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Boca do Lixo: o subestimado cinema da Rua do Triunfo

Integrante do Cinema Marginal, o ciclo cinematográfico revolucionou a sétima arte brasileira, mas teve suas riquezas esquecidas

Produção contínua, grandes bilheterias, vasto público e espaço no mercado nacional: essas características poderiam ser facilmente aplicadas às produções hollywoodianas, mas se referem ao Cinema da Boca do Lixo, o ciclo cinematográfico paulistano que nasceu no início da ditadura civil-militar e resistiu até meados de 1980.  Pejorativamente atribuída, essa denominação diz respeito à percepção discriminatória dos frequentadores do local: prostitutas, traficantes e criminosos indivíduos excluídos da sociedade e, supostamente, degenerados.

A região que recebeu esse nome está localizada nos arredores dos bairros Santa Ifigênia e Luz, no centro da cidade de São Paulo, sendo que a atividade cinematográfica se concentrava no cruzamento das Ruas Triunfo e Vitória. Essa área era atrativa pela presença de estações ferroviárias e rodoviária em suas imediações, pois a proximidade de terminais urbanos facilitava a logística para envio e recebimento dos filmes. Os primeiros a se instalarem no local foram distribuidores nacionais e estrangeiros, como a Fama Filmes e a Paramount, posteriormente chegaram produtores, diretores, fábricas de equipamentos especializados e serviços de manutenção técnica, que, em conjunto, efetivaram a construção da primeira experiência fílmica industrial do Brasil.

Em entrevista ao Cinéfilos, Andrea Ormond, crítica e pesquisadora de cinema, autora da trilogia de livros Ensaios de Cinema Brasileiro – Dos Filmes Silenciosos ao Século XXI (Estronho, 2016), afirma que o ciclo da Boca do Lixo é o menos estudado do cinema brasileiro e que a importância do resgate de sua memória reside no fato dele ser esquecido e subestimado.

Hoje, o espaço da Boca transformou-se no que, novamente de modo pejorativo, é conhecido como a Cracolândia, porém a atual decadência (imposta pelo descaso da administração pública) da região nem sempre esteve presente e a ebulição cinematográfica das décadas passadas atesta isso.

Estação Júlio Prestes. [Imagem:Felipe Lange Borges / Flickr]
Estação Júlio Prestes. [Imagem:Felipe Lange Borges / Flickr]

Estética do lixo

No final da década de 1960, no contexto da ditadura civil-militar, o movimento do Cinema Marginal foi desenvolvido e a Boca foi um de seus grandes polos de produção. Esse movimento foi gestado no interior do Cinema Novo e se constituiu como uma tendência não completamente dissociada dele, porém distinta por estar à margem dos circuitos de exibição e por ser, com raras exceções, ignorado ou desprezado pelos críticos.

De acordo com Vinícius Viana Juchem, doutor em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o uso excessivo de elementos apelativos como sexo, violência e palavrões nos filmes da Boca aproximava-os de uma parcela da população que não entendia a proposta do Cinema Novo, mas, ao mesmo tempo, tornava-os alvo de crítica dos cineastas desta vertente. Esses longas dialogavam, específica e diretamente, com as classes populares brasileiras. Adotar a vida comum como tema e incluir o universo dos excluídos, como as vidas desprezadas da Santa Ifigênia, era característica marcante dos produtores e diretores dessa região, que apreciavam o uso de uma linguagem simples para retratar a realidade, da carnavalização e da paródia como meio de abordar problemas sociais e adotavam uma estética baseada em elementos burlescos, sórdidos e caricatos.

Contudo, a captura da realidade por perspectivas terceiro-mundistas e as críticas à ditadura evidenciam que não havia radical separação entre Cinema Novo e Cinema Marginal. Como Juchem cita, outro aspecto fundamental que os une é a perseguição pela Censura Federal, sendo que na Boca “um exemplo é o filme A freira e a tortura (1984), no qual a violência policial na ditadura militar divide espaço na narrativa com cenas de mulheres nuas e linguagem chula. Neste caso, a interdição foi motivada por questões religiosas e não políticas”. 

Prédio abandonado. [Imagem: Diet Munhoz / Flickr]
Grande parte das atividades da Boca se concentrava na Rua do Triunfo, que hoje possui muitos prédios abandonados. [Imagem: Diet Munhoz / Flickr]

Produção peculiar

A tentativa de fazer um cinema escandaloso, satírico, extravagante e subversivo comprova que, embora a produção dessa região tenha similaridades genéricas com os produtos de Hollywood, ela está distante desses moldes e possui características singulares que a tornam um movimento autêntico e distinto de todos os outros na história do cinema nacional. A produção possuía um orçamento baixo, visto que, diferentemente de realizações custeadas pela Embrafilme (órgão estatal criado após o golpe de 1964 para financiar longas), ela era independente, ou seja, os produtores a bancavam com seu próprio capital, aliado ao investimento privado de pequenos empresários.

