Fernanda, minha filha mais velha, por exemplo, já precisou de um sapateiro. Se não fosse o cartão de um senhor que guardo há décadas, teria demorado muito mais para achar. Mas ela agradeceu? Não! Só reclamou do fato de eu ter demorado três dias para achar no meio dos outros papéis. Os filhos não dão mais valor hoje em dia!
O João Felipe? Vive falando que eu deveria ao menos separar as quinquilharias que junto. De acordo com ele, se tivesse uma espécie de categorização talvez elas fizessem mais sentido. Categorização para quê? Sei exatamente onde está cada uma das minhas coisas.
De um tempo pra cá, até os vizinhos estão me enchendo a paciência. Dizem que vão chamar a polícia, que vão me internar num hospital psiquiátrico. Pois eu acho isso pura bobagem. Eles não sabem que todos os meus itens têm valor? Que são úteis a minha vida? Que chamem a polícia, o SAMU ou até mesmo o padre! Tenho certeza que qualquer pessoa sensata entenderia.
Esses dias, passando pela praça aqui perto de casa, vi uma cadeira em plenas condições. Fiquei pensando em quem seria o sem noção que se desfaz dos seus móveis assim. Já que estava do lado do lixo, conclui que o dono não precisava mais. Então, chamei Fernanda para me ajudar a levar a cadeira pra casa. E a atrevida se recusou! Pois carreguei eu mesma a cadeira. Ela ficou perfeita para apoiar minhas revistas no banheiro.
Falando em outro atrevido, pedi pro João Felipe chamar um dedetizador para mim. Ultimamente, está uma febre de ratos e baratas, principalmente na cozinha. Desde que meu marido Bentinho morreu, essas pragas ficam aparecendo. Deve ser porque ele matava todas para eu não precisar conviver com tamanho desconforto. Está sendo muito difícil sem ele, que partiu sem dar adeus. Doença danada esse tal de câncer! Desde então, prefiro ficar sozinha mesmo… eu e minhas coisas, que os outros insistem em chamar de tralhas.
Outro dia, tive que me desfazer de uma panela que eu guardava desde a época de mamãe. Era a preferida dela, dizia que “panela velha é que faz comida boa”. A danada acabou caindo no chão e quebrando. Insisti para João Felipe e Fernanda que ainda dava para usar. Mas eles não quiseram saber… resolveram jogar no lixo. E nem foi no lixo da minha casa, porque tinham medo que eu pegasse de volta. Levaram embora e deram fim a minha querida panela. Fiquei triste e não falei com os dois por uma semana. Era a panela na qual eu fazia o arroz do Bentinho….
Lembrar dele e de mamãe ainda me faz chorar. Olhar para as coisas deles ou que me lembram deles me deixa emocionada, cada uma daquelas peças tem uma história tão linda, jogá-las fora é jogar meu passado fora também.
Há dias que me pego olhando para a parte do guarda-roupas que pertencia ao Bentinho. Ele tinha tantas peças… e eu vivia reclamando da quantidade de roupas que ele possuía, boa parte desde que era adolescente. Ele sempre me dizia que guardava porque cada uma tinha um significado especial. Hoje o entendo, não me desfiz de nenhuma pecinha sequer, elas me trazem boas lembranças dele.
A Fernanda me disse que eu criticava essa mania dele de guardar tudo por ter uma memória afetiva. Para mim, isso foi uma afronta e nós brigamos, mas, por um lado, agora ela parece ter razão. Essas peças nunca vão sair do armário, não deixo ninguém tocá-las com medo de estragar, estão sem serventia e choro tanto olhando para elas…
Talvez o apego a essas peças do Bentinho não seja algo positivo. Eu brigava tanto com ele por elas, será que faz sentido mantê-las pelos mesmos motivos? Meus filhos podem estar certos, está ficando realmente difícil andar nessa casa com minhas coisas formando pilhas incontáveis pelo chão. Mas como eu poderia me desfazer de coisas tão significantes… e se precisar delas? E agora, o que vou fazer?
Mais tarde naquela semana…
Vi João Felipe conversando com o policial e percebi os vizinhos se aproximando desesperados. Fernanda estava ao meu lado. Minhas roupas estavam sujas e minha pele tinha várias queimaduras espalhadas. Mas não consegui entender o que estava acontecendo. Tudo estava inaudível. E incompreensível.
