Até onde Helena conseguia enxergar, tudo o que via era campo. Terra sem nutrientes, em que só crescia uma espécie de vegetação rasteira e pobre. Desde que chegara, ela tinha sido movida apenas pelo ódio que sentia dos homens que haviam causado toda aquela destruição por pura ganância. Todo aquele fogo, toda cinza no ar, todas as vidas destruídas, espécies que nunca chegaríamos a conhecer. Para quê? Para que eles usassem o solo, ganhando muito por um tempo para depois aquela terra, que um dia fora preenchida de biodiversidade, se tornar inútil. Seca e austera.
No início, ninguém se importou. Os noticiários anunciaram a seca no Sudeste. “Em caso de agravamento, pode haver crise hídrica”, disse a repórter naquele primeiro aviso. Nenhum espanto. Afinal, quem é que poderia prestar atenção às notícias sobre o tempo quando havia as tantas outras sobre tragédias, violência, absurdos políticos e econômicos pelos quais o país passava? A grande maioria assistiu sem nenhum sobressalto.
O tempo foi passando. A chuva demorava a vir e, quando vinha, era insuficiente. Vieram as campanhas “se o seu vizinho estiver lavando a calçada com mangueira, denuncie!” e vieram os racionamentos. Mas a chuva… não veio. As plantações mais frágeis ao tempo, principalmente as de pequenos produtores, começaram a ser afetadas. Os hortifrútis e feiras foram os primeiros a sofrer pela falta de abastecimento.
Ao perceber que a situação se estendia, os latifundiários passaram a tentar de tudo. As tecnologias ajudavam a manter a produção, mas nenhuma era solução definitiva. O calor, bem-vindo no início, característico fim de uma temporada bastante fria de inverno, se tornou insuportável. Durava tanto que quase ninguém mais se incomodava em reclamar.
Depois de alguns meses, o ar era sempre quente, seco e poluído. Era gás carbônico suficiente para mudar as cores do amanhecer e do pôr do sol. Poeira suspensa que ajudava a encher as salas de espera de hospitais e clínicas com pessoas que reclamavam de dificuldades respiratórias. Pulmões inflamados, cinza no ar. Os médicos prescreviam alguns remédios a fim de tranquilizar seus pacientes, mas no fundo sabiam: o melhor remédio seria a volta da chuva.
Os cientistas nos centros de pesquisa, apesar da falta de financiamento e precariedade, faziam de tudo para continuar procurando soluções. A resposta, para eles, era clara: fazer valer as leis de preservação e reflorestamento. A imprensa, também marginalizada por diversos discursos políticos, os apoiou.
As notícias continuavam saindo: “Desmatamento na Amazônia cresce 200% e é comandado por redes criminosas”. Enquanto, entre alguns grupos, a conversa era: “Mas para quê manter essa floresta inútil em pé? O certo é derrubar! Usar para plantação, criação de gado… Isso sim seria progresso! Olha quanta coisa está faltando no mercado por causa dessa maldita seca!” Esses discursos eram incitados por alguns grupos políticos, que em meio a tudo isso acusavam os centros de pesquisa e a imprensa de divulgar dados incorretos.
Mas era ano de eleição. Vieram as mentiras.
“Dados anteriores são falsos: queimadas na Amazônia têm causas naturais e taxas menores que em anos anteriores”, foi o que divulgaram algumas fontes oficiais do governo. Outros evitavam o assunto. A fala era repetida a todo tempo pela presidência e seus apoiadores.
Enquanto os órgãos de fiscalização faziam vista grossa, as áreas de floresta continuavam recuando, pressionadas por agricultores e pecuaristas, que desmatavam para produzir soja, cana ou café ou para criar cabeças de gado para o mercado internacional.
Seringueiros e extratores de castanhas, ervas e frutos, gente que conhece a floresta como suas próprias casas e que sempre ganhou a vida com o extrativismo sustentável, mesmo antes de ser tendência, começaram a perceber a mudança nas áreas da floresta que ainda estavam de pé, lutando para sobreviver. Espécies que ficavam cada vez mais raras, a chuva diária e pontual se tornando cada vez mais imprevisível… nada disso podia ser bom sinal.
Na internet, veículos menores ainda divulgavam dados dos institutos de pesquisa e chamavam a atenção da opinião pública. Ativistas realizavam atos de protesto nas ruas em quase todas as capitais. Aos poucos, os atos foram se tornando mais frequentes e recebendo a participação de mais e mais pessoas.
Apesar de pressionados e intimidados, os líderes dessas movimentações, em sua maioria pesquisadores e ativistas experientes, continuavam incentivando a procura de novas formas de pressionar o governo para o cumprimento das leis de preservação.
No meio de mais um dia de trabalho, longe de casa e da família, Helena sente o coração apertar enquanto continua tentando mapear a área desmatada. Faz uma pausa. Sentada em um tronco seco e caído, leva à boca uma garrafa com água enquanto se lembra de sua última noite em casa, na zona leste de São Paulo.
