A América do Sul é o celeiro dos maiores craques do futebol mundial de todos os tempos. A busca pelo talento dos jovens jogadores que saem de nossas terras existe desde muito tempo. E isso é um dos atrativos que fazem do futebol um espetáculo completo em muitos aspectos.
Um dos primeiros palcos destinados a receber essas verdadeiras lendas, e que testemunhou na maior parte de sua história uma contemplação do “futebol arte”, completou seus 90 anos em 18 de julho deste ano. O Estádio Centenário do Uruguai, em Montevidéu, é um dos poucos estádios lendários que resistem à remodelação. Há algum tempo surge um dilema no país, sendo que muitos especialistas em arquitetura, jornalistas e a comunidade como um todo continuam a se perguntar: qual o destino deve ser dado ao Centenário?
Provavelmente, ninguém tenha se envolvido tão firmemente no assunto por não ser um tema cuja solução agrada todos os setores da sociedade uruguaia. Mas um tema que se torna necessário nessa nova década por uma única questão: o desejo de sediar um novo campeonato mundial de futebol em terras platinas que celebre o centenário da competição.
Confiança em um país que construía sua trajetória no esporte
A Federação Internacional de Futebol (FIFA) designou o Uruguai como a sede do primeiro Campeonato Mundial de Futebol em 18 de maio de 1929. A partir daí começaram as mobilizações para a construção daquele que seria um grande palco para a magnitude da primeira final oficial de um Mundial. Ele estava sendo planejado para abrigar todos os jogos do campeonato, porém, sediou somente dez dos 18 jogos disputados no país.
A área escolhida foi de relevo inclinado e, na época, servia para a criação de cabras. O arquiteto, Juan Antonio Scasso, planejou um estádio gigantesco para a cidade, com capacidade para cerca de 70 mil espectadores. No dia 28 de julho daquele mesmo ano, começaram as obras no terreno do estádio, que havia sido cedido pelo município.
Daniel Thul, arquiteto uruguaio formado pela Universidad de la Republica e mestre em patrimônio virtual em 2017 pela Universidad de Alicante, na Espanha, aventurou-se na reconstrução virtual do estádio.
Segundo o arquiteto, o desenho do estádio foi muito inovador. “Na época, a maioria dos estádios eram de planta retangular – típica nos ingleses, complementados normalmente por cobertura inclinada – ou oval, no caso daqueles que tinham pista atlética. O [estádio] Centenário tem uma planta considerada elíptica, e isso permitia que os espectadores de diversos pontos das arquibancadas do estádio pudessem ter uma boa visualização do campo de jogo para padrões da época.”
“Atualmente, o maior diferencial na comparação do templo uruguaio com estádios modernos é o de que as arenas destinadas ao futebol são de grande imponência no quesito estrutural urbano. A maioria delas são erguidas através da construção de diversos pisos que podem ser estampados por grandes fachadas ou não”, explica o arquiteto sobre a singularidade da obra.
Uma Copa que transformou o cenário em um templo sagrado
O Estádio Centenário foi construído por imigrantes para a Copa de 1930 em tempo considerado recorde. Durante a construção, houve ainda um pequeno atraso devido a um longo período de chuva na capital uruguaia. Esse foi um fator atípico, tendo em vista que, atualmente, em obras de arenas ou estádios, observam-se longos prazos, com estipulações de três a quatro anos. Isso ocorre principalmente se forem designados como palcos mundialistas, como no caso da maioria dos estádios brasileiros da Copa do Mundo de 2014.
A posição escolhida para a construção na cidade de Montevidéu foi estratégica. Localizado na região do Parque Batlle, a aproximadamente dois quilômetros da Plaza Independencia, o estádio também é cercado por outras diversas instalações esportivas e um dos poucos do mundo cercado por uma área tão bem urbanizada.
O paulistano Eric Filardi, diretor de jornalismo nos portais Futebol na Veia e Rádio Poliesportiva lembra que “a arquitetura do estádio não envolveu um trabalho tão engenhoso justamente porque o objetivo da construção na época era abrigar um grande número de espectadores para a realização do primeiro mundial. O foco também era disponibilizar um grande legado para o futebol do país, tudo isso no ano das comemorações do centenário da independência do país”.
“Eu visitei o estádio em 2019, e ele realmente é bem antigo se compararmos com estádios mais modernos como, por exemplo, Allianz Parque e Arena Corinthians de São Paulo. O conforto passa longe, pois até as cadeiras ainda são de pedra. Porém, continua sendo um dos pontos turísticos mais históricos e lindos de Montevidéu”, relata Filardi através de sua experiência no estádio.
