Lima Barreto, um dos mais importantes escritores do Brasil, é conhecido por ter sido internado duas vezes em hospícios (nome da época para hospital psiquiátrico) por problemas com álcool. Das duas vezes que foi encaminhado para essas instituições, o escritor deu origem a muitos diários sobre o seu cotidiano e começou o romance “O cemitério dos vivos”.
Na época — a primeira internação de Lima Barreto foi em 1914 e a segunda em 1919 — os hospícios eram utilizados para tratar os mais diversos casos clínicos, nem todos sendo o que tomamos hoje por doenças psiquiátricas. Por ter alucinações causadas pelo consumo exagerado de álcool, o autor foi pego duas vezes pela polícia e enviado para o Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro.
A primeira parte do livro é o registro do diário que Lima Barreto fez durante a segunda internação — que durou dois meses. Esses relatos feitos em tiras de papel foram encontradas após a morte do autor, que tinha uma grande preocupação com a datação e a numeração do que estava produzindo. O mais curioso a se observar no diário é que ele estava completamente lúcido e consciente da sua situação, conseguia analisar as doenças que acometiam os outros pacientes, caracterizar o tipo de crise que cada um dos seus colegas tinham, e refletir sobre o que causou sua dependência alcoólica.
A produção desse diário foi de grande contribuição para o estudo da biografia de Lima Barreto, por dar detalhes importantes de sua vida profissional e particular. O autor foi universitário durante um curto período de tempo na Escola Politécnica da UFRJ — mas não conseguiu concluir o curso e fica remoendo o fato de não ter um diploma durante todo o livro — , além de ter problemas com o pai, que também tinha ficado internado no mesmo hospital, e não ter tido nenhum caso romântico conhecido.
Na segunda parte do livro — o romance “O cemitério dos vivos” — a sensação é que a mesma história do diário está sendo contada, mas Lima Barreto fantasia sobre vários aspectos de sua vida, como se fosse melhorá-la. São criadas personagens de esposa, filhos e dos funcionários que cuidavam dos pacientes do hospício.
No texto, o personagem principal (que seria o próprio autor) mostra a angústia de estar preso em um lugar em que não há nada para fazer e ninguém lúcido o suficiente para manter uma conversa por vários dias. Para ele, os momentos mais animados dos dias que passou internado eram as horas de refeições e os momentos em que conseguia ler na biblioteca.
Ao final, o livro traz diversos textos que mostram ligações com os momentos em que o escritor esteve internado e que são de maior compreensão se forem ligados ao contexto da escrita. O período que Lima Barreto passou internado foi muito produtivo para suas obras, porém muito degradante na sua vida pessoal. O autor morreu cedo, com 41 anos, devido a um colapso cardíaco.
A obra não decepciona em nenhum momento. A escrita de Lima Barreto é impecável e consegue prender o leitor mesmo nos momentos em que seu diário é desconexo — e é justo ressaltar que a edição traz um estudo aprofundado sobre os escritos do autor e fornece diversas explicações sobre o contexto e os personagens. A leitura fornece uma reflexão profunda sobre o que é considerado loucura e como os hospícios são tratados de forma desumana a não muito tempo atrás.
Leitura recomendada para quem quer conhecer mais da literatura de Lima Barreto e ficar por dentro de um relato real, diretamente de dentro de um hospício e de uma pessoa que estava lúcida em meio a muitos sem consciência.
Por Giovana Christ
giovanachrist@usp.br