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O quebra-cabeça da história brasileira

Patrimônios arqueológicos revelam o passado de regiões e materializam a memória de povos

Por Rebeca Fonseca de Ávila (rebecafonsecadeavila@usp.br)

Cavernas com pinturas rupestres, ruínas de construções, porcelanas, amuletos, vasilhas e pontas de lança. Tudo isso é um vestígio material de ocupação e uso humanos no passado, então pode se tornar patrimônio arqueológico brasileiro – ou seja, ser reconhecido e protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por seu valor cultural e científico. 

No fim de 2021, foi anunciada a construção de uma fábrica da cervejaria Heineken em Lagoa Santa (MG) a 800 metros do Sítio Arqueológico Lapa Vermelha – onde Luzia, o fóssil humano mais antigo da América, foi encontrado. A proximidade poderia afetar a integridade do sítio, prejudicar futuras escavações e alterar a dinâmica de drenagem da água – por isso, a empresa acabou sendo multada e as obras foram paralisadas. Esse tipo de ameaça torna-se mais preocupante quando se entende a importância da transformação de regiões como essa em patrimônios arqueológicos. 

De acordo com Tania Andrade Lima, pós-doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a transformação é uma forma de valorizar evidências da diversidade étnica e cultural do passado brasileiro. “Ao reconhecer e transformar esse legado em patrimônio,  criamos condições para a sua preservação e para que essa transmissão [entre gerações] de fato ocorra”, explica.

 

Patrimônios arqueológicos e história brasileira

Imagem de Tania Andrade Lima.
[Imagem: Reprodução/Youtube]
Os patrimônios arqueológicos possuem uma peculiaridade enquanto registros históricos: são representações físicas do tempo passado, diferentemente de fontes escritas, que documentam acontecimentos, mas dizem pouco sobre sociedades iletradas, por exemplo. Lima explica que eles são fontes independentes e que dizem respeito ao que foi feito sem a possibilidade, presente em registros documentais, de distorções sobre o que ocorreu de fato. 

Segundo a pesquisadora, “os registros arqueológicos contribuem trazendo à luz o que os documentos não registraram, sobretudo entre aqueles que não tiveram condições de escrever sua própria história. O resgate desses fragmentos pode contribuir para a construção de uma memória social mais inclusiva, não restrita à das pessoas dominantes”.

Além desse aspecto, a materialidade dos vestígios arqueológicos atinge nossos sentidos, provoca emoções e estimula reflexões. Lima exemplifica esse caráter dos patrimônios contando ao Laboratório sobre sua análise do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro (RJ), um dos Patrimônios Mundiais da Unesco. No local, desembarcaram forçosamente mais de um milhão de africanos durante os séculos 18 e 19 para serem escravizados. 

O Cais não era apenas um porto, mas um complexo do comércio escravocrata, com armazéns para a negociação das vidas, casas onde os escravizados eram alimentados para que engordassem e pudessem ser vendidos, um hospital e o Cemitério dos Pretos Novos — também um sítio arqueológico.

Após a desativação, o porto negreiro foi aterrado duas vezes. Em 2011, durante escavações, foram encontrados vestígios do trânsito humano no local: amuletos e objetos pessoais e de culto. Lima relata que esses resquícios permitem que se sinta “a brutalidade de um sistema fundado na opressão extrema de seres humanos”. Para ela, “o Valongo é uma denúncia constante de um passado que não pode se repetir, mas que insiste em sobreviver.” “É um  grito de dor que precisa ser ouvido”.

 

Foto do Sítio Arqueológico Cais do Valongo
O Sítio Arqueológico Cais do Valongo é o único vestígio material da chegada dos africanos escravizados nas Américas. [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]

 

Foto do Pedro Paulo Abreu Funari
[Imagem: Reprodução/Pedro Paulo Abreu Funari]
Segundo o doutor em Arqueologia pela USP e professor titular de História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Pedro Paulo Abreu Funari, a materialidade dos registros arqueológicos também ajudou a desvendar a repressão sofrida por pessoas comuns durante a ditadura civil-militar (1964-1985), embora estes não tenham se tornado patrimônios. A partir da investigação de ossadas — e também de roupas e instrumentos abandonados em centros de tortura — é possível identificar os desaparecidos, recuperar suas histórias e ter a dimensão concreta da violação dos direitos humanos.

A participação de arqueólogos na equipe técnica do Grupo de Trabalho Perus (GTP) representa um dos casos de contribuição dessa ciência na busca e identificação dos restos mortais de vítimas da ditadura militar. Em parceria com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o grupo foi criado em 2014 para analisar mais de mil ossadas encontradas em valas clandestinas no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP). Em 2018, foram identificados os militantes Aluízio Palhano Pedreira Ferreira e Dimas Antônio Casemiro, mortos em 1971.