Mais uma vez a vinheta do telejornal invade a sala. Famílias no Brasil inteiro acompanham a reportagem. “Cientista afirma que a destruição do bioma amazônico já passa de 40% e, além de aquecimento, há riscos de savanização em diversas áreas do país. Segundo ele, queimadas e desmatamento ilegais continuam a assolar a região Norte.”
Diz o pesquisador na entrevista: “Algumas pessoas pensam que desmatamento é desenvolvimento e que a floresta não tem valor econômico enquanto preservada. O Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo. E nós ainda não conhecemos uma parte dessas espécies. Acreditar que aquela floresta em pé não tem valor…” Ajusta os óculos e continua: “Ela tem valor para as pessoas que moram por lá e a usam, mas também tem um potencial econômico. E se a gente ainda não explora isso, é um problema da nossa sociedade hoje. Com o tempo, não tenho dúvida de que a biotecnologia e a engenharia genética vão mostrar que toda essa biodiversidade tem um valor infinitamente maior do que uma produção de commodities agrícolas”.
“Mãe, o que que é commodities?”, João Victor, com todos os seus oito anos, achava que sabia de tudo, mas essa palavra era nova. A mãe, que ouvia o noticiário enquanto fazia sua mala para a viagem a trabalho na manhã seguinte, volta o olhar para ele, sentado na beira da cama, acariciando o cachorro Zeca. “São coisas que se produz nas fazendas e que são usadas na indústria, filho. Tipo açúcar ou algodão.” “Ah…”, ele entende.
“E o que que isso tem a ver com a floresta?” Helena pausa a feitura da mala. Preenchida de uma ternura perene, mas de certa forma repentina, ela vai até o filho e o coloca em seu colo. Põe-se a acariciar seus cabelos cresposinhos como os seus próprios. “Ah, João Victor…” Suspira. “É que tem gente querendo acabar com a floresta e transformar tudo em plantação e pasto. Tudo para ganhar dinheiro. Mas a gente não pode deixar.” “Por que não, mãe? Se a gente deixar, eles ganham dinheiro e você não precisa ir.” “Não, filho. Se a gente deixar acabarem com a floresta, daí todos aqueles bichinhos vão ficar sem casa para morar. Lembra do que eu te disse aquela vez que fomos ao jardim botânico? Cada plantinha e cada animalzinho tem um papel. Se um deles vai embora ou morre, todos os outros ficam em perigo.”
“Mas por que você tem que ir?” O menino não se dá por vencido. “Tá bom, deixa eu te contar uma história. Você sabia que aqui também era floresta?” João franze a testa e olha para Helena como se ela estivesse louca. “Floresta?” E ela, tranquila: “É. Uma floresta chamada Mata Atlântica.” O menino, espantado, pergunta. “Mas… Se aqui era floresta, o que que aconteceu com as árvores e os animais?”
“Muitos anos atrás, quem morava aqui eram os índios tupis. Nesses tempos, eles já derrubavam árvores para plantar no solo e caçavam animais. Depois vieram os portugueses, que derrubaram mais árvores e caçaram mais bichos. Com o tempo, foi vindo cada vez mais gente morar por aqui e eles foram destruindo a floresta mais e mais. Então descobriram que podia ter ouro embaixo da terra e que essa mesma terra podia ser usada para plantar café e cana de açúcar. E adivinha o que fizeram?”
O menino ouvia, atento e surpreso. “Destruíram a floresta!” “Pois é, filho.” Agora ele entendia. Sua mãe precisava ir e ajudar a preservar a floresta que ainda existia. Pena que destruíram essa Mata Atlântica antes que ela pudesse salvá-la também. Bem que gostaria de morar numa floresta, se balançando entre as árvores, amigo de todos os tipos de bichos, sem ter que ir para a escola…
Fim da pausa. Helena respira fundo e se põe de pé novamente. Sentir rancor não ajudaria a preservar a floresta. Era preciso que ela fosse, forte e determinada, e fizesse seu trabalho: medir a área, fazer os cálculos, cuidar do solo, trazer as mudas e garantir que fossem plantadas e cuidadas da forma correta para que crescessem.
No início, ninguém se importou. Mas naquele momento, todas aquelas pessoas, homens e mulheres, nativos e migrantes, boa parte longe de casa, faziam todo o possível para reverter os erros por muito tempo permitidos. Eles iam replantar o que tinha sido destruído e iam cuidar para que o desmatamento chegasse e se mantivesse em zero.
Ela provavelmente nunca veria a floresta respirar novamente como já tinha sido, mas não teria feito por egoísmo. Sabia que um dia, em 20 ou 40 anos, o pequeno João Victor, já crescido, veria a Amazônia começar a prosperar novamente, respirando um ar mais puro em tempos de chuva abundante e clima normal.
Conto baseado em informações de entrevista com o Professor Jerônimo Boelsums Barreto Sansevero, do Departamento de Ciências Ambientais da UFRRJ e consulta na dissertação “Regeneração florestal após desmatamento: estudo da região de Santarém, Pará, Brasil”, de Diego Pinheiro Menezes.