Jornalismo Júnior

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O boom dos podcasts: estamos na era de ouro do formato?

Podcasters, ouvintes e um pesquisador mostram como o podcast chegou até aqui e para onde caminha

2019 parece ter sido o ano dos podcasts no Brasil. Uma pesquisa divulgada pelo Ibope em maio aponta que 40% dos 120 milhões de internautas brasileiros já ouviram podcast — quatro a cada dez. Dentre eles, 19% costumam ouvir podcast três ou mais vezes por semana, e 13% escutam pelo menos uma vez por semana. Uma outra pesquisa, realizada em outubro pela plataforma de streaming Deezer, indica que o consumo de podcasts cresceu 67% no Brasil no ano passado.

Os dados demonstram que o podcast está ganhando mais espaço no país. Essa mídia não é novidade por aqui — a Associação Brasileira de Podcasters (ABPod), por exemplo, foi fundada em 2006 — e vários podcasts já estão há um bom tempo no mercado. No entanto, a estréia de importantes empresas jornalísticas nessa mídia e a consolidação de novos formatos têm atraído cada vez mais ouvintes.

 

Como tudo começou

Não há data exata, mas pode-se dizer que o podcast surgiu por volta de 2004. “Você começa a ter essa relação entre internet e áudio no final dos anos 1990 e começo dos 2000”, conta Eduardo Vicente, professor do departamento de Cinema, Rádio e TV (CTR) da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador no campo da indústria fonográfica. Ele estuda podcasts há cerca de quinze anos e também é produtor do podcast Nós, Mulheres Negras. Eduardo conta que naquele período a internet estava ficando veloz o suficiente para possibilitar o compartilhamento de arquivos em MP3. “Surge também a ideia de estar acrescentando arquivos de áudio em blogs, na fase blog da internet.”

O surgimento do RSS fez parte desse processo. RSS (Really Simple Syndication) é uma forma simplificada de se receber o conteúdo de um site. Os programas leitores de RSS (agregadores) passaram a permitir a inscrição em diferentes fontes e a recepção de conteúdo em um só lugar. Ou seja, o usuário assinava um RSS e não precisava nunca mais acessar o site de origem, o que proporciona comodidade.

Foi a partir desse protocolo RSS, que facilitava atualizações, que o que viria a ser o podcast surgiu. Nesse cenário, dois nomes são importantes: Adam Curry e Dave Winer, que trabalharam para o surgimento e funcionamento do podcast através de agregadores específicos. O termo podcasting surgiu antes mesmo dessa consolidação, quando, em 2004, Ben Hammersley o mencionou em um artigo no The Guardian, que discutia as mudanças online relacionadas ao áudio.

Eduardo conta que o crescimento do podcast foi muito lento. “A grande mudança vai ocorrer principalmente nos Estados Unidos, não só pelo tamanho do mercado, mas pela própria estrutura de produção radiofônica de lá.” A NPR (National Public Radio) é uma rede que atua como sindicadora, redistribuindo programas para as centenas de emissoras públicas que fazem parte dela. Como se produz para uma rede, os programas não são obrigatoriamente ao vivo. “No Brasil, quando falamos de rádio, a gente fala de emissões ao vivo. Nos EUA, não era só isso. Eles já produziam um conteúdo com menos determinação local, produções de interesse mais amplo.” Por conta dessa expressão nacional, alguns programas eram necessariamente produzidos e gravados, indo além da notícia considerada quente. Consistia, portanto, em um jornalismo de profundidade, por vezes com certo grau de experimentalismo. 

Um exemplo desse tipo de programa é o This American Life, que em determinado momento passou a ser distribuído também como podcast, e começou a fazer grande sucesso. “Eles assumem a inspiração no Gay Talese e no New Journalism. Então, é um jornalismo de rádio com caráter autoral, com ideia de profundidade, e também com recursos da área do entretenimento, do rádio drama, entre outros.” Para Eduardo, o This American Life é o grande padrão do que viria a ser predominante nos podcasts dos EUA, mais ligados ao jornalismo.

O programa recebeu um derivado, chamado Serial, um podcast de jornalismo investigativo que foi sucesso de público e crítica. Serial ganhou importantes prêmios do jornalismo norte-americano e se tornou uma febre. Segundo Eduardo, embora estivesse ligado a um público ainda muito restrito (altamente escolarizado e formador de opinião), “Serial, até hoje, é certamente o programa mais importante da história do podcast. É um programa que dá visibilidade ao formato, determina um novo rumo.”