De acordo com Daniel Thul, seu recente trabalho de recuperação virtual não se compara ao de Isla de Flores – um exemplo de construções que já foram demolidas e que, com o projeto, resgatam a história da cidade. “O trabalho com documentação histórica é essencial para resgates de edifícios. A documentação pode vir da literatura ou de qualquer informação escrita. Porém, tudo o que é de utilização gráfica, como por exemplo, fotografias históricas e algumas plantas de fácil acesso, deve ser estudado. No caso do Centenário, um edifício que ainda está de pé, também usei amplamente os registros atuais. Depois de toda essa pesquisa comecei a trabalhar nos processos de digitalização e animação em três dimensões, realidade virtual e/ou aumentada e nos vídeos dos elementos que compõem tanto exterior quanto interior do estádio”, explica o arquiteto.
O monumento tornou-se emblemático, pois a equipe uruguaia ali se sagrou a primeira campeã mundial em 1930. E foi desse sentimento que o arquiteto decidiu prestar essa homenagem ao futebol do país. A população da cidade trata a sua tão antiga casa como um templo sagrado da história do país, por mais que atualmente ele não seja tão amplamente utilizado por clubes.
Gritos de gols ecoados por gerações
O único clube que disputa na maioria das vezes os seus jogos lá desde de 2018 é o Montevideo City, antigo Atlético Torque. O clube – adquirido pelo conglomerado City Football – é mais um desses novatos de bairro do país. Sua trajetória passa longe dessa tão antiga história do estádio, diferentemente de Nacional e Peñarol, que sempre mandaram jogos importantes no estádio pelo o fato de serem os mais centralizados e famosos da cidade. Aos poucos eles foram se afastando e criando também seus estádios: o Nacional com o Gran Parque Central e o Peñarol que há quatro anos inaugurou o Campeón del Siglo.
“A realidade é que foi uma boa solução para sanar os problemas do estádio vazio durante jogos dessas das duas equipes com clubes de menor expressão. Os clubes menores sabem que mandar uma partida no estádio é totalmente inviável. Se existirem aluguéis, esses não devem ser dos mais baratos, e a realidade é a de que eles não têm torcida suficiente para lotar ao menos metade do estádio. Ao contrário dos clubes, a Seleção não abandona sua tão histórica casa e sempre acaba lotando seus jogos oficiais de eliminatórias para a Copa”, comenta Eric sobre a utilidade da área para o futebol.
Um grande estádio também deve ter algumas boas características para se destacar a nível mundial. Ele afirma que existe um conjunto de fatores para que um estádio torne-se um patrimônio histórico do futebol mundial. “Observo como fatores essenciais a disputa de títulos importantes, a revelação de grandes craques, golaços, viradas históricas, grandes sequências de vitórias ou de títulos, e principalmente o estádio ser a estampa de clubes históricos. No caso do Centenário, os clubes do Nacional e do Peñarol contribuíram em muito para isso”, analisa o jornalista.
O projeto já indicava uma transformação infraestrutural enorme na cidade e destinava ao país o desafio da reorganização do futebol mundial. “A história que ali foi construída não abrange somente a seleção uruguaia, mas todos os clubes da cidade de Montevidéu que ali disputaram partidas”, explicou o jornalista.
O concreto dos bancos sentem pela falta do calor humano das torcidas
Para satisfazer mais ainda a paixão uruguaia pelo futebol, o Centenário foi designado a receber muitas competições importantes no cenário continental. A realidade é que poucos estádios se enquadram em todos aqueles aspectos citados por Eric quanto o Centenário. O palco já foi sede de quatro campeonatos Sul-Americanos de Futebol – a atual Conmebol Copa América – nos anos de 1942, 1956, 1967 e 1995. Em todas as oportunidades, a seleção fez valer do “fator casa” e conquistou nas quatro vezes a taça. O estádio também sediou 14 finais de Copa Libertadores da América, incluindo a primeira final no ano de 1960, edição na qual o Peñarol levou a melhor. Também abrigou diversas competições de base do continente, em que grandes talentos das seleções continentais puderam se destacar.
“A relação uruguaia com o seu templo é de saudosismo, porque eles [uruguaios] sabem da importância do estádio, mas, por outro lado, sabem que essa importância foi se perdendo ao longo dos anos. De toda forma, ele sempre será um dos marcos de Montevidéu e fortalecerá a sua característica de ‘cidade mais futeboleira do continente’. Portanto, quanto mais esta história for enriquecida mais o país ganhará em termos econômicos através do turismo”, explica Eric.
O fato de não estarem acontecendo mais tantos jogos por lá faz com que os jovens torcedores percam cada vez mais o apreço de frequentar o estádio. Uma consequência absolutamente normal, pois os torcedores da década de 1930, 40 e 50 vivenciaram mais memórias no ambiente do que a juventude fanática atual. A relevância do que muitos atletas puderam conquistar nesse grande palco não pode ser esquecida. Sorte daqueles jogadores que puderam jogar ao menos uma partida nesse lendário estádio.
