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Apuração além das urnas: a relação entre o jornalismo e a democracia

Jornalismo. Democracia. Eleições. Foram os principais eixos condutores do debate.   Por José Carlos Ferreira (jcarlosferreira@usp.br), Caroline Aragaki (carolaragaki@usp.br), João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com) e Tamara Nassif (tnassif@usp.br) Sábado, 11 de agosto. Um dia azul, ensolarado e frio no bairro de Pinheiros. Na esquina da Rua Henrique Schaumann com a Rua Cardeal Arcoverde ergue-se a Biblioteca …

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Jornalismo. Democracia. Eleições. Foram os principais eixos condutores do debate.

 

Por José Carlos Ferreira (jcarlosferreira@usp.br), Caroline Aragaki (carolaragaki@usp.br), João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com) e Tamara Nassif (tnassif@usp.br)

Sábado, 11 de agosto. Um dia azul, ensolarado e frio no bairro de Pinheiros. Na esquina da Rua Henrique Schaumann com a Rua Cardeal Arcoverde ergue-se a Biblioteca Pública Alceu Amoroso Lima. O edifício com 2.330m² de área construída chama atenção por sua arquitetura elegante, sóbria e de formas fixas. Esse foi o espaço escolhido para acolher o II Encontro Jornalismo Júnior (2018): Apuração além das urnas.

A concepção do evento surgiu a partir de demandas dos estudantes de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), membros da Jornalismo Júnior, a fim de debater uma questão fundamental para a democracia: qual o papel e o impacto do jornalismo nas eleições? Aberto ao público, o Encontro contou com 12 palestrantes entre professores, jornalistas e especialistas em comunicação. Através de quatro mesas: redes sociais e a rapidez da informação, cobertura política na América Latina, debates políticos e fact-checking. “Apuração além das urnas” trouxe à luz questões extremamente atuais da cobertura jornalística, sobretudo, na política e no modo que a informação circula em tempos de WhatsApp.

Ilustração da Biblioteca Alceu Amoroso Lima por Rodolpho Tamanini Netto (1998)

Nas primeiras horas da manhã, o auditório Paschoal Geraldo da Silveira Isoldi foi preenchido pelo azul da Jornalismo Júnior. Repórteres e diretores — todos trajando camisetas azuis com o logotipo da empresa júnior estampado no peito — estavam de prontidão para receber o público às 9h. Olhos mais atentos também repararam na composição do auditório: concreto e aço com vigas por toda extensão do teto, intercaladas por lâmpadas fluorescentes.

Foto: Jornalismo Júnior

Nas redes sociais

Ao abrir a primeira mesa e, consequentemente, o evento em sua totalidade, Lucilene Cury, mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, deixa um aviso: “Discutiremos o jornalismo no contexto das eleições e da democracia. Portanto, em foco, o jornalismo, a democracia e as eleições”. Isto é, as eleições estariam em primeiro plano.

“A maneira como eu vejo as redes sociais é diferente de jornalistas mais old school”, expôs o editor chefe do HuffPost Brasil, Diego Iraheta. “Não é uma nova ferramenta de comunicação. Redes sociais são públicos em redes”, completou. As declarações de Iraheta seguiram acompanhadas de uma explicação lúcida de como o público conectado em rede altera o fazer jornalismo. Para o editor do HuffPost Brasil, estamos vivendo um novo jornalismo. No qual, “pessoas comuns começaram a ser co-produtores de jornalismo”, ou melhor, “coautores de jornalismo digital em potencial”.

A disseminação da tecnologia, em especial dos smartphones, e a massificação das redes sociais (Facebook, WhatsApp, Twitter), fez com que os mass media tradicionais (TV, Rádio, Jornal) perderam o monopólio da circulação de informação. “O que as redes sociais fazem é o que eu gosto de chamar de jornalismo 2.0. É a possibilidade de uma pessoa comum — sem formação jornalística — emplacar o que é informação, o que é notícia”.

Apesar da democratização da informação e do empoderamento do cidadão como co-produtor de jornalismo, esse novo modo de operação traz consigo uma grande problemática: a veiculação de notícias falsas em escala jamais vista. Visões de mundo antagônicas enfrentam-se desordenadamente na busca pela hegemonia nas redes sociais. Esquerda e direita tentam a todo custo emplacar suas narrativas ou “teses”, como diz Iraheta, no mundo virtual.