Essa autossuficiência é uma característica importante e fez com que o cinema da Boca tivesse a honra de ser o único ciclo cinematográfico brasileiro que conseguiu se sustentar sozinho. Porém, isso teve reflexos não necessariamente benéficos: os novos filmes estavam sempre em concordância com os interesses do público, porque um grande critério para a seleção do gênero e do enredo era a bilheteria, já que o retorno financeiro era essencial para abater os custos e manter a produção. O mesmo procedimento acontecia com os títulos, que deveriam ter duplo sentido para serem chamativos. 

Rogério Sganzerla (diretor) e Carlos Ebert (diretor de fotografia) nos bastidores de O Bandido da Luz Vermelha. [Imagem: Reprodução / Distribuidora de Filmes Urânio]
Rogério Sganzerla (diretor) e Carlos Ebert (diretor de fotografia) nos bastidores de O Bandido da Luz Vermelha. [Imagem: Reprodução / Distribuidora de Filmes Urânio]
Outra particularidade é a inexistência de unidade temática nas realizações. Havia uma rica variedade de temas que iam de filmes de faroeste à dramas existenciais, porém, mesmo com essa diversidade, o movimento possuía uma identidade própria, principalmente por sua localização espacial e modo de produção. Todavia, críticos do período, com uma patente aversão à liberação sexual, e a historiografia audiovisual brasileira nem sempre reconheceram essa multiplicidade e tipificaram grande parte dos longas como “pornochanchadas” (comédias com elementos eróticos).

Esse rótulo pejorativo foi utilizado indistintamente para depreciar os longas, despojá-los de seus componentes artísticos e afastá-los do público. Os registros sobre o cinema produzido na Boca do Lixo são, muitas vezes, desdenhosos e reducionistas, caracterizando os longas meramente pelo apelo sexual e preço barato. Juchem aponta que esse estigma resultou no não financiamento pela Embrafilme, inclusive.

Para além da pornochanchada

Embora o cinema da Boca tenha sido vulgarizado e desqualificado, ele teve produções exitosas que contribuíram para a sétima arte brasileira: filmes que, independente da presença de elementos eróticos, transformaram a linguagem cinematográfica, conquistaram prêmios renomados internacionalmente, fizeram experimentações estéticas prodigiosas e foram sucessos de bilheteria.

O Pagador de Promessas (1962)

Dirigido por Anselmo Duarte, o filme denuncia a intolerância religiosa, as consequências catastróficas do exercício do jornalismo sem ética e os perigos da divulgação de notícias falsas e sensacionalistas. O longa acompanha Zé do Burro (Leonardo Villar) e os entraves impostos a ele para conseguir pagar um promessa. Idealizado na Boca, esse é o único longa brasileiro que foi prestigiado com o prêmio máximo do Festival de Cannes, a Palma de Ouro.

Zé do Burro e Rosa (Glória Menezes) aguardando para entrar na igreja. [Imagem: Distribuição / Cinedistri]
Zé do Burro e Rosa (Glória Menezes) aguardando para entrar na igreja. [Imagem: Distribuição / Cinedistri]

A Margem (1967)

Quase desprovido de diálogos, este longa de Ozualdo Candeias é agudamente introspectivo. A trama segue personagens não nomeadas que perambulam pelas margens do rio Tietê em uma espécie de dança sem rumo, sendo que a carência de falas entre elas é suplementada pela trilha sonora, constantemente informando ao espectador como ele deve se sentir. Embora possua narrativa hermética e experimentação sem precedentes no cinema brasileiro, o filme foi agraciado com o prêmio de melhor direção de 1967 pelo Instituto Nacional de Cinema (INC) e foi elogiado pela crítica valorização rara para os filmes da Boca. 

Um dos personagens avista um barco ao vagar pelas margens do rio. [Imagem: Reprodução /  Youtube / canal J U L I O C E S A R]
Um dos personagens avista um barco ao vagar pelas margens do rio. [Imagem: Reprodução / Youtube / canal J U L I O C E S A R]

O Bandido da Luz Vermelha (1968)

Experimental e inspirado em fatos reais, este foi o maior expoente do Cinema Marginal. Por meio de cortes inesperados, sons desconexos e personagens propositalmente planas, o diretor Rogério Sganzerla narra a vida de João Acácio (Paulo Villaça), o temido criminoso, cujo apelido é homônimo ao filme, que aterrorizou vidas paulistas na década de 1960. Porém, não se trata de um filme meramente policial, ele possui elementos do documentário, do musical, da comédia e da ficção científica, tal como apontado no Manifesto de Rogério Sganzerla, sendo notável a presença de uma crítica aos sensacionalismos midiáticos que manipulam a opinião pública e podem transformar criminosos em anjos ou demônios. 