 

Homens carregando as caixas com restos mortais que estava chegando ao CAAF em 2014.
Caixas com restos mortais chegando ao CAAF em 2014. [Imagem: Reprodução/Prefeitura de São Paulo]

 

Funari também comenta a respeito dos vestígios do Quilombo dos Palmares encontrados em União dos Palmares (AL), no Sítio Arqueológico Serra da Barriga, tombado e certificado como Patrimônio Cultural do Mercosul. Ele diz que vestígios arqueológicos “podem fornecer informações únicas sobre a diversidade humana e ambiental, como diferentes sociedades em diversos lugares e épocas possuíam costumes, práticas e valores diferentes” – e esse é o caso da Serra da Barriga.

O arqueólogo explica que é possível entender o cotidiano dos aquilombados a partir de alguns dos materiais encontrados, como vasos de cerâmica vidrada, que indicam a prática de comércio entre os habitantes da comunidade e setores da sociedade colonial, já que essa variante da cerâmica era comum na costa. Pode-se inferir igualmente a presença indígena no Quilombo pela existência de cerâmicas com afiliação indígena. 

Na Serra da Barriga, há o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, onde foram reconstruídas algumas das antigas edificações e instalados pontos de áudio e texto com informações da história palmarina. Essa iniciativa, além de preservar e valorizar a memória da cultura afro-brasileira, é uma forma de educar a população sobre o valor dos patrimônios e torná-la próxima de um passado que também é seu.

 

Imagem do Parque Memorial Quilombo dos Palmares, um dos patrimônios históricos brasileiros.
Parque Memorial Quilombo dos Palmares. [Imagem: Reprodução/ Iphan]

 

Relação com o público e proteção

Na perspectiva de Funari, o turismo incentiva o intercâmbio cultural entre visitantes e visitados a partir dos vestígios arqueológicos. Citando o Parque Nacional Serra da Capivara (PI), ele diz que a atividade turística “permite o contato com pinturas pré-históricas e revela a ocupação indígena, promovendo o deleite de conviver com os locais e seus costumes”, e acrescenta que o mesmo se aplica a outros sítios.

O Parque Nacional da Serra da Capivara — também considerado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco — protege 40% da caatinga brasileira, abriga mais de mil sítios arqueológicos e é a região com maior concentração de pinturas rupestres do mundo. E não para por aí: os vestígios de presença humana encontrados na Serra possuem mais de 50 mil anos e permitiram a contestação de teorias de povoamento da América pela  arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon.

 

Conjunto de pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara.
Conjunto de pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara. [Imagem: Reprodução/ Wikimedia Commons]

 

No local, também foi encontrado o esqueleto de Zuzu, o segundo fóssil mais antigo do continente americano. Todos esses registros arqueológicos são materializações da História e agem como interlocutores do passado brasileiro que podem auxiliar na compreensão da formação dos povos. O papel de locais como Parque Nacional da Serra da Capivara é, por meio da interpretação dos bens culturais, tentar diminuir a distância entre a população e o conhecimento que os bens arqueológicos revelam.

Foto da Eliane Miranda Costa
[Imagem: Reprodução/Eliane Miranda Costa]
Eliane Miranda Costa, doutora em Antropologia pela Universidade do Estado do Pará (UFPA), pesquisa a cultura Marajoara e a relação dos moradores do rio Mapuá, em Breves (PA), com os patrimônios arqueológicos da região. Segundo ela, os sítios arqueológicos do local são espaços de reflexão e memória, com vestígios que contam histórias sobre a ancestralidade indígena e os modos de vida dos Marajoara.

Esse povo foi uma complexa civilização indígena que viveu, aproximadamente, entre os séculos 5 e 14. Há indícios de que eles dominavam o cultivo de milho e mandioca e possuíam um sistema de manejo hidráulico. Alguns dos vestígios mais conhecidos de sua existência são objetos decorativos e funcionais de cerâmica, notáveis pelo emprego de técnicas sofisticadas e por serem os mais antigos do Brasil. 

 

Dentre os patrimônios arqueológicos do povo Marajoara, a imagem mostra uma funerária feita com cerâmica.
Urna funerária marajoara feita com cerâmica. [Imagem: Reprodução/Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro]

 

Em Breves, há pouco esforço estatal para mediar o contato dos habitantes com os vestígios. Segundo Costa, alguns residentes reivindicam a descendência com os povos originários e têm a preocupação de que os vestígios sejam protegidos e suas histórias sejam contadas. Porém, ela explica que nem todos os moradores do rio Mapuá compreendem o significado dos patrimônios ou os identificam como testemunhos do passado, então negam essa memória, a relação com os Marajoara e até mesmo a ancestral presença indígena.

A pesquisadora explica que a indiferença em relação ao patrimônio afeta sua proteção legal, pois a demanda por preservação também deve partir da comunidade local, para que se cobre o poder público. Em sua perspectiva, a legislação brasileira para proteção de patrimônios arqueológicos respalda sua importância histórica, mas não garante recursos viáveis para sua preservação: “Há no papel que é necessário preservar os patrimônios, mas não há a garantia de que se preserve de fato”.

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