O “caso Marielle Franco” foi utilizado pelo editor chefe do HuffPost Brasil para ilustrar a situação. Quando traçada a genealogia de fake news que tiveram alcances exponenciais, podemos nos deparar com uma surpresa, o surgimento orgânico do boato. Diferente do que muitos pensavam, o emaranhado de notícias falsas compartilhadas sobre Marielle não tiveram uma origem premeditada. “A priori, não houve uma orquestração”, explica Diego sobre as fake news difundidas contra Marielle Franco.

A princípio dois, ou três, boatos são compartilhados em redes sociais de maneira desconectas. A partir disso, o alcance desses boatos são maximizados por novos compartilhamentos. O boato acaba sendo apropriado e reforçado por alguma narrativa — de direita ou esquerda — na busca por hegemonia. Com isso, temos milhares, quem sabe milhões, de indivíduos impactados por uma notícia falsa. “Hoje qualquer um de nós tem potencial para manchetar um site, mas, também, para produzir uma notícia falsa”, conclui Iraheta.

Em contrapartida às notícias falsas, nasceram as agências especializadas em fact-checking (checagem de fatos). Gilmar Lopes, analista de sistemas e pioneiro na checagem de fatos no Brasil, fundou o e-farsas.com em 2002. Quando termos como fake news ou fact-checking ainda estavam longe de serem criados. Embora precursor das agências de fact-checking, Gilmar gosta de ironizar. “Agora o G1 tem uma área de checagem. Como se o resto do G1 não precisasse fazer isso. É como se sua pizzaria favorita dissesse ‘agora o pizzaiolo vai ter que lavar as mãos’”, ele ainda completa “checar os fatos é obrigação do jornalismo”.

Nathali Macedo, autora do livro As Mulheres Que Possuo, roteirista e escritora no Diário do Centro do Mundo e no EOH, também estava compondo a 1ª mesa do Encontro e concordou com Gilmar Lopes, mas foi além: “De fato é obrigação do jornalista a checagem dos fatos, mas hoje esse imperativo não cabe só a ele. Todos somos influenciadores de alguma maneira. Somos bons curadores para alguém em nossa timeline e, portanto, responsáveis pela informação que compartilhamos”.

Outra característica preocupante dos boatos digitais é que eles não são datados, enfatiza Gilmar Lopes. O fundador do e-farsas explica que existe um movimento pendular em determinadas notícias falsas. O caso da “mansão do Boulos” é um deles. Há uma fake news que diz que Guilherme Boulos herdou uma mansão no bairro da Vila Mariana. O próprio e-farsas possui uma publicação desmascarando o boato, entretanto, após o debate dos presidenciáveis na Band, a fake news voltou às redes.

“Do ponto de vista jornalístico, estamos em uma enrascada”, apontou a mediadora da mesa Lucilene Cury, preocupada com o impacto negativo que as redes sociais podem trazer para as eleições. Cury, assim, como os demais mesários, reafirmou o papel do jornalismo de qualidade e apurado, sobretudo, no dado momento. Macedo, em tom de despedida, deixou um recado para a plateia formada majoritariamente por estudantes de comunicação: “olhem os tweets antigos de seu candidato”.

Foto: Jornalismo Júnior

Na América Latina

A segunda mesa do evento abordou a cobertura política na América Latina. Com a mediação de Thomaz Oliveira Paoliello, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, a presença de João Paulo Charleaux, que já foi repórter, editor assistente, enviado especial e colaborador da Folha de S. Paulo e atualmente é editor de Política, Economia e Internacional no Nexo Jornal, e Paula Ramón, jornalista que já escreveu para a Folha de S. Paulo, The New York Times, CNN México, Lá Nación e é a atual correspondente da Agence France-Presse em São Paulo.

Desde o começo da discussão, Paoliello buscou ressaltar que os temas relevantes no Brasil — corrupção, aborto, ensino de ideologia de gênero nas escolas — também estão em intensa discussão no resto da América Latina. Segundo ele “Existe um repertório latino americano da forma de se organizar, com o uso de imagens e palavras de ordem.” Outro ponto em comum é um ciclo eleitoral marcado por grande revolta da população em relação à classe política — definida por escândalos de corrupção — e a ressurgência de um discurso populista.