Podcast Serial
‘Serial’ é um programa de destaque na história do podcast [Imagem: Divulgação]

A era de ouro do podcast: por que estamos aqui?

Para explicar o fenômeno, Eduardo Vicente parte da ideia de que “as pessoas sempre ouviram o som”. Sempre existiram momentos em que outras atividades estão sendo realizadas e é complicado oferecer a atenção visual, faz mais sentido apenas ouvir. Esse espaço de consumo, portanto, está assegurado há tempos, sendo inclusive anterior à internet. Na visão de Eduardo, o podcast possibilitou uma expressão muito mais ampla disso.

“Em um momento em que está todo mundo na correria, você não precisa necessariamente parar para escutar o podcast”, analisa Rodrigo Alves, jornalista e apresentador dos podcasts 2 Pontos e Vida de Jornalista. “Ele pode entrar no meio da sua rotina, preenchendo buracos em que antes você ouvia música, uma televisão ligada no fundo…”

Rodrigo destaca a vantagem de o podcast ser um formato democrático. Para ele, o crescimento dessa mídia está até mesmo ligado à maior praticidade na produção, porque permite que produtores independentes criem algo legal com pouca estrutura. Ele conta que, antes de virar podcast, seu programa 2 Pontos era feito em vídeo. “A gente resolveu mudar para o formato de podcast porque a produção é mais simples, não depende de cenário ou de equipamento. A gente se fala por Skype, e é bem mais prático para gravar.” Julia Ribeiro de Lima, produtora de conteúdo e apresentadora do podcast Meio Fio, é da mesma opinião: “Sinto que o podcast é um formato muito mais fácil do que um vídeo no YouTube, do que o próprio Instagram. Você pode gravar de pijama, de cara lavada, não vai ter problema nenhum. É muito mais acessível.”

Outro ponto é o caráter um pouco mais atemporal dos podcasts. “De um modo geral, não tem essa preocupação de atingir um público amplo, e não tem uma limitação geográfica ou temporal”, analisa Eduardo Vicente. Apesar do imediatismo ser condutor de muitos podcasts noticiosos, a fuga dele também é um motivo para o crescimento do formato. “A qualquer momento o podcast pode atingir o público. Nesse sentido, ele tem um caráter muito diferente, por exemplo, do Facebook e das outras redes sociais, que é de viralizar.”

Uma mudança crucial foram as vantagens que grandes empresas começaram a enxergar no formato. Eduardo comenta que a fidelização do público é forte — os ouvintes costumam escutar os episódios inteiros, semanalmente ou com maior frequência. Esse aspecto interessa aos anunciantes e patrocinadores.

Embora o surgimento do podcast esteja historicamente ligado às tecnologias da Apple, como o iTunes, logo outras empresas começaram a se atentar, como foi o caso do Google, que criou seu próprio aplicativo de podcasts para os equipamentos Android. Mais recentemente, Spotify e Deezer também passaram a agregar o formato. “O público fica muito mais tempo ouvindo no aplicativo, é um outro produto a ser oferecido além da música”, aponta Eduardo. “Os espaços de consumo de podcast se ampliaram muito, e essas empresas começaram a investir mais e a dar mais visibilidade.” 

O Spotify tem investido na compra de produtoras e no financiamento de conteúdos exclusivos. O podcast Café da Manhã, em parceria com a Folha de S. Paulo, é um exemplo de programa exclusivo que atingiu alto sucesso no serviço de streaming. Os investimentos têm dado certo. Em novembro de 2019, a empresa divulgou dados sobre o consumo de podcasts no Brasil: há um crescimento médio de 21% ao mês desde janeiro de 2018, e o Brasil se destaca no aplicativo como segundo país que mais consome o formato. Também em novembro a empresa realizou o evento Spotify for Podcasters Summit, reunindo centenas de podcasters e alguns expositores.

O evento ‘Spotify For Podcasters Summit’
‘Spotify For Podcasters Summit’ aconteceu no Brasil no final de 2019 [Imagem: Divulgação/Luciana Aith]
Rodrigo Alves também vê a presença do Spotify como decisiva para esse auge, porque “é um aplicativo que muita gente usa para ouvir música, então é mais natural. Você não precisa baixar um outro aplicativo ou procurar na internet, já está tudo ali no seu Spotify.” 

