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“O Perfuraneve”: a locomotiva pós apocalíptica como microcosmo da sociedade

“O Perfuraneve” tem como premissa a viagem eterna dos últimos seres humanos da Terra, mas os retratos de um cenário pós-apocalíptico se mostram mais reais do que imaginários
Por Isabel Briskievsk Teixeira (belbrisk@usp.br)

“É o Expresso Perfuraneve com seus mil e um vagões, é o último bastião da civilização… Ele abriga e transporta em suas entranhas os últimos sobreviventes deste mundo: aqueles condenados pela morte branca a realizar uma viagem perpétua”.

Um sci-fi nem tão ficcional assim

Não há água, não há solo fértil, não há animais. O branco só não engoliu o céu, e agora?

O Expresso Perfuraneve, com seus mil e um vagões, é um trem que carrega tudo o que resta da civilização humana pós-apocalíptica. Após a explosão de uma arma climática – em um contexto de guerra – fugir do controle, o planeta Terra atinge uma temperatura que o torna inabitável, com mais de 70° C negativos. Tudo está coberto de neve,e  os que se arriscam, têm uma morte branca – são congelados pela neve. Os que querem sobreviver, estão sobre os trilhos em uma locomotiva eterna – um moto-contínuo.

O moto-contínuo é uma máquina que, teoricamente, possui energia infinita e é autossustentável, ou seja, seu funcionamento gera energia, que é utilizada para alimentar o sistema que a gerou, criando um ciclo.

Imagem esquemática de um "moto contínuo", que parece o desenho de uma roda
A imagem acima simboliza um moto-contínuo.  Ele viola a primeira lei da termodinâmica, a lei da conservação da energia, onde um sistema não pode criar ou consumir energia, mas apenas armazená-la ou transferi-la ao meio onde se encontra.
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

O chamado “Expresso do Amanhã”, que ganhou uma produção de longa-metragem (2013) com elenco de Tilda Swinton, Chris Evans, John Hurt, Song Kangho e Ed Harris e direção de Joon-ho Bong, e uma série da Netflix (2020), com Daveed Diggs e Jennifer Connelly, é uma obra agoniante. Entre lutas de classe, sobrevivência depressiva e uma máquina, de motor quase perpétuo, é assustador como representa muitas coisas, metaforicamente ou não, vividas na contemporaneidade.

Publicado pela primeira vez em 1984, a história em quadrinhos se tornou um clássico da ficção científica francesa. O Perfuraneve (Aleph, 2015) é o primeiro de uma trilogia, seguido por O Explorador (1999) e A Travessia (2000), que nesta edição, se encontram em um livro só. O primeiro volume foi idealizado pelo roteirista Jacques Lob e pelo quadrinista Jean-Mare Rochette. Com a morte de Lob, Benjamin Legrand assumiu o roteiro da história em quadrinhos (HQ)”, publicando os dois volumes seguintes, segundo a descrição da Editora Aleph.

O livro, que pesa quase um quilo, também é uma caixa de surpresas narrativas e visuais. Os traços dos desenhos acompanham a narrativa construída pelos diferentes narradores-personagens, que acrescentam detalhes sob pontos de vista diversos, e mudam a cada volume. Na primeira parte, há um traço mais robusto, menos preocupado e mais apressado. A segunda e a terceira parte, com pontos de vista menos agitados, possuem desenhos com sombras mais esfumadas, um traço gentil e mais realista,  deixando a caricatura da primeira parte de lado. A comunicação visual no livro é constante, sendo impossível acompanhar a história sem prestar atenção no semblante de cada personagem.

Trecho retirado de "O Perfuraneve", que mostra passageiros da locomotiva amontoados e um homem com chapéu ao fundo dizendo "Aqui é Morlot, do setor B, na segunda classe... não sei se você tá sabendo, mas estamos com problemas sérios aqui, o pessoal tá começando a entrar em pânico..."
A primeira parte conta com a fuga de Proloff, o protagonista do primeiro volume e o fundista que chega até o comando da locomotiva, do Fundo e um ritmo intenso, sob o seu próprio ponto de vista.
[Imagem: Arquivo pessoal/Isabel Teixeira]
Trecho de "O Perfuraneve" com quatro pessoas (recorte de cabeça), uma delas diz "Você aí, explorador! Diga a verdade a eles! É pro espaço que vocês vão, não é?" e outra pessoa completa "Isso, explorador, explique você mesmo pra eles!"
A segunda parte é narrada por Puig Vàlles, personagem que sai de um cargo de trabalho baixo até o poder da locomotiva que habita. Conta com sombras mais detalhadas e um traço mais realista.
[Imagem: Arquivo pessoal/Isabel Teixeira]
Trecho de "O Perfuraneve" da central de comando da locomotiva, um dos funcionários diz "Não conseguimos ver mais nada na dianteira... as crises estão borrando os radares...", outro diz "A gente vai ficar vagando por essas ondas até morrer!" e um homem quase fora da imagem diz "Fique calmo, Brady... você é conselheiro agora. Faça um discurso apaziguador para os sobreviventes. Eu vou sair e orientar vocês..."
A terceira parte é narrada por Val Kennel, artista de produções de entretenimento para os passageiros e filha de um homem poderoso e influente da alta cúpula do trem. Também conta com sombras mais detalhadas e um traço mais realista. 
[Imagem: Arquivo pessoal/Isabel Teixeira]