Quebra da essência do estádio ou olhar visionário para o monumento mundial do futebol?
Sempre existirá essa posição dúbia em relação a qualquer patrimônio histórico, principalmente se a área a ser revitalizada não permitir adequações totalmente eficientes. Muitas questões envolvem a adoção de um projeto para a reconstrução de estádios, e um dos maiores exemplos disso em nosso país foi o Maracanã para a Copa de 2014. Até mesmo os que defendiam a demolição da marquise tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a completa modernização do estádio sabiam que inevitavelmente o impacto nessa estrutura icônica do esporte mundial seria intenso. O mesmo caso deve acontecer com o estádio uruguaio, pois trazer a característica de Arena ao palco é uma situação complexa em muitos sentidos.
“Obviamente, sou a favor da reforma e não da demolição. Não só pelo valor arquitetônico mas também pelo valor histórico que o estádio adquiriu. No geral, tenho escutado ultimamente na imprensa que a ideia de reformar é quase que unânime, mas paralelamente não está tão claro quais as pretensões da organização de um provável Mundial Centenário nos países do Cone Sul [Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai]”, afirma Daniel.
“Os três projetos de revitalização mais destacados [o estádio, Isla e o cortiço Mediomundo] foram feitos sem nenhum tipo de financiamento do governo. Mesmo assim, aqui no Uruguai sempre foram bem vistos, principalmente porque me preocupei em disponibilizá-los para o público em geral. Não tenho muito conhecimento sobre os requisitos da FIFA, mas sei que um dos principais problemas do estádio é a inclinação das arquibancadas em relação ao campo. Outro elemento que exige melhora seria toda a localização da tribuna olímpica, onde podem ser reformadas as cabines de transmissão e camarotes”, sugere o uruguaio.
Para ele, essas reformas pontuais seriam mais fáceis de serem realizadas e não afetariam tanto a característica do Centenário. De acordo com sua explicação, para mudar essa angulação e atingir a recomendada, seria necessário fazer mudanças estruturais e estas dependem quase que exclusivamente de pequenas demolições. Uma angulação maior permite maior capacidade, seja em arquibancadas de concreto ou estruturas temporárias. Essas últimas foram utilizadas em um estádio da Rússia e serão amplamente usadas em 2022, no Catar, justamente para essa finalidade de ampliação.
“Na minha visão, uma remodelação, com investimentos tão altos, para sediar apenas poucos jogos de um Mundial seria uma grande loucura. Por enquanto, o que estão pensando fazer são reformas nas arquibancadas baixas para receber outros tipos de atividade, pois será isso que proporcionará futuros maiores investimentos”, enfatiza Daniel.
“O elemento arquitetônico mais precioso e de referência do estádio é sem dúvida nenhuma a tribuna olímpica juntamente com a ‘Torre de los Homenajes’. Essa torre é de estilo art déco, que nesta época estava em pleno auge dentro da arquitetura moderna no fim dos anos 1920. Para mim, o objeto que mais necessitou de uma atenção especial no projeto é a fachada desta tribuna, devido às mudanças nas cores e de sua estrutura original”, comenta Thul sugerindo o que uma eventual remodelação deveria preservar.
Abaixo da tribuna existe o Museu do Futebol Uruguaio, um espaço onde se encontra a imortalidade dos feitos daqueles que viveram os primeiros anos do estádio e conviveram com uma geração espetacular de jogadores no pequeno país latino. Mas a história desse pequeno pedaço do Centenário ainda é curta, pois foi inaugurado em 1975, quase 50 anos após a Copa.
“Logicamente, o que eu preferiria, como torcedor uruguaio, era que a final de um Mundial pudesse novamente ocorrer aqui. Portanto, quem trabalhar pelo Uruguai nesta candidatura deve ter uma capacidade crítica em relação aos investimentos nacionais em obras que num futuro próximo possam se tornarem inviáveis para o país”, opina Daniel.
“Mesmo se não nos depositarem confiança ou a candidatura se desfizer antes da escolha, vejo viável a reedição comemorativa da competição que marcou a comemoração dos 50 anos da Copa e que poderia agora marcar o Centenário: um torneio chamado Copa dos Campeões do Mundo. Nele se reuniram todos os campeões da Copa do Mundo até então. A Inglaterra não participou e foi substituída às pressas pela Holanda, a vice-campeã em 1978. Numa possível reedição acrescentaria-se França e Espanha. O país com certeza receberia os melhores jogadores do mundo em um torneio que é uma alternativa de grande sucesso”, finaliza o arquiteto.