João Paulo Charleaux ressalta que “nós [os jornalistas] temos necessidade de organizar a realidade”. Nesse sentido, o jornalista desenhou um panorama geral da região: a maioria dos países passou por um ciclo de governos de esquerda e, agora, é a direita que ganha força. Charleaux destaca que há exceções — a Bolívia e a Venezuela ainda são governadas pela esquerda, a Colômbia só teve governos de direita nos últimos anos. No geral, ele afirma que a região não possui uma caracterização geral, o “preto e branco”. Ela é marcada por nuances e particularidades de cada país. O jornalista também lamenta a redução significativa da cobertura da região por veículos brasileiros, com a demissão ou realocação de correspondentes, destacando que “a gente [a população brasileira] está praticamente cega.”

Já para Paula Ramón, renovação é a palavra-chave na América Latina atualmente. A população está cansada dos políticos, e deseja trocá-los. Ela concorda que, no geral, os temas de corrupção, violência e desigualdade são os mais frequentes nos veículos jornalísticos da região. Para ela, a área vive um momento muito interessante: os eleitores têm muita expectativa em relação ao processo político, buscando renovação, mas o conceito de democracia vem perdendo força na sociedade. Ela ressalta, porém, que ainda não notou essa renovação real da classe política.

Sobre o papel da imprensa, Rámon usa o caso venezuelano como exemplo para ilustrar como a polarização política leva a um desinteresse por notícias. Hoje em dia, no país, a imprensa está desarticulada, mas já teve um grande papel no funcionamento da sociedade. Foi muito interessante ter acesso ao conhecimento de alguém que não só é da Venezuela, como cobriu o país por anos, oferecendo uma vasta gama de informações sobre o assunto.

Os palestrantes ressaltam que, quando a região é analisada por jornalistas de outros países, em especial dos Estados Unidos e de países europeus, temas negativos acabam recebendo mais destaque,  principalmente a corrupção e a alta criminalidade. Charleaux, aponta que há uma justificativa válida para isso: os números ligados ao assunto são bastante elevados e, os casos, marcantes e bastante surpreendentes.

Outro assunto que costuma ser trabalhado é a saúde das democracias latinoamericanas. Geralmente elas são vistas como problemáticas e incompletas frente aos clássicos modelos ocidentais, mas Paoliello defende que nós não devemos reproduzir essa visão. “Às vezes, a gente deixa de perceber o quão rica democraticamente a nossa região [América Latina] é”.

Especificamente em relação ao Brasil, Rámon elenca os seguintes temas como grandes focos de atenção do público: o ex-presidente Lula, o meio ambiente (destaque para a Amazônia), tema do trabalho e conflitos no campo. Para ela, todos os países da região são simplificados em estereótipos.

Perguntados sobre o papel do jornalismo nas mudanças sociais, Charleaux e Rámon concordam que ele é limitado. Ela defende que o jornalismo deve dar espaço para vozes, mas isso é o máximo que ele pode fazer para causar mudanças. As visões são diferentes das mais idealizadas presentes entre muitos jornalistas jovens — como eu — mas apresenta uma contundente reflexão, cuja resposta varia de pessoa em pessoa.

No fim, ficou claro que a cobertura na região não deve se utilizar de generalizações, cada país contém as suas particularidades, e é essencial que as respeitemos e as levemos em consideração ao escrever sobre o assunto. A conclusão, mesmo que um pouco decepcionante — afinal o trabalho jornalístico é facilitado quando é possível realizar esses agrupamentos sem perda de conteúdo — é essencial para qualquer um que queira, futuramente, escrever sobre a América Latina.

Foto: Jornalismo Júnior

Nos debates

O ciclo de debates, com início pela emissora Band e finalizado pela Globo, configuram uma ferramenta importante para o eleitor ponderar quanto a seu voto. Um pouco distante do planejamento das propagandas eleitorais, no imprevisível do ao vivo, pode ser mais fácil de identificar as contradições das propostas de cada candidato. E qual o papel do jornalismo nesse cenário?

Com a participação de profissionais experientes na cobertura de eleições presidenciais, separar vinte minutos para cada um relatar um pouco de sua vivência foi uma estratégia interessante. A exposição de ideias que, a priori, pareceram individuais, tiveram tópicos compartilhados entre os três convidados sem se tornar cansativo: informações novas a cada fala enriqueceram o assunto. O mais marcante foi a comparação entre o significado dos debates no cenário de antigamente e o atual.