Só conseguia pensar nas roupas do Bentinho. Como pude ser tão descuidada? Agora, tudo estava em cinzas…
Quando retomei a consciência, estava num lugar estranho. Quer dizer, não totalmente estranho. Tinha passado muito tempo nesse lugar depois da morte dele. As memórias voltaram à tona muito rapidamente. Lembrei das crises de pânico e dos analgésicos. Eu estava no hospital.
— Dona Amélia? ‒ escutei alguém chamando. Era uma voz doce, mas estremeci, porque era essa mesma voz doce que tinha me acolhido alguns anos antes. Reuni todas as minhas forças e abri os olhos para encarar aquela terrível realidade.
— Mãe? Mãe! A senhora está bem? Tá sentindo alguma coisa? Quer um copo d’água? ‒ era o João Felipe, que já me bombardeava de perguntas ‒ Enfermeira! Ela acordou!
— Ela acordou! Vou desligar aqui. Te vejo mais tarde, querida ‒ Fernanda devia estar falando com a esposa, mas logo estava ao meu lado.
— O que está acontecendo? Por que estou aqui? Que história é essa? Preciso ir para casa ‒ eu disse. Só o pensamento de ter que ficar mais um segundo naquele lugar já me deixou nervosa.
— Dona Amélia, nós vamos explicar tudo certinho para a senhora. Mas, neste momento, é preciso manter a calma. A pressão da senhora não pode subir ‒ disse novamente a mulher da voz doce. Não conseguia lembrar o nome dela. Mas os calafrios continuavam. Aquilo não podia ser coisa boa.
— Calma? Eu estou longe de casa, com as coisas do Bentinho todas espalhadas pela cozinha e você vem me falar para ficar calma? É muita falta de noção mesmo! João Felipe, ande logo, me ajude a levantar! Não aguento ficar mais um segundo aqui!
— Mãe, acalme-se. A doutora Gabriela só quer ajudá-la ‒ disse meu filho, que tinha olheiras gigantes. De repente, os papéis se inverteram e comecei a ficar preocupada.
— Por que você aparenta estar tão cansado? Já disse que esse seu trabalho não está te fazendo bem. Vem, vamos logo para casa.
— Nós não vamos a lugar nenhum. Agora a senhora vai se recompor e escutar tudo que a médica tem a dizer. Não dá mais para viver desse jeito, mãe ‒ ordenou Fernanda, que também estava com os olhos vermelhos. Se ela tinha chorado antes, agora todo o sentimento de tristeza tinha se transformado em raiva misturada a desespero.
— Dona Amélia, a senhora passou por um episódio traumático. No momento em que cozinhava, por ter muitas coisas em sua cozinha, acabou tropeçando e deixando uma faísca atingir as roupas que estavam penduradas ao lado da geladeira…
A tal médica Gabriela estava falando, mas eu não escutava mais nada. De repente, minha memória reacendeu e só consegui pensar no tal “episódio traumático”. Eu estava revendo umas fotos antigas e acabei me deparando com o álbum de Natal. Vi a comida favorita do Bentinho e decidi fazer.
Peguei a frigideira e enchi de azeite, era assim que ele gostava. Quando fui acender o fogão, não estava funcionando direito. Tentei várias vezes, mas a cozinha já estava cheirando a gás. Resolvi pegar um fósforo, que estava atrás dos cabides de roupa que gosto de deixar do lado da geladeira. Acendi. E tropecei no sapato social que lá estava. De repente, tudo estava em chamas. Inclusive as roupas do Bentinho.
Lembrei dos gritos do João Felipe no portão. Lembrei que eu não conseguia me mexer. Estava em choque, vendo as minhas coisas serem reduzidas às cinzas. Lembrei de não ter conseguido preparar o prato preferido do meu esposo. Mais uma vez, eu tinha o decepcionado.
Quando retomei a consciência do que estava acontecendo ao meu redor, escutei a tal Gabriela falando a seguinte coisa:
— … e é por isso que a senhora precisa ficar aqui no hospital durante um tempo, para fazer terapia cognitivo-comportamental.
— Mãe, antes que a senhora fique toda nervosa, pense um pouco em tudo que aconteceu. Precisamos resolver esse seu problema de ansiedade. Não dá mais para ficar remoendo a morte do papai ‒ disse João Felipe.
— É, mãe, você precisa de ajuda. Eu e o João Felipe não conseguimos estar presentes toda hora. Dessa vez, a senhora deu sorte ‒ complementou Fernanda.
— Tudo bem. Eu aceito.
