“La banda nunca se olvidará de las Islas Malvinas.”
O trecho acima de um canto da torcida argentina, usado durante a Copa América realizada esse ano no Brasil, cita as polêmicas Ilhas Malvinas dizendo que os argentinos jamais se esquecerão do território disputado entre Argentina e Inglaterra. Em 1982, esse conflito chegou às vias de fato quando os dois países protagonizaram a Guerra das Malvinas. Mais de 35 anos após o fim da guerra, o tema continua quente dentro da sociedade platina. O grito de guerra usado em recentes jogos é uma demonstração disso.
Segundo uma pesquisa feita pelo instituto argentino Ibarómetro em 2013, as ilhas Malvinas são o assunto internacional mais importante para 24% dos argentinos, ficando na frente de temas como tráfico de drogas, meio ambiente e imigração, e atrás apenas de economia. Porém, por mais que essa mesma pesquisa aponte que 61% dos argentinos acreditam que a soberania das ilhas seja de seu país, apenas 25% crê que um dia a Argentina terá êxito nessa causa.
Já os ingleses não consideram as ilhas uma questão tão relevante. Apenas 1% dos entrevistados citaram as Malvinas como assunto mais importante para o Reino Unido. Mas os motivos para os britânicos permanecerem no território são maiores do que se imagina: além de ser uma região estratégica e militarmente importante, ela tem fortes indícios de presença de petróleo. O tema tem sido motivo de debate entre os dois governos. Em 2015, a Argentina decidiu processar três companhias petrolíferas britânicas por perfurarem em regiões vizinhas às ilhas. Pensando nessa importância militar-econômica, o Reino Unido passou a investir mais capital em suas Falklands, numa maneira de fortalecer os laços com a população que antes de 1982 vivia em condições precárias. Dessa forma, os ingleses consolidaram ainda mais seu domínio na região.
A história antes da guerra
Britânicos e argentinos travam uma antiga disputa pela posse do território. Para compreender a comoção por essas ilhas que “não produzem coisa alguma”, como descreveu o clérigo espanhol Frei Felipe de Mena em 1767, é preciso conhecer as questões históricas que motivam o povo argentino.
O primeiro desembarque nas ilhas, realizado pelo inglês John Strong, ocorre em 1690. Neste momento as ilhas são batizadas de “Falklands”, como os britânicos as chamam até hoje. A partir dali, o território passou por mãos inglesas, espanholas e mesmo francesas. Até que, no final do século 18, após a retirada da Inglaterra e um acordo com a França, o controle das ilhas ficou para a Espanha.
Com a independência da Argentina em 1810, o novo país herda a posse das ilhas, e reivindica esse direito, como conta o historiador Breno Juz, doutorando na questão das Malvinas. “Desde a independência existem escritos do governo e de intelectuais argentinos requerendo a posse de todos territórios do antigo Vice Reino da Prata. Nisso estão incluídas as ilhas Malvinas.” O especialista no tema completa: “Logo, essa associação das ilhas como identidade nacional já existia no século 19.” Os ingleses, no entanto, voltam em 1833 e recuperam o território à força. A partir dali, as Malvinas voltam a ser Falklands e se tornam território oficialmente do Reino Unido até hoje.
Os argentinos nunca aceitaram essa invasão inglesa da região. Um símbolo da luta platina pelas ilhas é Antonio Rivero. Empregado local, Rivero liderou uma rebelião nas Malvinas que ocorreu nove meses após a tomada britânica. Hoje já se sabe que a revolta não foi exatamente movida pela reivindicação territorial, como relata Breno Juz: “o que aconteceu foi um motim de empregados e era uma questão muito mais social de más condições de trabalho do que uma reivindicação pátria.” Mas até hoje o chamado “Gaúcho” Rivero é celebrado como herói na Argentina. Em 2014, no aniversário de 32 anos da Guerra das Malvinas, o governo o homenageou com uma nota de 50 pesos cujo verso tinha sua imagem.
