“O próprio aeroporto é uma coisa mais antiga, já me sentia em outra época. O primeiro táxi que eu peguei era roxo, bancos de camurça, com uns enfeites, parecia um filme de época.”
Essa foi a impressão de Carolina Bráz Góes (30) quando desembarcou no Aeroporto Internacional José Martí em Havana, a capital cubana. Assim como Carolina, a primeira impressão que marca alguns turistas é a sensação de um lugar perdido no tempo: os produtos tem marcas desconhecidas e os carros são muito antigos. A ilha cubana, localizada na região do Caribe, tem aproximadamente a área do estado de Pernambuco. Sua população carrega marcas de tempos difíceis de sobrevivência e que até hoje perpetuam problemas. O ideal de um Estado igualitário, mas que não garante uma qualidade de vida digna. Uma terra em que “todos são iguais”, mas não são.
Os olhos do cubano
Joan Rodriguez Diaz (39) e Yaicel Ge Proenza (37) são cubanos que, em momentos diferentes de suas vidas, vieram morar no Brasil. Joan veio no intuito de fazer seu doutorado e Yaicel fez o doutorado e o PhD. Ambos receberam bolsas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e conseguiram mudar de Cuba para o Brasil. Joan e Yaicel falam português fluentemente, mas as marcas do seu sotaque ainda são muito presentes.
Os dois viveram a infância e a adolescência em seus países de origem e moraram em cidades diferentes ao longo dos anos. Perguntei a Joan Diaz sobre sua juventude, quando morava no pequeno município de Sagua la Grande. Apesar de parecer reticente, ele diz que é preciso “falar a verdade, foi uma época muito difícil”. Esse período de sua vida coincidiu com o Período Especial em que, após a queda da URSS, Cuba vivia uma crise econômica. Marcelo Fernandes, economista da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e com estudos aprofundados na moeda cubana, explica que toda a produção de alimentos, roupas e produtos de higiene — praticamente tudo — foi reduzido pela metade.
“Nessa época a gente tinha 20 horas sem energia elétrica, não tinha sapatos, praticamente nada pra jantar, a roupa não tinha ou tinha pouca”, Joan relembra as dificuldades que a família enfrentou. Yaicel também fala do Período Especial, em que tinha nove anos. “Imagine uma infância feliz, eu e duas irmãs na escola. Quando cai o campo socialista da URSS, Cuba fica sem amparo econômico e comercial. Aí acabou tudo: roupas, sapatos, alimentos, meios de subsistência básica, material escolar”. Ele diz que o que lhe marcou muito foi que os três irmãos só tinham dois pares de sapato e precisavam “turnar” (revezar) para ir à escola. Algumas refeições eram apenas batata doce ou macaxeira, sem proteínas, o sabão também acabou e por volta de 1993, a pasta de dente acabou e tiveram que escovar os dentes com sal. “Tomávamos leite apenas uma vez por semana”, ele fala com indignação e lamenta que sua geração teve muitos homens que não conseguiram se desenvolver bem, ficando muito pequenos. Sua família depois conseguiu mudar para uma fazenda no interior e a variedade de alimentos se tornou maior, por meio de plantações.
Por meio de bolsas de estudo ou programas do governo, como o antigo Mais Médicos, a quantidade de imigrantes cubanos têm aumentado. Muitos saem de casa para países capitalistas, em busca de melhor qualidade de vida para si e sua família. Yaicel conta que mensalmente envia 40 dólares para sua mãe e “isso é um dinheiro ótimo para passar o mês lá”. Marcelo Fernandes explica que trabalhadores do setor público, como professores universitários, recebem o salário em moeda diferente de quem trabalha no setor privado. A moeda em que recebem é muito desvalorizada e a maior parte da população se sustenta com o valor necessário para algo próximo de uma “cesta básica”, compara Yaicel. Os habitantes com parentes morando fora conseguem remessas de produtos importados, principalmente dos Estados Unidos, ou recursos financeiros que contribuem para uma vida mais confortável.