Eu não sabia de muita coisa. Mas tinha uma certeza: precisava de ajuda.
— Isso é muito bom, Dona Amélia. Tenho certeza que os resultados serão satisfatórios. Mas antes, preciso explicar algo para a senhora e para seus filhos. Não é um problema de ansiedade. A senhora tem transtorno compulsivo acumulativo.
Eu já estava no hospital há alguns dias. Em todos eles, meus filhos vieram me visitar. Quem sabe, eles não estavam perdendo a cabeça, como imaginei. Quem sabe o problema era minha cegueira.
Primeiro, precisei me recuperar fisicamente para começar a terapia. Todo dia, a médica vinha checar como eu estava. Mas o dia finalmente tinha chegado. Fui transferida para uma pequena suíte, em outra ala do gigante complexo. A enfermeira me avisou que eu deveria ficar pronta para a sessão às 15h.
Quando o relógio marcou o horário, meu coração começou a bater muito forte. Uma senhora de 70 anos indo em terapia? Isso é desnecessário. Comecei a procurar um telefone. João Felipe e Fernanda precisavam vir me buscar. Por que tinha concordado com essa história? Só podia ter sido um momento de choque mesmo! Essa história de transtorno não-sei-o-quê é frescura. Eu estava completamente bem e funcional. Que idoso não tropeça de vez em quando?
Enquanto essa espiral de pensamento ocupava minha cabeça, a enfermeira chegou.
— Vamos, dona Amélia? A psicóloga está esperando a senhora.
— Eu não vou mais nisso! É uma afronta contra mim. Uma pessoa da minha idade deveria estar em casa, não se submetendo a uma situação humilhante dessas. Vamos, me dê um telefone para eu falar com meus filhos.
— Que tal a senhora conhecer a Valéria primeiro? Depois, prometo que farei a ligação para seus filhos.
— Vou aceitar só para não falarem que me recusei a dar uma chance.
A enfermeira me encaminhou para a sala da tal Valéria. A porta era de madeira, as paredes eram creme, o sofá tinha almofadas coloridas. Era um ambiente bonito. Mas nada convidativo para mim. Lá dentro, me esperando, estava a psicóloga.
— Boa tarde, Amélia. Tudo bem? Meu nome é Valéria. Vamos conversar um pouco?
— Sendo bem sincera, não estou muito bem com essa história de terapia. Honestamente, não sei o que estou fazendo aqui. Acho isso uma besteira sem tamanho.
— Sente-se aqui, por favor. Vamos conversar um pouquinho.
— Sabe Valéria, meus filhos cismaram que tenho esse transtorno não-sei-o-quê e me colocaram para fazer terapia, isso é desnecessário. E nem adianta tentar mudar minha opinião, estou decidida!
— Amélia, o nome é transtorno de acumulação compulsiva. Mas isso não é relevante no momento. Por que seus filhos julgam importante que a senhora esteja aqui?
— Ah, isso tudo começou por causa das coisas que eu junto, acredita? Eles falam que são desnecessárias e só ocupam espaço. Veja se tem cabimento uma coisa dessas!
— Mas que tipo de coisa a senhora junta para fazer com que eles pensem isso?
— Eu tenho de tudo. Panelas antigas, cartões de todos os lugares que me dão, móveis em perfeito estado encontrados no lixo. E, claro, as roupas do meu falecido marido. Guardo tudo que posso vir a precisar um dia ou aquilo com histórias especiais.
— Entendo. A senhora deve realmente usar essas coisas com muita frequência para guardar há tanto tempo…
— Sabe que não? Boa parte nunca usei. Mas minha mãe me ensinou a guardar, pois não se sabe quando um item pode ser necessário, não é mesmo? Já passei muita necessidade nessa vida, não quero que isso aconteça de novo. Também tem as roupas do Bentinho. Não posso nem pensar em me desfazer do que ele deixou, são as únicas coisas que me restam dele ‒ enquanto relatava para a Valéria o motivo, nem percebi as lágrimas escorrendo.
— Aqui, Amélia, pegue um lenço. A senhora me parece ter um apego emocional muito grande às coisas do seu marido. Quando olha para elas, como costuma se sentir?
— Ai, choro tanto olhando para as coisas dele. Sinto tanta falta do meu Bentinho.
— Mas ainda chorando mantém elas por perto. Por quê?
— Como eu disse, é a única parte dele que me resta, não quero ver outras pessoas possuindo-as ou jogar fora aquilo que um dia pertenceu ao meu único amor.