O tema vai ganhar mais visibilidade principalmente a partir do século 20. A criação de uma lei em 1930, que coloca no currículo escolar o livro As Ilhas Malvinas de Paul Grossac, vai reforçar a ideia das Malvinas como um território roubado da Argentina. E esse sentimento se torna tão forte dentro do país que passa a transcender qualquer ponto de vista político. Uma evidência disso é o Operativo Condor (sem relação alguma com Operação Condor): um levante realizado em 1966, por um grupo nacionalista que sequestrou um avião DC4 e desviou sua rota para as Malvinas, onde fincou a bandeira argentina. O grupo, que foi julgado e preso, era formado por membros de diferentes matrizes ideológicas. Alguns de esquerda, outros de direita, mas juntos por uma causa.
Em 1982, a junta militar argentina que governava o país desde 1976 estava prestes a cair. A insatisfação popular com a ditadura era cada vez maior. Já não bastava apontar para o perigo “subversivo” dos comunistas. Àquela altura, a perseguição feroz contra a esquerda argentina já havia feito cerca de 8 mil vítimas (entre mortos e desaparecidos) e não fazia mais sentido. Foi então que o alto escalão do governo achou necessário criar um “fato novo” para unir o país. Era preciso levantar uma pauta que reunisse esquerda e direita. Todos os espectros políticos juntos por uma grande causa nacional. A solução foi retomar uma antiga disputa por um arquipélago ao sul do continente americano: as Ilhas Malvinas.
Ao mesmo tempo em que o assunto Malvinas evoca para a direita nacionalista uma questão patriótica de defesa da nação, incita vários setores da esquerda por uma causa anti-imperialista europeia. Transforma-se num potente tópico nacional. “Existia, antes da guerra de 1982, um forte sentimento nacional. Não é de graça que a ditadura vai escolher as Malvinas como esse símbolo a ser recuperado. É uma pauta nacional que se torna, em alguma medida, apartidária, pois todos os lados levantam essa bandeira”, relata Breno Juz.
A guerra do despreparo
Dia 2 de abril é feriado na Argentina: Dia dos Veteranos e Caídos da Guerra das Malvinas. Foi nesta data do ano de 1982 que as primeiras tropas argentinas chegaram em solo malvino e levantaram sua bandeira nas ilhas. Aquela sexta-feira iria marcar o início da Guerra das Malvinas. Mas não era essa a intenção inicial do governo argentino com a invasão.
As denúncias de violação dos direitos humanos aliadas ao caos econômico de 1981 desgastavam rapidamente os militares, e davam a certeza de que eles não podiam errar em sua última cartada para se manter no poder. Quando decidiram ocupar as ilhas, a junta militar imaginava que não haveria maiores conflitos, muito menos uma guerra. Na projeção militar, a Inglaterra estaria pouco preocupada com uma ilha a 12.500 quilômetros de Londres e, após a ofensiva argentina, seria forçada a negociar uma solução diplomática. Essa seria uma oportunidade perfeita de recuperar um símbolo argentino de extrema importância sem grandes perdas e aumentar o crédito do governo com a população.
Porém, houve dois erros de cálculo nessa estratégia: por ter os EUA como aliado ideológico, o governo argentino acreditava que seu levante teria apoio americano, o que não aconteceu. Além disso, a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher vivia situação semelhante a dos militares argentinos. A insatisfação popular na Inglaterra era grande. E, mesmo com uma realidade consideravelmente menos crítica, o Reino Unido também vivia sua crise. Defender as ilhas do ataque argentino era uma chance de a “Dama de Ferro” recuperar seu prestígio e reacender o sentimento nacionalista britânico.
“O império contra-ataca”: foi assim que a revista Newsweek noticiou os primeiros despachos das forças armadas britânicas para retomar suas Falklands. A força tarefa, que contava com porta aviões, foi mandada para o Atlântico Sul apenas três dias depois da invasão argentinas.
