Por Maria Luísa Lima (malulima21@usp.br)
No dia 23 de abril, a Sala Alfredo Bosi do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) recebeu o segundo dia do ciclo de palestras “Jornadas de Evolução Humana”. O evento foi organizado pelo paleoantropólogo Walter Neves, Professor Sênior do IEA e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Disseminação em Evolução Humana (NPDEH), e pelo arqueólogo Victor Nery, mestrando do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e pesquisador do NPDEH. As palestras foram ministradas por professores da USP e de outras universidades, permitindo um grande intercâmbio científico durante o ciclo.
Cultura em animais não humanos
O que é cultura animal? Quais as implicações da destruição de habitats naturais para a conservação dos fenômenos culturais no reino animal?
Essas foram as questões debatidas na primeira palestra do dia, ministrada pelo Professor Doutor Eduardo Ottoni do Instituto de Psicologia (IP) da USP. Sua linha de pesquisa envolve as áreas de Psicologia Evolucionista e do Comportamento e da Cognição Animal, com destaque para estudos no campo de transmissão social de informação e tradições comportamentais. Após a apresentação realizada pelo chefe da mesa, Walter Neves, Ottoni refletiu sobre o que pode ser definido como cultura.
Na área da Antropologia, Edward Tylor, em 1871, propôs a definição de cultura como “aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moralidade, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Ottoni argumenta que essa conceituação levanta debates atualmente, mas que, à época, a afirmação era apenas uma contestação do óbvio.
A partir da descoberta de variações regionais na forma de comunicação dos pássaros, o termo “dialeto” foi utilizado no sentido metafórico para nomear diferentes manifestações animais. Porém, nesse momento ainda não havia a preocupação exata em estabelecer o que seria definido como cultura.
Uma primeira preocupação levantada pelo debate de cultura em animais não humanos é se as diversas formas de comunicação podem se manifestar realmente como cultura no mundo animal. Como a ciência é feita de discordâncias, pode-se imaginar que para esse debate também não seria diferente. Diversos paleoantropólogos discordam das afirmações estabelecidas no ramo da psicologia animal.
O professor diz que o primeiro pesquisador a falar em cultura animal foi Kinji Imanishi, considerado fundador da primatologia japonesa. Seus estudos seguiam a linha de que a cultura animal não era um comportamento hereditário, mas sim socialmente aprendido.
Os estudos na área da primatologia continuaram a ganhar força, e vários sítios de pesquisa de longo prazo com chimpanzés foram estabelecidos por Jane Goodall e Toshisada Nishida. Com isso, foi possível prover um cenário mais complexo sobre cultura em animais não humanos, embasado dos repertórios comportamentais desses casos. Inicialmente, o trabalho envolvia a análise de ferramentas e objetos, sendo denominado de “Chimpanzee Material Culture”. Ottoni pontua que a “Cultura Material” e o uso de ferramentas em animais não humanos é um fator que “mexe com nosso orgulho antropocêntrico e é uma coisa muito boa e conspícua [visível] de observar e medir”.
As pesquisas avançam exponencialmente, estabelecendo diversas condições para o uso de ferramentas em primatas: o contexto ecológico adequado; as elevadas capacidades cognitivas (encefalização, destreza manipulativa, aprendizagem observacional); as situações sociais que favorecem a transferência de informações.

O pesquisador também aborda o uso espontâneo de ferramentas em macacos-prego, observado no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, e em outros parques urbanos. Esses animais utilizam do recurso das pedras com a finalidade de quebrar coco. Estudos anteriores negavam a existência desse fenômeno em comunidades que habitavam florestas. Porém, em habitats como Savana, Cerrado e Caatinga, percebeu-se que esse recurso era muito utilizado para quebrar frutos encapsulados. A hipótese levantada pelo professor é o maior tempo de contato dos animais com o chão.
Os sítios de pesquisa de longo prazo estabelecidos para pesquisar esse comportamento foram no Piauí (Serra da Capivara e Fazenda Boa Vista). Os resultados das observações em campo foram registrados em vídeo, evidenciando os contextos de uso das ferramentas pelos macacos-prego. Os estudos desenvolvidos por Ottoni e sua equipe contribuíram significativamente para o maior entendimento da cultura em primatas não humanos.