— Se não as tiver mais por perto, a senhora não continuaria olhando e o seu sofrimento diminuiria, não?
— Você não me entende! Eu não consigo nem tocar naquelas roupas. Tirá-las dali? Não, seria demais para mim.
— Se alguém te ajudasse, estaria disposta a deixar tudo ir?
— Eu tenho tanta coisa, não é fácil me desapegar delas assim. E se precisar depois? Vou me arrepender com certeza. Tudo bem que às vezes tropeço e me machuco. Teve o acidente também. Não consegui voltar em casa ainda. Pelo que me disseram, minha cozinha cheia de móveis da mamãe se foi, consumida inteira pelas chamas. Mas eu demorei tanto tempo para juntar tudo que possuo.
— Pense comigo. Se a senhora já se machucou com as pilhas espalhadas pela casa e nunca usou a maioria das coisas, elas não têm uma serventia exata. O incêndio foi grave, mas poderia ter sido bem pior se não tivesse ninguém por perto no momento. Na casa, há muitas coisas nas quais o fogo se espalha rapidamente. Tudo viraria cinzas em minutos se os bombeiros não tivessem chegado tão depressa.
— Minhas coisinhas virando cinza? Não, não quero nem pensar em ficar sem um teto decente para morar, já basta na minha juventude ‒ ao dizer isso, comecei a chorar muito e não consegui mais falar. Após me recompor, conversei com a psicóloga sobre tudo que se passou pela minha cabeça naqueles minutos.
— Valéria, talvez você e meus filhos tenham razão. Acumular todas essas coisas está mais me atrapalhando do que ajudando. Sofro olhando as coisas do Bentinho e me machuco tropeçando nas pilhas pela casa. Mas como vou me livrar de tudo? Ainda gosto muito das minhas coisinhas.
— No início, pode não ser fácil. Reconhecer os erros é o primeiro passo para consertá-los. Vou ajudá-la a entender a origem do problema, depois a solução vem aos pouquinhos. A senhora não vai conseguir se desfazer de tudo de uma vez. Mas ao fim das sessões, a Amélia vai sair daqui outra pessoa.
Meses depois…
Depois de meses na terapia com a Valéria, eu finalmente estava preparada para voltar para casa. A cozinha tinha sido destruída por causa do incêndio, juntamente com todas as coisas que estavam nela. As roupas dele, os antigos móveis de mamãe, os eletrodomésticos ‒ que já estavam velhos, de todo jeito ‒ enfim, tudo. De certo modo, ver que aquilo tinha ido embora foi um alívio. No entanto, se desfazer das coisas ainda trazia dor.
João Felipe e Fernanda tinham se encarregado de fazer a reforma da casa. Mas ela não parecia nova. Porque era a casa de uma acumuladora compulsiva.
“Reconhecer os erros é o primeiro passo para consertá-los.” Pois bem: eu, Amélia Maria, acumulo coisas. Coisas que não preciso e nunca precisarei, principalmente. Coisas pertencentes a pessoas que já se foram. Coisas que me fazem doente e que atrapalham a vida daqueles ao meu redor.
“Vou ajudá-la a entender a origem do problema.” Minha mãe acumulava coisas, mas eu achava que estava tudo certo, porque parecia um comportamento adequado para nós, que éramos pobres. Ah, isso também é um fator. Já passei dificuldade na vida e temo todos os dias que isso aconteça de novo.
Meu marido morreu de câncer. Ele era meu companheiro fiel, a única pessoa que me entendia por completo. Mas ele foi para um lugar diferente e não quis me levar. Aguento essa dor no peito de saudades há muito tempo. Não consigo me desfazer das coisas dele, porque parece que estou o abandonando.
“Depois a solução vem aos pouquinhos.” Acho que seria bom mudar de casa. Ir para um apartamento, mais perto de onde meus filhos moram. Essa casa é muito grande para uma pessoa só. Ela me lembra de todos os momentos ‒ tristes e felizes ‒ que vivi com Bentinho. Preciso de ambientes novos.
A recuperação nunca é fácil. Mas não chega perto de ser a parte mais difícil do processo. Como uma pessoa de 70 anos, já passei por muita coisa. Acumulei não só coisas materiais, mas também dores de quem carrega o mundo nas costas. Chega dessa vida de Atlas.
Nunca é tarde para recomeçar.
As psicólogas Erika Conti (PUC-GO) e Márcia Fortes (UPE) foram consultadas para a construção desse texto.