Sem esperar esse tipo de resposta dos ingleses, a falta de planejamento do exército platino fica mais evidente. As tropas são formadas por combatentes jovens e despreparados. “Meus pais falavam que lutar pelas Malvinas era uma questão de orgulho para os que foram para a guerra. Muitos deles jovens, que não tinham um treinamento adequado e prática suficientes para uma guerra”, relata Matías Alonso, estudante argentino de 20 anos. Além disso, as condições eram precárias, faltavam equipamentos, alimento e estrutura para suportar uma guerra.
Há relatos também de membros da alta patente do exército argentino que abusavam e maltratavam seus soldados. “Eles diziam que seus próprios superiores os tratavam pior que o inimigo”, afirma Juz. Tudo isso, somado ao fato de estarem enfrentando uma potência bélica que ainda contava com apoio americano, resultou em derrotas consecutivas das forças argentinas. “Meu pai sempre falou que a guerra foi uma loucura, que tampouco foi uma guerra. A Argentina tomou as ilhas e ficou com elas apenas enquanto os ingleses não chegavam”, relembra o artista argentino Agustín Vuichard, de 40 anos, residente em São Paulo.
Mas não era isso o que a imprensa noticiava. Alguns dias antes da rendição argentina, o que se dizia em Buenos Aires era que se estava vencendo a guerra. O ufanismo da mídia causou euforia na população, como lembra Agustín: “nas ruas de Buenos Aires parecia Copa do Mundo. As pessoas acharam que era Copa, e como sempre, Argentina celebrando antes de tempo.” Isso deu um fôlego para o governo militar enquanto a guerra acontecia. A estratégia de usar as Malvinas como um instrumento de união nacional funcionou durante os três meses de guerra.
Até mesmo os mais críticos da ditadura apoiavam esta causa. Um exemplo é um grupo de intelectuais de esquerda exilados no México, que em carta aberta defendeu esta ação do governo argentino em especial como legítima. Este grupo foi fortemente criticado por um dos raros personagens contrários à guerra desde o príncipio: Leon Rozitchner. Autor do livro Da Guerra Suja à Guerra Limpa, Leon demonstra nesta obra como há uma continuidade no modus operandi dos militares argentinos. Da guerra suja e interna contra os compatriotas ditos subversivos, para uma guerra externa contra as forças imperiais inglesas que seria a guerra limpa. “Ele vai dizer que não tem como apoiar a guerra pelas Malvinas e criticar o genocídio interno, os desaparecimentos e as torturas. As duas coisas fazem parte da mesma lógica. Mas essa vai ser uma das raras vozes dissonantes”, afirma Breno Juz.
No dia 14 de junho de 1982, após 74 dias de guerra, a Argentina se rende. Ao final, 649 vidas argentinas perdidas, boa parte de garotos com menos de 20 anos. O sentimento que antes era de orgulho transforma-se em revolta e vergonha nacional. A opinião do advogado argentino Ramiro Caggiano, 53 anos, é a mesma de Agustín e Matías: “A batalha de 1982 foi uma aventura irresponsável. Que sacrificou a vida de muitos jovens para tentar salvar um governo fadado a cair.” Três gerações de argentinos com uma visão semelhante. Após o fim da guerra, a junta militar foi derrubada e foram convocadas novas eleições para o ano seguinte. Acabava ali a última das seis ditaduras que a Argentina viveu no século 20.
A ferida aberta pós guerra
O golpe do fracasso e das mortes na Guerra das Malvinas foi forte na sociedade argentina. Mas o abalo psicológico foi ainda maior nos soldados sobreviventes. Devido ao estresse pós traumático de uma guerra e o baque que isso trouxe, centenas de veteranos da Argentina e Reino Unido acabaram se suicidando anos após o conflito.
Esse fato, que ocorreu mais intensamente na Argentina, chamou a atenção de Breno Juz, e foi determinante para que ele escolhesse a questão das Malvinas como tema de seu doutorado: “essas centenas de suicídios se devem a vários motivos, alguns deles envolvendo o retorno fracassado e o que o abandono do exército e do governo fez com estes homens, além do maltrato que estes veteranos sofriam de seus superiores.” Segundo organizações de veteranos de ambos os países, os números de suicídios possivelmente ligados à guerra passam dos 700: sendo 450 de argentinos e 264 de britânicos.