A locomotiva eterna 

A locomotiva eterna, uma invenção do personagem engenheiro Alec Forester, tinha a premissa de ser um trem de passeio auto-sustentável, que suportaria semanas sem fazer nenhuma parada. Com vagões de agricultura, pecuária (coelhos, camundongos e a mama, a carne sintética eterna), bares, quartéis, uma prisão, hospital… vira, no final das contas, o salvador da humanidade. 

Antes do mundo acabar, o trem estava programado para partir com as pessoas que tinham uma quantia considerável de dinheiro para pagar a sua passagem e queriam viver um pouco mais. Ou seja, a elite. Tudo foi programado para o seu conforto. Porém, momentos antes da partida, muitas pessoas pulam nos últimos vagões de carga. Os habitantes dos vagões do fundo são chamados de “fundistas”.

Fundo e Frente

Os fundistas não têm fonte de comida. Diferente  dos primeiros vagões, ao invés de caviar, comem ração. Além disso, não veem o sol há tempos, porque onde vivem não há janelas. Quando alguém morre no Fundo, ou vira comida ou apodrece. E assim segue. 

Dividido em classes, o Perfuraneve vive diversos conflitos internos, e todos eles são marcados por muita repressão militar. Logo no começo da viagem, acontece a chamada “turba selvagem” ou “massacre”, que é, claro, inevitável. Como diz Foucault, “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência”. 

Os fundistas decidem atacar os vagões da frente para obterem melhores condições de vida.  Sem sucesso, são massacrados e continuam onde estão. Esse é um dos críveis – que se desejaria que fossem incríveis – paralelos que a obra faz com a vida real. 

Norte, Centro e Sul no Desbrava-gelo

Situação semelhante acontece no “trem paralelo”. Outra locomotiva parte junto com o Perfuraneve: a Desbrava-gelo, explorada nos dois volumes seguintes, “O Explorador” e “A Travessia”, roteirizados após a morte de Lob. O Desbrava tem a mesma premissa de ser uma locomotiva eterna, salvadora da humanidade, mas não se explica muito bem por que os dois trens saem separadamente de um mesmo ponto de partida. 

Assim como na outra locomotiva, no Desbrava-gelo há uma forte divisão de classes. Em vez de Frente e Fundo, encontra-se Norte, Centro e Sul, sendo o Norte onde habita a classe mais abastada, o Centro  a dita classe-média baixa e o Sul, os mais pobres. 

Tanto no Desbrava-gelo quanto no Perfuraneve, é evidente a tirania dos governantes. No primeiro, o presidente e o general fazem decisões em benefício próprio e da classe abastada, sem pensar nos demais. No segundo, há uma falácia,  propagada por um conselho de seis pessoas, de que é possível que haja um choque frontal com o outro trem, e isso mantém a população com um medo constante e sem combustível para qualquer tipo revolta.

“Desde então, eles usam o terror do choque frontal para conter a população… segundo eles, sem o medo, todos esses pobres idiotas já teriam se suicidado.”

A divisão do poder e das classes sociais no livro tem caráter verossímil. Há muita polarização política, corrupção, indignação, pobreza, distribuição desigual de riquezas, violência como forma de opressão e lunáticos conspiracionistas no mundo. O livro causa um efeito de choque com a sua exposição crua e visceral da realidade.

Sobre a Aleph

A Editora Aleph, fundada em 1984, é a principal editora de livros de ficção científica no Brasil. Seu catálogo tem como foco livros de cultura pop, fantasia e ficção. Entre os seus principais autores estão Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, William Gibson, Ursula K. Le guin, Philip K. Dick, John Scalzi, Brandon Sanderson e Ann Leckie. 

Passeando entre os clássicos e contemporâneos, estrangeiros e nacionais, a Aleph, editora independente, tem 120 livros em catálogo. Além dos temas citados, a editora também possui livros com o selo Goya, que são exemplares de autoconhecimento de desenvolvimento pessoal.

*Imagem de capa: Arquivo pessoal/Isabel Teixeira

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