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A arte de fazer propostas irrecusáveis: o que ‘O Poderoso Chefão’ nos ensina sobre os usos da opinião pública

A obra de ficção aborda como o manejo da informação afeta a forma que as pessoas enxergam o mundo
Por Vito Santos (vvitofs@usp.br)

Baseado na obra homônima de Mario Puzo, publicada no ano de 1969, o primeiro filme da trilogia de Francis Ford Coppola, O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), narra a história de Don Vito Corleone (Marlon Brando) e sua família, uma das grandes máfias italianas em Nova Iorque, nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Fazendo uso de ameaças, barganhas, assassinatos e propinas, a família mantém seu renome controlando o mercado de cassinos da cidade.

Com a chegada do mercado ilegal de narcóticos e a recusa do Don de fazer parte dele, as demais famílias entram em guerra contra os Corleone. Michael (Al Pacino), filho caçula de Vito, é obrigado a chefiar a família após uma sucessão de eventos trágicos que envolvem seu pai e seus irmãos.

Em um plano de vingança contra um dos rivais de seu pai, Michael mata um policial e um grande líder da máfia. Após o ocorrido, procura contatos dentro da mídia para espalhar, em jornais, a notícia de que ambos estavam envolvidos com o comércio ilegal de drogas. O público não questiona a atitude de Michael Corleone, uma vez que, se ambos participavam do tráfico de drogas, o assassino fez um favor para a sociedade.

Os Corleone, na obra de audiovisual, têm controle da mídia e sempre conseguem limpar a imagem dos crimes da família [Imagem: Divulgação/Paramount Pictures]

Saindo da ficção direto para a realidade, não é incomum se deparar com reportagens em que vítimas de assassinato tem como justificadas suas mortes por terem passagens pela polícia, ou, ainda, suposto envolvimento com o crime no passado. No imaginário popular, o assassinado, ao ser resumido a sua antiga pena, vira uma estatística e assim, de pouco a pouco, normaliza-se a ideia de que certas mortes são passáveis, porque o mundo se livra de mais um fora da lei.

A forma com que o caçula dos Corleone usa da influência da família na mídia para ser lido como um justiceiro pode parecer coisa de roteiro cinematográfico. Porém, trata-se de algo com correspondência na realidade material estudado por teóricos, como Noam Chomsky e Walter Lippman. Esses se dedicaram a investigar a forma com que nossas representações do mundo são formadas a partir da interação entre sociedade e  veículos de informação. Isto é, a opinião pública.

Opinião pública é o termo que, para Walter Lippman, diz respeito às imagens ou percepções próprias de um grupo de pessoas, ou mesmo de alguém que age em nome de um grupo de pessoas. Trazendo isso para dentro do longa de Coppola, é perceptivel que a sociedade de Nova Iorque via com maus olhos o comércio ilegal de narcóticos. Sabendo disso, Michael Corleone pôde fazer uso da opinião pública para cair nas graças do povo e não ostentar a fama de assassino ao imputar o crime de tráfico aos dois homens que matou. Criando, dessa forma, a ideia de que as mortes podem ser justificadas pelos crimes que ambos cometeram em vida.

Independente se os assassinados eram ou não envolvidos com o comércio de drogas, quando os jornais assim o noticiaram tornou-se verdade. Esse movimento acontece porque, no universo de ficção do diretor, tratava-se de veículos midiáticos que carregavam consigo certa credibilidade. Logo, as pessoas, imediatamente, tomaram como verídicas as informações ali publicadas. O que demonstra uma leitura da realidade semelhante à teoria hipodérmica, ou bullet theory, pensada por estudiosos, da escola norte-americana, como Harold Laswell, cuja premissa tem por base a passividade dos receptores, a falência das instituições e o esgarçamento do tecido social, semelhante à Nova Iorque retratada em O Poderoso Chefão. Com a inoperância dos setores públicos, os veículos de comunicação ocupam o espaço, introjetando na população as informações que vão ditar sua visão do que é o mundo.

Michael Corleone assume o posto de comando da família e dá novo rumo à trama [Imagem: Divulgação/Paramount Pictures]

Tendo como pressupoxto a bullet theory , fica claro que, se o povo de Nova Iorque justifica um assassinato com base na participação prévia ou envolvimento de alguém em um crime, é justamente porque essa visão foi construída por algum grupo. Noam Chomsky argumenta em sua obra Mídia: Propaganda Política e Manipulação (WMF Martins Fontes, 2013) que a opinião pública é administrada pelos indivíduos das classes mais altas, que, através do controle da informação, conseguem vincular suas ideias e perpetuar sua condição de dominação. Mas estes não o fazem de forma explícita ou mesmo de modo ostensivo, agem, segundo o autor, com discrição e tornam interesses privados em interesses públicos.

Em uma cena em que os líderes das famílias mafiosas se reúnem e discutem o fim dos confrontos entre si, novamente é abordado o uso da opinião pública. Na sequência, um dos comandantes informa que não acha certo comercializar drogas em bairros de maioria italiana, pois ter italianos fazendo uso de substâncias ilícitas não seria de bom tom para a fama do povo em Nova Iorque. Entretanto, todos concordaram que o tráfico poderia operar de maneira normal nos bairros afro-americanos, uma vez que esses já eram mal vistos pelos governantes e pela sociedade branca, devido ao passado escravista e aos conflitos raciais, principalmente. Todo estigma quanto ao comércio de entorpecentes, portanto, recairia sobre a população negra norte-americana.

A utilização da mídia para corroborar com uma interpretação dos acontecimentos foi algo muito bem traduzido nas telas em O Poderoso Chefão. Já é perceptível que se manter no poder, para os Corleone, sempre significou fazer uso da opinião pública a favor dos negócios da família. E se, segundo Chomsky, para os que definem o que é a opinião pública é necessário falsificar a história, para Coppola foi necessário fazer da ficção uma proposta irrecusável de entender a atualidade latente do uso da opinião pública.

*Imagem de capa: Divulgação / Paramount Pictures

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