Thaís Oyama, redatora-chefe da revista Veja, participou de seis eleições presidenciais como jornalista e enfatiza que há uma mudança crucial nos debates na eleição atual. Em 1989, o debate de Lula e Collor, decisivo para o resultado da eleição, teve acusações de manipulação na edição. Além disso, houve o suposto pedido de aborto que Lula teria feito a Miriam, ex-namorada dele. “Tenho certeza que, nos dias de hoje, isso não aconteceria mais.” Oyama fala de  um estudo do IDEIA Big Data a respeito das eleições norteamericanas de 2016, a eleição de Trump, que categoriza 28 eventos como capazes de mudar os rumos da eleição.

“Em 89, esses 28 eventos eram resumidos a um: debate. Hoje essa multiplicidade de informações simultâneas, incessantes e contraditórias na internet, de alguma forma dilui, a importância do debate.” Mas a jornalista pondera, visto que essa eleição repleta de mudanças é, também, a mais curta da história do Brasil [com 45 dias de campanha, sendo que até 2014 eram 90] e a com menos dinheiro [limite de gastos e caixa 2]. “Nesse sentido, os debates ganham importância, porque qualquer espaço de exposição do candidato pode ser definitivo para ele”, conclui.

Em seguida, Oyama coloca em pauta a importância do jornalista nos debates eleitorais. Ilustra novamente com um exemplo do passado brasileiro. O debate para a eleição de prefeito de São Paulo em 1985 fez com que Fernando Henrique Cardoso ficasse em maus lençóis após Boris Casoy, que mediava, perguntar se ele acreditava em Deus. Apesar de tentar contornar, não deu outra: Jânio Quadros quem ganhou a eleição daquele ano.

Também foi citada a influência do subjetivo na escolha de um candidato, com análise do caso da eleição de 1960 dos Estados Unidos, em que Richard Nixon apareceu em desvantagem em relação ao oponente John Kennedy, no primeiro debate a ser transmitido pela televisão. Nixon, que acabara de sair do hospital por conta de um problema no joelho, estava pálido, descabelado, magro, e aparentemente nervoso e confuso. Kennedy, diferentemente, estava lindo, bronzeado e sorridente. O interessante é que, quem acompanhou um debate pelo rádio, não fez uma avaliação tão negativa quanto quem assistiu à televisão. “Isso demonstra que a percepção, embora nem sempre baseada em critérios racionais ou lógicos, opera sim na opinião do eleitor”, completa Oyama.

Carol Pires, roteirista do programa de TV Greg News da HBO Brasil e colaboradora do The New York Times em espanhol, inicia com uma relação quanto à essa subjetividade. De acordo com ela, uma pesquisa da Universidade de Houston selecionou vários democratas e republicanos para tentar convencer uns aos outros de suas convicções. Ao final, cada um está ainda mais convicto do que estavam no começo da conversa. “A política bate nas convicções morais das pessoas e as informações são lidas como num jogo de futebol: um acha que é falta, o outro não. Às vezes a gente tenta trazer uma contradição do candidato, mas na verdade só está reforçando que ele é o candidato que o eleitor gosta”, diz Pires.

A jornalista afirma que a importância dos debates foi mudando ao longo das eleições, principalmente nessa última. Com passagens na cobertura eleitoral no Estadão, Piauí e, agora, no Greg News, é importante citar o formato de cada veículo no que diz respeito ao tempo de apuração e modo de acompanhar os candidatos. Se no estilo carrapato, em que cada repórter é responsável por um candidato, ou se de maneira mais ampla.

A primeira campanha de Dilma coincidiu com a primeira cobertura eleitoral de Carol Pires, que ficava em Brasília com uma visão mais geral, para o Estadão. A segunda eleição que cobriu foi pela Piauí, na qual foi carrapato de Marina Silva, e tinha o luxo de trabalhar na mesma matéria para acompanhar a trajetória da candidata. Por fim, este ano, está no Greg News com a oportunidade de mergulhar nos candidatos como num dossiê para realizar o roteiro.

Ela revela que a estratégia atual foi passar dois dias assistindo tudo do Jair Bolsonaro e fichando, marcando os tempos exatos de cada fala. E o interessante para ela foi que, em alguns momentos Bolsonaro diz “eu nunca falei isso…” e ela sabe pontuar, com toda a certeza: “hmm… falou sim!”, ao passo que a plateia foi aos risos. Pires também diz que essa nova experiência consiste em “comentar esses confrontos no Twitter, onde todo mundo tem voz, o que diz muito a respeito do momento atual que vivemos [com grande importância das redes sociais]”, finaliza.