“Você pode ter sorte de observar inovações, como a gente teve. (…) Mas isso é bastante improvável. (…) Então a gente tem que dar uma ajudinha, criando situações experimentais de campo”
Eduardo Ottoni
O comportamento social entre os primatas também traduz uma série de tradições que envolvem gestos comunicativos com as mais diversas finalidades, como a rasgação de folhas como corte nos chimpanzés machos. Ottoni mostra que jogos e atitudes com teor afiliativo são extremamente comuns na espécie Cebus capucinus (conhecido popularmente como macaco-prego-de-cara-branca).
A cultura animal só se manifesta em primatas?
O professor do IP traz diversos exemplos de cultura nas mais diversas espécies de animais. Desde elefantes até orcas, as pesquisas demonstram a existência de diversas variáveis na manifestação cultural entre populações ao redor do mundo.
Essas pesquisas trazem luz enfatizam o iminente impacto da destruição das florestas nas populações animais, pois o isolamento dos grupos muitas vezes interrompe o fluxo cultural. O professor explica que as atuais conceituações do que é cultura estão ficando mais abrangentes, englobando “comportamentos e conhecimento adquiridos e transmitidos dentro e entre gerações por meio da aprendizagem social”.
Portanto, Ottoni questiona: “O que é ‘único’ na cultura humana?”. Para ele, a explicação mais sólida passa pela ideia de cumulatividade cultural. Esse conceito propõe que a espécie humana tem a habilidade de aperfeiçoar hábitos e ferramentas, inventando novas soluções mais práticas para os problemas do dia a dia. Ainda assim, Ottoni afirma também que é possível encontrar “algum grau de cumulatividade” nos animais não humanos.
Ao final da palestra, o debate acerca da capacidade de produção de significado na cultura em animais não humanos foi levantado pela homenageada, Lia Amaral, e pelo chefe da mesa, Walter Neves. Em resposta, Ottoni afirma: “O que importa na ciência, na hora de definições, é que novos conceitos levam a gente a explorar as coisas com novos olhos e descobrir novas propriedades nos processos.”

O que estudos na Jordânia revelam sobre a saída dos hominínios da África
A segunda palestra do dia foi ministrada pelo professor Fábio Parenti, arqueólogo pré-histórico italiano e professor de Arqueologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). A linha de pesquisa do professor abrange as áreas de Arqueologia do Paleolítico e de Paleontologia do Quaternário, tendo sido responsável por estabelecer o primeiro projeto paleantropológico brasileiro no Velho Mundo (Jordânia).
O professor começou levantando a dúvida que envolve o título da palestra: há ambiguidade em afirmar que a primeira saída dos hominínios da África a qual temos conhecimento tenha sido de fato a primeira. O tema é, segundo Parenti, extremamente interdisciplinar, pois a arqueologia sem datação é “um discurso mítico” e a cronologia, ao datar rochas, contribui para a parte técnica, mas “não resolve nenhum problema antropológico”.
Fato é que, no universo da pré-história, o que predomina é o estudo de artefatos líticos, o que se explica devido sua maior durabilidade ao longo de milhares de anos. Atualmente, já existem métodos de análise mais avançados no ramo, como microscopia e biologia molecular. Porém, a literatura já consolidada usa como arcabouço as descobertas arqueológicas possibilitadas pelos vestígios de pedras, utilizadas de diversas formas por primatas.
Parenti trouxe um mapa comparativo entre as datas mais antigas da fabricação de artefatos, mostrando a diferença significativa entre os vestígios encontrados no Velho Mundo, muito mais antigos que os da América e Oceania.

[Imagem: Acervo Pessoal/Letícia Pelistrato]
Diversos critérios específicos são utilizados para diferenciar o tipo de atividade para que cada um dos objetos era utilizado, perpassando o campo da estatística. Por exemplo, o número de lascamentos consegue estimar qual era o ambiente e o uso do artefato em questão.
Os novos fósseis encontrados durante as escavações revelaram informações importantes sobre os mamíferos que habitavam a região, como o descobrimento de dentes de um gênero de coelho, que são excelentes indicadores cronológicos. Essa descoberta ajuda a precisar a idade dos artefatos, contribuindo para o maior conhecimento paleoantropológico.
Os estudos e suas repercussões
As pesquisas na região da Jordânia começaram há 40 anos, e no período entre 2013 e 2016, ficou sob comando da equipe brasileira, em conjunto com a italiana, de 2013 a 2016. Desde 2022, as equipes brasileira, italiana e francesa continuam os estudos em campo.
“A Jordânia é um Estado jovem e islâmico. Já explica muito. Então, não existe grande afeição para a pré-história antiga. O interesse real é pouco.”