A chegada de grandes empresas jornalísticas no meio também é chave para o sucesso. No exterior, veículos como The New York Times, The Guardian, El País e muitos outros têm programas em formato podcast há um tempo. No Brasil, isso é mais recente. Em 2019, seguindo essas tendências, a Globo lançou um conjunto diversificado de podcasts. 

“Acho que é o futuro mesmo”, opina Julia. “Essas grandes mídias, os jornais num geral, têm de se reinventar a todo momento, e o podcast é uma nova forma de passar informação”. Na visão de Rodrigo, essas empresas são muito responsáveis pela explosão recente do formato no país: “Com a ajuda de empresas grandes se atinge um público maior que, às vezes, nem sabia o que é podcast, porque ainda é uma mídia restrita.” Para ele, é positivo que essas empresas entrem na jogada também para criar mais uma forma de mercado de trabalho para o jornalismo.

 

A atração do público e a variedade de formatos

O crescimento sem precedentes do podcast presume a adesão do público. Afinal, por que o formato do podcast é tão atrativo para os ouvintes? Para Rodrigo, são dois motivos principais: a proximidade entre apresentador e ouvinte e a possibilidade de escutar em qualquer lugar e momento, enquanto se faz outras coisas. “Você fala direto no ouvido da pessoa, isso gera uma identificação”. A presença no cotidiano do ouvinte é constante. Os podcasters acompanham seus interlocutores durante as mais variadas atividades, como na ida ao trabalho, na academia ou lavando louça. 

Julia também afirma que a aproximação ouvinte-apresentador é ponto essencial. “Quantas vezes você já não respondeu uma pergunta que fizeram num podcast? Eu sempre respondo, toda vez”, brinca. Para ela, o podcast difere do YouTube, por exemplo, porque é como se o receptor de fato entrasse na conversa, o que cria um vínculo muito estreito. Ela exemplifica: “Escuto o podcast da Lauren Conrad [Lauren Conrad: Asking for a Friend]. Você escuta ela, e acha que ela é tua amiga. Eu acho que o YouTube não traz isso.”

Quem não está nos bastidores indica motivos parecidos para a adesão aos podcasts. Nathalia Viana, formada em neurociências e atual estudante de letras, diz que o formato é atrativo por três fatores principais: “Ser um tema pelo qual eu me interesso, desenvolver certa ‘simpatia’ pelos apresentadores e a facilidade para baixar.” Ela também fala sobre a relevância do Spotify nesse contexto, por facilitar muito o consumo de podcasts. 

Já para a estudante de psicologia Gabriela Kukla, o mais atrativo é poder escutar em qualquer lugar. “Não gasto muita bateria do celular, como para ver um filme da Netflix, por exemplo.” Nathalia e Gabriela destacam ainda que o podcast só requer a atenção auditiva, diferente dos vídeos do YouTube, que já foram febre no passado. 

Outro motivo a ser considerado é a variedade de assuntos e formatos. O mundo dos podcasts apresenta uma diversidade muito grande de programas. Isso permite que todos se identifiquem com algum nicho e passem a acompanhá-lo. Rodrigo conta que começou acompanhando podcasts de esporte, em formato de mesa redonda. Depois de um tempo, encontrou também o formato narrativo, que hoje é seu preferido, e o qual ele segue no Vida de Jornalista. “São esses episódios narrativos, que tem um roteiro, a sonorização é importante, tentar criar um ambiente que leve o ouvinte para dentro daquela história. É quase um artesanato”. Esse formato já é grande nos Estados Unidos e cresce no Brasil.

Interface do Spotify
A variedade de temas é uma das principais características do podcast atualmente [Imagem: Reprodução/Spotify]
Eduardo Vicente destaca ainda que o rádio brasileiro é pouco diversificado, tanto em termos temáticos quanto em termos de aprofundamento. “O podcast te dá um leque de opções que o rádio não dá, traz outro conteúdo, te dá alternativas”. Para ele, as formações identitárias também pesam, com podcasts de temas muito específicos, o que permite que o ouvinte encontre algo muito voltado para o que ele gosta.