Para Fábio Zanini, editor de política da Folha de São Paulo, o debate da última quinta-feira (9) não foi muito interessante, pois a campanha eleitoral não começou de verdade; a campanha só começa quando a televisão começa, dia 31 de agosto. Ele diz que, em eleições passadas, tinha uma campanha e depois um debate. “Hoje em dia, parece que é o inverso: parece que a campanha são vários debates. Tem muito debate hoje, e não só na televisão – Piauí, Youtube e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)  vão fazer também”, comenta.

Resultado de um processo histórico dos últimos anos, a campanha política atual é muito mais midiática – presente tanto na televisão quanto nas redes sociais – do que antes. E ao mesmo tempo que isso acontece, os debates vem sendo cada vez mais engessados por uma quantidade de regras gigante. “Os candidatos não gostam do debate, porque ninguém ganha um debate, mas você pode perdê-lo. É um risco muito grande”, diz Zanini, que completa com “por isso há uma espécie de acordão informal entre assessores, o Tribunal Superior Eleitoral, a Lei Eleitoral – que quem faz são os políticos – para criar regras e dificultar o livre debate de ideias.”

Mas o editor também analisa que “às vezes as emissoras tentam fazer um evento mais solto, sendo a Globo a que mais ousa nesse quesito, mas continuam sendo mudanças muito pontuais.” De acordo com Zanini, o relato de debates é muito difícil na cobertura política, pois dificilmente há um lead em duas ou três horas permeadas por diversos assuntos. O resultado é uma matéria finalizada apenas horas depois do debate, e “o fato é que a imprensa tem que se reinventar nesse momento em que o debate, por ser engessado, é complicado.”

Após essa primeira exposição de ideias, a mesa contou com perguntas de um público bastante engajado e não limitado à estudantes de Jornalismo – além de contar com profissionais já formados, também houve participação daqueles que consomem os conteúdos como eleitor informado. Isso, por si só, já demonstra como o jornalismo continua importante para a sociedade brasileira.

Foto: Jornalismo Júnior

No fact-checking

“Se é notícia, não é falso”, disse Sérgio Ludke, diretor executivo do website interatores.com e um dos criadores do projeto Comprova, ao introduzir o terreno ainda titubeante das erroneamente chamadas “fake news” ou notícias falsas.

Diferente das três mesas anteriores, Apuração além das urnas: no fact-checking não foi direcionada de modo integral à política, mas ao cenário mais extenso das anti-notícias – e nisso se inclui a semântica do termo. De acordo com Sérgio, a expressão fake news foi cunhada por Donald Trump em meio às eleições estadunidenses de 2016 e se tornou uma armadilha, algo capaz de desprestigiar o trabalho jornalístico de informar verdades e fatos apurados. Se é notícia, não é falso. Se é falso, não é notícia.

Além de Sérgio Ludke, a última mesa do evento também contou com Shin Oliva Suzuki, editor do portal G1 e inicialmente palestrante de Apuração além das urnas: nas redes sociais. Ambos esquadrinharam com proficiência o cenário pessimista das anti-notícias e da checagem de fatos. Talvez uma das frases que melhor descreve o teor desse cenário seja a proferida por Shin Oliva: “é como se fosse um pneu furado em um carro andando cada vez mais rapidamente e a gente tem o desafio de trocar esse pneu com o carro em movimento.”

A verdade é que as anti-notícias têm surgido em ondas cada vez mais difíceis de conter, em virtude da velocidade de difusão de informações na internet e, também, da velocidade do avanço tecnológico. Shin exemplifica com os vídeos de deepfake, que, apesar de não serem “notícias falsas” propriamente ditas, veiculam informações inverossímeis de forma bastante convincente por meio de alta tecnologia audiovisual. Se tratam de vídeos orquestrados por inteligência artificial que criam versões computadorizadas do rosto ou da voz de alguém para posteriormente inserir em um contexto manipulado.Como aconteceu com a atriz Emma Watson, colocada em filmes pornôs, e com o ex-presidente dos EUA Barack Obama.