Fábio Parenti
Sítios arqueológicos explorados em outras pesquisas foram utilizados para dar continuidade às descobertas dos estudos da equipe de Parenti. Alguns deles sofreram mudanças com a expansão organizacional da cidade, causando dificuldades para a escavação e realização dos trabalhos.
As análises dos ângulos e formatos das lascas presentes nas rochas demonstraram a presença de alta sofisticação dos artefatos encontrados, permitindo desenhar um retrato mais apurado das espécies que habitavam o local, bem como seus hábitos e costumes.
Ao final da palestra, Parenti abriu espaço para responder perguntas e esclareceu que a matéria prima principal dos líticos utilizados era silex, pela abundância de calcário nas colinas da região. Também levantou-se a questão da dificuldade de conservação dos artefatos, tanto pelo aspecto da destruição in loco, quanto pelas inequações técnicas das reservas técnicas da região, que muitas vezes perdem os materiais entre diferentes campanhas de escavação. “A gente ainda tem sorte de ter a Jordânia ‘praticável’, porque nos outros estados palestinos, ‘esquece’”, conclui Walter Neves.
Novos métodos de datação para sítios arqueológicos
A última palestra do dia foi ministrada por Giancarlo Scardia, professor associado do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e coordenador do Laboratório de Paleomagnetismo (UNESPmag).
Scardia explorou as bases teórico-metodológicas do que é definido como geocronologia. Primeiramente, define a cronologia como o estudo da medição do tempo, que envolve diversos campos científicos, como a arqueologia, geologia e física. Nessa última, são utilizados alguns métodos para estimar a idade de artefatos através do fenômeno chamado de decaimento radioativo.
Na cronologia, o palestrante ressalta a importância de separar dois conceitos: tempo relativo e tempo absoluto. Enquanto no estudo de tempo relativo, o contexto e relação de um objeto com o espaço são aspectos levados em consideração para datá-lo, no outro essa contextualização não se faz necessária.
E na geologia, como isso se aplica?
O tempo geológico é intrínseco à idade das rochas. Se não existem rochas em determinado ambiente, também não existe análise geocronológica. Para Berggren, um dos primeiros estudiosos a definir esse conceito, o registro estratigráfico é a materialização do tempo ao longo da história da Terra.
“Tem que imaginar que as rochas são como páginas de um livro. O trabalho do geólogo é ler essas páginas.”
Giancarlo Scardia

[Imagem: Acervo Pessoal/Maria Luísa Lima]
Os métodos de datação são intrinsecamente ligados a processos físicos constantes, relacionando-se ao conceito de tempo absoluto. Scardia expõe que existem três famílias nesse estudo: o decaimento dos isótopos instáveis, o paleomagnetismo e o acúmulo da radiação natural ionizante (liberada pelos isótopos radioativos em cristais).
O professor da UNESP explica que o decaimento radioativo do carbono-14, método de datação mais conhecido entre os arqueólogos, é amplamente utilizado para fósseis de até 50 mil anos de idade. Esse limite deriva da ideia de meia vida (tempo necessário para perder metade dos átomos iniciais da amostra) de cada elemento. O rádio-carbono que está presente na atmosfera é absorvido pela fotossíntese das plantas e entra na cadeia alimentar dos seres vivos.
“Enquanto a gente vive, somos radioativos, porque temos pequenas quantidades de radiocarbono. Quando morremos, esse radiocarbono volta a ser nitrogênio e a razão entre os dois me diz quanto tempo o organismo está morto.”
Giancarlo Scardia
Porém, para fósseis mais antigos, é preciso recorrer a elementos que possuam uma meia-vida maior. O alumínio e o berílio, por exemplo, conseguem chegar até 5 milhões de anos.
Durante 10 anos, Scardia e sua equipe desenvolveram um mapa geológico da região apresentada na palestra anterior, a Jordânia. A formação calcária revela evidências sobre a primeira saída hominínia conhecida da África, debatida na palestra anterior.
As características pedogênicas da Jordânia permitem a datação devido à alta diversidade de composição do solo, dependendo da “criatividade do geocronólogo para ‘correr atrás’ dos elementos que podem ser utilizados”. Em suas pesquisas, o professor conta que utilizou a datação Argônio 40/Argônio 39, método inovador e extremamente preciso.
*Imagem de capa: Arquivo Pessoal/Letícia Pelistrato