A designer Taynara Santos Paula conta que escuta podcasts ligados à profissão, como o MovimentoUx. Nathalia fala que vai desde os informativos, de pauta quente, como o Mamilos, aos de entretenimento e os de estudo de línguas, como o Coffee Break Chinese. Gabriela destaca o Nerdcast, um dos podcasts brasileiros mais antigos, por abordar temas importantes de forma descontraída. A febre dos podcasts pode ser recente, mas as possibilidades já são ilimitadas.

 

O podcast chegou para ficar?  

Com uma quantidade cada vez maior de programas lançados a todo momento e o nome podcast ganhando destaque, o questionamento é pertinente: sucesso efêmero ou consolidação do formato? 

“Não acho que vai durar essa quantidade de gente fazendo podcast. É muito mais complicado de conseguir publicidade, de entender métrica, então tem uma galera que vai desistindo”, diz Julia Ribeiro de Lima. A podcaster acredita, no entanto, que o formato vai se consolidar, e será mais difícil novas pessoas entrarem no meio. “Quem realmente investir tempo e vontade vai dar certo”. 

Para Eduardo Vicente, é positivo o fato de que o podcast, por enquanto, “não vai deixar ninguém rico”. Por ser uma mídia com a qual se envolve sem esperar um retorno financeiro mais imediato, há certo amadorismo que permite um frescor nos podcasts. Assim, apesar de muitas produtoras especializadas estarem surgindo e crescendo, um desenvolvimento mais lento, por não estar ligado a um lucro alto e instantâneo, seria positivo para a consolidação do formato.

Eduardo conta que, mesmo estudando podcasts há anos, nunca esperou que o formato fosse atingir tamanho nível de popularidade. Para ele, essa febre não deve se manter. Uma estabilização é esperada, mas ele acredita que ainda há muito espaço para crescer, principalmente no Brasil. “Acredito no lugar dessa mídia e acho que ela veio para ficar. Até porque o podcast é uma nova encarnação muito [mais] atrativa do rádio. Propõe uma nova relação de escuta, de algo que já está na nossa história, de nossos pais, avós, bisavós…” 

Muitos podcasts também estão sendo transformados em programas televisivos, o que, para o pesquisador, reforça o poder do formato. Bons exemplos são Homecoming, que virou seriado do Amazon Prime protagonizado pela atriz Julia Roberts, e O Caso Evandro, temporada do podcast brasileiro Projeto Humanos, que está sendo transformada em série televisiva documental.

A série 'Homeconing'
Julia Roberts é protagonista de ‘Homecoming’, seriado baseado no podcast de mesmo nome [Imagem: Divulgação/Amazon Prime Video]
Eduardo ainda ressalta o crescimento de podcasts narrativos e jornalísticos como um sinal de que o formato deve continuar prosperando no Brasil. Ele aponta que até então os podcasts brasileiros, no geral, têm a cara do rádio brasileiro, em um formato de conversa de bar, mais opinativo, com entrevistas. “As marcas do rádio local ainda são importantes. É interessante como a tradição do rádio de cada país é muito determinante para como começam os podcasts neles. Mas esses formatos norte-americanos, inevitavelmente, também vão ter uma influência.” 

Julia relembra uma thread que viralizou no Twitter, na qual o autor criticava o formato mesa redonda, predominante nos podcasts brasileiros. “Acho que o formato está sim batido, é o formato do meu podcast, inclusive. Mas é o formato que faz sentido para o Brasil”.

Ainda sobre o rádio, Rodrigo Alves considera que este não deve ser anulado pelo podcast, sobretudo no Brasil, em que o acesso à internet ainda é muito limitado. O rádio chega à regiões mais afastadas, e tem uma força de empatia muito grande. “A gente está falando da nossa bolha, porque tem uma fatia gigantesca da população que não tem acesso e não consegue consumir podcasts, pelo menos não da maneira tradicional.” As rádios estão se reinventando para acompanhar tais mudanças, mas sua importância é indiscutível. “Eles se complementam, acho que o podcast só soma.”

Assim como os outros entrevistados, Rodrigo acredita que a explosão do formato seja talvez efêmera, mas não considera uma moda que daqui a alguns anos não existirá mais. “Muita gente que entrou agora na onda vai ficar pelo caminho, e é natural. Acho que o próprio público vai decidindo o que é que passa e o que fica.”

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