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Niède Guidon: a mulher que (re)descobriu as Américas

Niède faleceu no último mês de junho aos 92 anos; do semiárido à política, vida da arqueóloga foi uma jornada constante de luta pelo Brasil
Por Catarina Martines (catarinamartines@usp.br)

Suaves pinceladas imitam o movimento cirúrgico dos médicos. Respira, escava, respira. Retira, limpa, retira, limpa. Respiração lenta, muita atenção e controle de cada camada da terra que é retirada. Um mínimo deslize pode significar a perda de um material que data de milhares de anos atrás. A função de um arqueólogo exige uma responsabilidade muito singular. 

Olhar sério, postura firme e fala direta. Promessas de largar de vez o projeto de uma vida inteira foram proclamadas diversas vezes, porém o seu amor por um espaço de mais de mais de cem mil quilômetros quadrados foi mais forte do que a descrença de todos. 

Muito se fala sobre a capacidade que um ser humano tem de, mesmo após a morte, se manter vivo por toda a eternidade através do que deixou neste mundo. Niède Guidon morreu no último mês de junho aos 92 anos, porém seu legado ocupa uma linha temporal que vai desde mais de cem mil anos atrás até, pode-se dizer, o futuro da humanidade.

Responsável por explorar e coordenar durante anos o Parque Nacional da Serra da Capivara, no estado do Piauí, Niède foi uma arqueóloga apaixonada pelo seu ofício. Em plena década de 70, uma mulher ocupar espaços de liderança já era uma tarefa difícil, ainda mais no semiárido do Brasil. Desde mapear as escavações até lidar com burocracias e legislações em prol da preservação da região com uma das maiores concentrações de sítios arqueológicos do mundo, ela fez muito mais do que a profissão clássica da arqueologia demanda.

Da França ao interior do Piauí

Niède nasceu em Jaú, interior do estado de São Paulo, cidade natal de sua família materna e onde sua família paterna se estabeleceu após imigrar da França. Depois de formar-se em História pela USP (Universidade de São Paulo), ela descobriu o que seria o grande tesouro de sua vida. 

Em 1963, enquanto trabalhava no Museu do Ipiranga da USP, Niède teve contato com fotografias de pinturas rupestres da Serra da Capivara. A vontade de estudar a região foi interrompida pelo Golpe Militar, que aconteceu no ano seguinte e levou a pesquisadora a buscar exílio na França. Dez anos depois, ela viu com os próprios olhos esse sítio através de uma missão francesa de arqueologia no Piauí — e até seus últimos dias de vida não abandonou o lugar.

Desde então, Niède dedicou-se a liderar inúmeras pesquisas na região para, além de reconhecer o valor científico que a localidade continha, mostrar para o governo brasileiro a importância de sua preservação. Tais esforços culminaram na criação, em 1979, do Parque Nacional da Serra da Capivara, que estende-se pelos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias, abrangendo mais de 100 mil quilômetros quadrados.

Paula Regina Buonaducci Molina,  professora de história formada em Museologia, conheceu Niède em 2004 durante a exposição “Antes – Histórias da Pré-História”, onde ela explicou as peças expostas. Molina relata que ter contato com a experiência de Guidon, além de ter sido um período de puro conhecimento, foi revelador: “quase largo tudo e vou para a Serra da Capivara trabalhar com ela”, brinca. Molina acredita que o trabalho da arqueóloga foi essencial para a conservação do patrimônio brasileiro. “Professora Niède era uma grande ativista tanto com o meio ambiente, como com a preservação do patrimônio histórico […].  Infelizmente a preocupação com o nosso patrimônio sempre foi o maior problema que ela enfrentou. Se hoje temos um Parque Nacional naquela região é graças a sua força “, comentou. 

Niède Guidon em escavação em sítio arqueológico na Serra da Capivara
Niède dando suaves pinceladas em escavação de sítio arqueológico [Imagem: reprodução/Fumdham]

A ciência imita a vida

Para além da pesquisa científica, o impacto que o passado pode desempenhar no presente é enorme. Seja através da luta pela preservação de um espaço com valor arqueológico incalculável até a orientação da formação de futuros pesquisadores, Niède driblou uma das maiores dificuldades do meio acadêmico: unir as ciências. Além do conhecimento histórico que a pesquisa com arqueologia gerava, ela gerou um impacto socioambiental sem precedentes.

A pesquisadora morava em São Raimundo Nonato, e esteve presente quase que integralmente na origem e manutenção do parque da Serra da Capivara. Niède pôde desenvolver uma visão integrada acerca da população que vivia nesse município e em Coronel Dias, principais portas de entrada do parque. A região da caatinga no estado do Piauí é extremamente pobre e, de acordo com a pesquisadora, diversas famílias viviam em isolamento social completo, sendo muito difícil conscientizar as pessoas sobre a importância da preservação do parque enquanto elas mesmas tinham sua existência negligenciada. 

Ao perceber que a fragilidade socioeconômica dificultaria a preservação de um patrimônio, ela investiu nessas comunidades e promoveu projetos de saúde e educação, além de incentivar novas profissões para combater o desemprego, como a meliponicultura, a cerâmica e o turismo. A arqueóloga pressionou durante anos pela construção de um aeroporto na região, que só foi concluída em 2015 — e contribuiu tanto para melhorias na  infraestrutura local, quanto na reparação e construção de rodovias e na abertura de hotéis e pousadas. 