João Acácio escreve uma carta para enviar à polícia. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Filmecos Sganzerla]
João Acácio escreve uma carta para enviar à polícia. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Filmecos Sganzerla]

Sertão em Festa (1970)

Similar às produções de Amácio Mazzaropi, este filme caipira dirigido por Osvaldo Oliveira acompanha a trajetória de Simplício (Simplício) e sua família após venderem seu sítio e mudarem-se para a cidade, onde terão dificuldades de adaptação. Com enredo ameno e cômico, o filme explora as paisagens do interior paulistano e nos envolve em uma extensa trilha sonora, composta principalmente pelas músicas sertanejas da dupla Tião Carreiro e Pardinho, que integra o elenco. 

Simplício em sua festa de despedida da fazenda. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Cine BRASIL AMÉRICA]
Simplício em sua festa de despedida da fazenda. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Cine BRASIL AMÉRICA]

Independência ou Morte (1972)

Sucesso de bilheteria, lançado em comemoração aos 150 anos da independência do Brasil, o longa, dirigido por Carlos Coimbra, narra, de modo romantizado e não necessariamente fiel à história, antecedentes, bastidores e desdobramentos desse acontecimento, além de explorar as relações amorosas de D. Pedro I (Tarcísio Meira) e suas desavenças com José Bonifácio (Dionísio Azevedo). Por inspirar sentimentos nacionalistas e patriotas, o filme foi apreciado pela execrável ditadura de Emílio Garrastazu Médici e tornou-se polêmico, mesmo que Coimbra nunca tenha afirmado ter intenções de receber tal admiração ominosa.

D. Pedro I proclamando a Independência. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Dom Master]
D. Pedro I proclamando a Independência. [Imagem: Reprodução / YouTube / canal Dom Master]

Herança da efemeridade

Na década de 1980, os filmes da Boca já não tinham mais o mesmo sucesso de bilheteria e perdiam a serventia para os exibidores. Com a ascensão de algo mais rentável para o mercado cinematográfico brasileiro, os filmes com cenas de sexo explícito, iniciou-se a decadência do Cinema da Boca do Lixo. As pornochanchadas perderam espaço e os outros variados gêneros sucumbiram igualmente, alguns diretores tentaram aderir à seara de filmes pornográficos, mas não tiveram sucesso e foram obrigados a se retirarem da cena.

A generalização das criações da Boca sob um teto erótico, frívolo e comercial tentou tornar o movimento apolítico, mas não encontrou correspondência na realidade. Mesmo se os elementos sexuais e a preocupação mercadológica estivessem radicados em todos os longas, a importância cultural e crítica do movimento para o cinema brasileiro não seria anulada, mas o moralismo e a censura atrapalharam essa compreensão plena, e nem o cinema, tampouco os ideais da Boca tiveram sua riqueza estética e política compreendida.

Essa riqueza pode ser percebida através da análise fílmica, já que ela permite capturar as críticas subterraneamente veiculadas pelos filmes, que, para conseguirem burlar a Censura Federal, se camuflavam em torno do enredo ou eram mascaradas pelos elementos eróticos. Ainda, segundo Ormond, o Cinema da Boca foi exitoso em fornecer uma representação legítima das classes populares, durante as décadas de 1960 a 1980. Visto que os envolvidos na produção dos filmes eram, comumente, integrantes dessa camada social, eles conseguiram nos fornecer “um retrato apurado do cotidiano do povo”. Desse modo, os longas têm valor como registro histórico também.

O movimento da Boca teve encerramento precoce e terminou sem o devido reconhecimento. O prestígio merecido pelos diretores, produtores e atores da Boca nunca foi dado e o Ciclo, que deveria ser celebrado na historiografia audiovisual brasileira, foi relegado ao segundo plano e analisado com desdém em detrimento do Cinema Novo. Esse movimento, pode-se dizer de vanguarda do cinema nacional, marcou um período em que o cinema foi feito por quem era pura e simplesmente apaixonado por ele, afinal trabalhar com parcos recursos tecnológicos e financeiros, enfrentar a repulsa dos críticos e resistir à opressão da censura, só poderia ser tarefa para quem tem paixão pela sétima arte. 

1 comentário em “Boca do Lixo: o subestimado cinema da Rua do Triunfo”

  1. Olá Rebeca.
    Muito interessante o seu artigo e de forma clara e cronológica temos noção de quando aconteceu o “apogeu” do cinema nacional ‘boca do lixo’ e, consequentemente, seu declínio.
    Hoje, quando assisti ‘Eu te amo’ (1981), vi o filme complexo e com uma mensagem profunda, que na época, se tivesse assistido, não teria essa visão.
    O cinema nacional realmente é muito rico e, infelizmente, esquecido.
    Ansioso para seu próximo artigo.

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