Os dois lados da moeda
Com contribuição de Marcelo Fernandes
Cuba tem um caso muito singular: a circulação de duas moedas oficiais. Normalmente, é comum a circulação de outras moedas além da oficial, como o dólar, visto a sua relevância no mercado internacional. No entanto, Cuba se destaca com o peso cubano e o peso conversível, popularmente chamado de CUC.
Antes da queda da União Soviética, Cuba sempre viveu uma vida econômica de trocas favoráveis e, nessa época, havia apenas o peso cubano. Enquanto vendia açúcar para a URSS com um preço muito elevado, a mesma lhe vendia petróleo com um preço muito abaixo do valor de mercado. No entanto, com o desmanche, o país foi gravemente afetado. Toda a sua produção precisou ser cortada pela metade, o que ficou conhecido como o Período Especial, que ocorreu de 1992 até aproximadamente 1994. Foi nessa época que Joan e Yaicel passaram por tantas dificuldades na infância.
Por se tratar de uma economia socialista, a produção menor não gerou desemprego, mas as empresas tinham diversos trabalhadores ociosos, que continuavam recebendo salários iguais, sem sofrerem os efeitos de nenhuma inflação. Entretanto, não tinham o que comprar. Com essa sobra de capital, surgem os “mercados negros” e a possibilidade de adquirir alguns produtos que estavam em escassez. No entanto, essas compras são realizadas apenas por quem tinha capital a ponto de conseguir convertê-lo ao dólar, que vale em torno de 25 pesos cubanos. As pessoas passam a comprar em dólar. É então que o governo surge com a proposta de uma nova moeda que não substituiria o peso cubano, o peso conversível. Na verdade, o CUC se tratava de uma estratégia: o dólar foi legalizado de modo que seu valor fixo equivalesse a um CUC. Os preços foram alterados para as pessoas poderem comprar com essa moeda também e trocarem seus dólares por CUCs. Assim, o governo conseguiu ter acesso ao dólar e negociar com outros países, retomando a importação e produzindo internamente. Assim, serviços gerais de saúde e educação, que também passavam por dificuldades, conseguiram se manter.
O CUC circula até hoje, mas atualmente ele recebe o apelido de “dinheiro do turista”. Isso ocorre pois o acesso à moeda se restringe a locais como hotéis, casas de câmbio, restaurantes e carteiras dos estrangeiros. O trabalhador cubano que recebe em peso conversível consegue garantir para si uma melhor qualidade de vida para si, pois tem um dinheiro 25 mais valorizado. A pessoa tem acesso a bens, eletrodomésticos, até uma comida de restaurante melhor.
Joan fala que “isso é uma questão muito complicada para o cubano e para o turista”. Diferente do que vemos no Brasil, algumas pessoas muito pobres em Cuba não abordam turistas para pedir dinheiro, mas para pedir comida e produtos de higiene. Yaicel acredita que as duas moedas “só separam a sociedade em duas partes, mesmo que o governo não reconheça.” E ressalta que lá, “as pessoas pobres são as que não tem luxo; não é que estão passando fome, ninguém morre de fome não”.
Os olhos do turista
Carolina Bráz Góes (30, Limeira – SP) conta que visitou várias cidades cubanas, desde as praias litorâneas até as cidades mais simples do interior, em janeiro de 2014, quando visitava a família de um ex-namorado cubano. No círculo de convivência dele, reparou que a maior parte apresentava um grau elevado de conhecimento artístico e filosófico. Nas galerias de arte que frequentou, algumas pessoas compravam obras muito caras e também passavam com carros modernos. Ela conta: “fiquei impressionada com essa desigualdade de classes, achei que ia encontrar todo mundo lá no mesmo barco”.