O perigo dessa nova engenharia recai sobre a possível – e provável – adulteração de falas de políticos e de pessoas de alta influência em escala global, de forma que a detectar a forja se torne um exercício praticamente impossível sem o uso de softwares especializados. O impacto de um vídeo de Kim Kataguiri se dirigindo a Donald Trump de forma extremamente ofensiva, incisiva e ameaçadora, por exemplo, pode gerar consequências desastrosas e de duvidosa reversibilidade.

Somado a isso, une-se ainda a perspectiva de ingresso de mais pessoas ao mundo da internet, normalmente associadas a um baixo grau de escolaridade e, dessa forma, mais vulneráveis e suscetíveis aos rumores.

A esperança está no mesmo avanço tecnológico que foi pintado de tons ameaçadores pelos palestrantes, em um momento, e de promissores, em outro. “A gente precisa se preocupar em pensar estratégias sofisticadas à médio prazo”, disse Shin, e é aí que entram os projetos de checagem de fatos.

De acordo com Sérgio Ludke, conhecer de muitas ferramentas de fact-checking, esses projetos são uma parte importante, mas muito pequena na perspectiva macroscópica.  A palavra-chave, para ele, é transparência: de trabalho jornalístico, de agências de financiamento, de método de trabalho, de fontes e da própria agência que veicula o que foi apurado. É tudo uma questão de credibilidade e de confiança.  O Comprova, seu projeto que vigorará de agosto até o final das eleições brasileiras, vem na intenção de desmistificar certas informações que podem navegar nas redes sociais. Além de ser originado de uma coalizão de 24 mídias de comunicação, como a Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo, contará com uma equipe de repórteres para monitoramento de redes a fim de identificar o que viraliza e o que tem potencial de viralização, para “raspagem de WhatsApp” em grupos abertos e para desmentir boatos.

Essa parte, segundo ele, é uma das mais delicadas. “Para desmentir, é preciso citar o que está sendo desmentido, ou seja, o boato” – e isso tem altíssimo potencial de fomentá-lo. “Será que quem foi atingido pelo boato vai ser atingido pelo desmentido?”, ele questiona. Ademais, muitos deles são reincidentes: “como se fosse uma maré, que se recolhe e volta a afetar outras pessoas.” Mas, mais do que conter informações verdadeiras e do que desmistificar rumores, a postagem do projeto de fact-checking precisa ter uma narrativa atrativa, cativante, que se sobreponha à mentirosa: “a mentira é muito mais sexy que o desmentido, e a gente precisa superar ela de alguma forma com a verdade.”

Os projetos de fact-checking na cobertura política, de acordo com Sérgio Ludke,  são quase como uma recuperação do jornalismo investigativo, que se debruçava sobre um mesmo conteúdo problemático por meses à fio, mas de uma forma muito mais ágil e rápida para acompanhar o dinamismo das redes atuais. No final das contas, é um serviço prestado na forma de análise crítica de discursos controversos e destinado a um leitor que demanda respostas e necessita de fidedignidade para exercer sua cidadania com maestria.

Dinâmica, Shin Oliva retomou a palavra para acrescentar à palestra um tom de otimismo, quase como se estivesse inserindo uma célula instigadora no público da Biblioteca. Para resolver uma questão de aparência tão insolúvel quanto essa das anti-notícias, disse, é preciso um “esforço de todos para propor soluções” em ações multidisciplinares.  Ele cita como exemplo o emprego de análises psicológicas nas origens do repasse de “notícias falsas”, a fim de “cortar o mal pela raíz” ou pelo menos compreender de forma mais clara esse terreno tão incerto.

“Não vai ser só no Jornalismo que essa questão vai ser resolvida. É importante a gente refletir sobre a nossa própria realidade conjuntamente”, encerra.

Conclusão final

O evento conseguiu reforçar algo que falta na consciência da sociedade atualmente: a importância de falar sobre política. É compreensível que, em um cenário tão polarizado, marcado por conflitos, divergências e casos cada vez mais frequentes de corrupção, as pessoas sintam um desânimo em relação à política, e percam a vontade de falar ou ler sobre ela.

É exatamente nesses casos, porém, que a discussão política é essencial. E cabe ao jornalista relembrar a população dessa necessidade. É essencial que o jornalista consiga explicar, e tornar interessantes, os mais diversos temas, dos debates às coberturas internacionais, da publicação de uma checagem de fato a um simples texto em uma rede social. Para isso, é essencial que o profissional entenda o assunto, e seja capaz de refletir sobre ele. É isso que o evento busca — e consegue — realizar.

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