Sobre a produção de mel, um projeto desenvolvido por Niède com ajuda do Banco Interamericano, ensinou a cultivar abelhas de maneira racional. Tal ação foi fundamental para o Piauí atingir a marca do segundo maior produtor de mel do país, sendo São Raimundo Nonato o principal produtor do estado.  

Ademais, Niède fez esforços para preservar a fauna do parque. A transformação da região da Serra da Capivara em parque, em si só, já foi uma forma de proteção na medida que ele virou uma área de preservação e proteção ambiental. Ela também lutou contra a caça ilegal e o desmatamento, implantou medidas para a proteção da biodiversidade e se dedicou à criação de diversos corredores ecológicos para a passagem segura dos animais.

O principal corredor liga a Serra da Capivara ao Parque da Serra das Confusões. Antigamente ambos eram ligados, mas o desmembramento da área prejudicou os animais que se beneficiam da alternância de estiagem. Para solucionar esse problema,  foi necessário uma ação da Fundação do Homem Americano (Fumdham) de construir reservatórios de captação de água da chuva para ajudar os animais nas épocas de seca.  

A luta de Niède pela fauna dentro do parque foi homenageada em uma descoberta feita pela bióloga Ruth Andrade. A Loxosceles niedeguidonae foi encontrada na Serra da Capivara e é considerada a espécie de aranha mais venenosa do país. Essa espécie batizada em homenagem à arqueóloga, é a primeira aranha-marrom endêmica do Semiárido brasileiro.

O ontem de 100 mil anos atrás 

Antes dos estudos de Niéde, acreditava-se que o ser humano mais antigo das Américas tinha pouco mais de vinte mil anos, porém essa estimativa subiu para 100 mil anos. A comunidade científica chegou até a acreditar que a região da caatinga era inóspita e que o homem pré-histórico não havia sequer chegado lá. Indo contra o principal método estadunidense de determinação de idade de fósseis, que utiliza o carbono-14, a pesquisa da arqueóloga mudou a forma como a comunidade científica enxergava a chegada do homem às Américas: ela se baseou em métodos não tradicionais e polêmicos na comunidade científica.

Pinturas rupestres em caverna na Serra da Capivara, no Parque criado com apoio de Niède
Pinturas rupestres na Serra da Capivara. Foto: Diego Rego Monteiro [Imagem: Diego Rego Monteiro/Wikimedia commons]

Guidón utilizava a técnica da termoluminescência para datar os artefatos descobertos. Esse método consiste em esquentar os objetos estudados e medir a luz emitida – a termoluminescência – que é proporcional à dose de radiação que o material acumulou ao longo do tempo. Com isso, ela desenvolveu a teoria de que o homo sapiens havia chegado no continente americano vindo da África via oceano Atlântico.

De acordo com suas pesquisas, o ser humano, buscando alimento após uma grande seca no continente africano, foi levado pelo mar até a América. Isso porque a distância entre os dois continentes era muito menor, e a profundidade do oceano de apenas 140 metros – hoje a sua profundidade média é de 3646 metros. Até os seus estudos, no entanto, a teoria mais defendida era a de que o ser humano havia chegado nas Américas pelo estreito de Bering – dois pontos separados por 85 km entre o leste do continente asiático e o extremo-oeste do continente americano.

Niède, já na terceira idade, analisanod materiais arqueológicos em laboratório
 Niède analisando materiais encontrados [Imagem: reprodução/Fumdham]

Museus do agora 

Niède foi enterrada no quintal de sua casa em São Raimundo Nonato, que fica ao lado da sede da Fumdham – entidade criada por ela para auxiliar na gestão do Parque da Serra da Capivara. O papel da pesquisadora foi fundamental na criação e no estabelecimento do Museu do Homem e, mais recentemente, do Museu da Natureza. Através desses espaços, a arqueóloga promoveu a divulgação científica das descobertas realizadas nos sítios arqueológicos: os museus se localizam dentro do parque e, dessa maneira, estimulam ainda mais a circulação do conhecimento regional.

Em entrevista à revista Pesquisa Fapesp no ano de 2018, Niède comentou sobre um de seus desejos, que foi proclamado durante anos de profissão e sempre adiado: “depois da inauguração do museu, saio. Vou voltar para a França, mas não sei para onde. Gosto de cidades pequenas, bonitas. Tenho direito de descansar. Vou reclamar meu direito de não fazer nada. Comecei a trabalhar com 18 anos”. Mesmo decepcionada com a forma que o Brasil tratava sua causa, Niède nunca desistiu. 

Wagner Souza e Silva, professor do departamento de jornalismo e editoração da USP, trabalhou durante 10 anos no MAE (museu de arqueologia e etnologia da USP) e afirma que após o trabalho de Niède, a forma como o Brasil enxerga seu próprio patrimônio histórico e cultural mudou muito. “Até então a gente não tinha o menor pudor com a questão de preservação de vestígios arqueológicos. Isso sempre foi muito problemático e preocupante”, comenta. “O MAE, que tem um acervo gigante e um dos mais importantes do mundo, não possui uma sede à altura do acervo que possui”. 

O professor realça como os estudos de Niède foram fundamentais para dar visibilidade a Serra da Capivara e incentivar ainda mais a preservação científica e histórica no Brasil, ampliando o reconhecimento da arqueologia e do patrimônio cultural que o país possui.  

*Imagem de capa: Elisabete Alves/Wikimedia Commons

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