Durante seus 22 dias de estadia, relata que muito do que viu era contraditório, pois pegava um ônibus que passava por um túnel debaixo do mar, uma estrutura moderna, enquanto vários carros antigos o percorriam. “É uma mistura de antigo com novo, mas o acesso às coisas mais novas não é para todos.” Ela também notou vários soldados pelas ruas, “uma coisa que eu não vejo aqui”, e placas e outdoors com dizeres do tipo “não se rebelem, pois se não a milícia vai tomar as ruas”, junto a foto de políticos. “Uma mídia política com teor muito opressivo.” Além disso, a televisão cubana aberta tem a maior parte de seus canais com programação controlada pelo governo.
Nos mercados, não achava nada de multinacionais que conhecemos, era tudo diferente. “Os hotéis conseguiam produtos industrializados, como Coca-Cola, mas isso você jamais encontraria em outro lugar.”
A disparidade entre os locais mais e menos frequentados pelos turistas é grande. Joan diz que a visão do viajante depende de como ele chega. “Se fica hospedado em um hotel com tudo incluso e não sai da zona de conforto, não vai ver nada que realmente represente Cuba.” No caso de Carol, ela ficou na casa da tia de seu namorado, um estilo de hostel, e dessa forma teve a oportunidade de conhecer o verdadeiro cotidiano cubano. Yaicel comenta que agora esse turismo de rua tem crescido, “o turista dos últimos anos está mais motivado a conhecer a cultura e a verdadeira Cuba, do povo cubano”.
As agências de viagens normalmente priorizam a visita a pólos turísticos, às praias mais visitadas e aos monumentos importantes. A publicidade em torno dos resorts é muito grande e costuma atrair muitos estrangeiros. Em uma viagem com os parentes de seu namorado, Carolina conta que viveu algumas aventuras nesses locais. Segundo ela, algumas praias turísticas cobram dos nativos para poder frequentarem ali, como a de Cayo Coco, enquanto os turistas têm entrada gratuita. Além disso, havia pousadas em que só eram aceitos estrangeiros e outras que eram apenas para nativos.
Ela conta que encontrou um grupo de estudantes que participavam de um programa do governo para conhecer o lugar. Durante o passeio, alguns haviam desviado do planejado e passeado por conta própria. Eles lhe contaram que esses locais que visitaram eram muito diferentes dos que eram mostrados pelo governo, que estava passando outra ideia do lugar para eles. Carol diz ter amigos que já foram a Cuba e que têm visões completamente diferentes da dela. “Os lugares que não querem que turistas frequentem são os que mostram mais da pobreza e da desigualdade social, que deixam a discrepância econômica e social muito óbvia.” Como exemplo, ela cita a tia do namorado, que tinha um hotel e viajava muito, comprava maquiagens e perfumes importados.
Encontro Cuba-Brasil
Assim como os nativos, os turistas descrevem a população cubana como alegre e festeira, parecida com brasileiros. De fato, Cuba conhece muito do Brasil pela música, danças e pessoas, famosas por serem muito abertas, festeiras — é “a terra do Carnaval”. Joan fala que a visão do cubano sobre o Brasil é muito diferente da visão de um europeu, por exemplo. Para ele, “o cubano tem uma visão mais certa do que é o Brasil”. Yaicel descreve a cultura cubana como muito rica humanamente. “Mais do que econômica ou politicamente”, ele enfatiza a formação da cultura em valores humanos.
O contraste entre os dois países é evidente: Cuba é socialista e o Brasil é capitalista. Para Yaicel, as pessoas veem Cuba como um paraíso tropical, com mojito e charuto, praias lindas e “todo mundo dança salsa”. Mas também associam muito à ditadura e a um povo muito miserável.
Amo Cuba. Não conheço, sempre desejei conhecer, independente de idéias políticas. Amo o país e seu povo. E os admiro por sobreviverem aos governantes, que para satisfazerem seus sonhos particulares, oprimem esse povo caloroso e resistente. Um dia, se Deus quiser, ainda vou conhecer esse País maravilhoso.