E o trauma rondou também a sociedade. “Nos primeiros anos de democracia, pós ditadura, o sentimento geral era de vergonha sobre o que ocorreu em 1982”, conta Ramiro. O argentino que vive em São Paulo crê que a derrota e a morte de tantos jovens foi um choque e uma ferida que demoraria a cicatrizar.
Mas uma válvula de escape encontrada pelo povo argentino foi o futebol. Quatro anos após a Guerra das Malvinas, a seleção argentina iria enfrentar a Inglaterra numa quartas de finais de Copa do Mundo. “Em 1986, vencer aquele jogo contra a Inglaterra era o suficiente. Vencer a Copa do Mundo era secundário para nós.” A fala do zagueiro argentino Roberto Perfumo para o The Guardian dá o tom que aquele jogo tinha. E o triunfo argentino sobre os ingleses finalmente veio. Diego Maradona, que já era ídolo em seu país, se tornou lenda ao marcar os dois gols da vitória por 2×1. Em um deles, Maradona se aproveitou da distração do juiz e meteu a mão na bola para fazer o gol. Para o povo argentino nada mais do que justo. O gol irregular protagonizado por Maradona foi batizado de “La mano de Díos”. Para os argentinos, a resposta pelo roubo das ilhas e morte de centenas de compatriotas veio pelas mãos de Maradona.
Contudo, segundo Matías, não existe hoje uma repulsa ao Reino Unido e aos britânicos na Argentina. “Pelo que percebo, essa rejeição ao Reino Unido já foi bem maior. Paul McCartney veio para vários shows aqui e nunca sofreu represálias.” Ele pondera que a rejeição existente tem outras motivações. “Há um sentimento de repulsa de algumas pessoas pelo fato de o Reino Unido representar o capitalismo estrangeiro e as políticas que prejudicam a Argentina. Mas isso não tem ligação direta com as Malvinas e imagino que aconteça em outros países, inclusive no Brasil.”
Apesar de a Constituição argentina de 1994 ratificar que “o povo argentino não renunciará à recuperação das ilhas Malvinas”, o que se viu nos anos pós guerra foi um processo de “desmalvinação”. Os primeiros governos democráticos priorizaram outras pautas. Porém, a partir do governo de Nestor e Cristina Kirchner (2003-2015), houve uma tentativa de resgate da importância desse tema — sem exaltar a ação desastrosa do governo militar em 1982. Discursos e políticas mais duras em relação à questão foram adotadas. Como em 2013, quando a então presidente Cristina Kirchner mandou uma carta ao primeiro ministro inglês David Cameron afirmando que “há 180 anos, em um exercício descarado de colonialismo do século 19, a Argentina foi despejada à força das Ilhas Malvinas”.
Ainda em 2013, a hegemonia inglesa nas ilhas foi posta à prova com o referendo que perguntava para a população das Malvinas se eles preferiam se manter sob domínio britânico ou virar território argentino. Quase 99% dos 3.398 habitantes das ilhas, formados por descendentes de ingleses, e com uma ligação cultural-étnica muito maior com o Reino Unido, votaram pela permanência do status atual. Entretanto, o referendo não foi reconhecido pela Argentina e por diversas organizações internacionais, como explica Breno Juz: “O referendo em questão não é reconhecido pela ONU, pois ela não reconhece esses britânicos que vivem nas Malvinas como população autóctone. Ou seja, é considerado que essa população foi implantada no local de maneira não natural.” O advogado argentino Ramiro explica a partir de um exemplo simples: “Os ingleses em 1833 expulsaram os habitantes locais das Malvinas e colocaram britânicos em seu lugar. É como se eu expulsasse você de sua casa, colocasse minha família para morar aí e depois fizesse um referendo com ela perguntando se querem você de volta.”
Atualmente, o governo de Mauricio Macri adota uma política diferente da usada por Cristina Kirchner. Atuando de forma menos incisiva para a solução desta questão, mesmo com a crescente exploração de petróleo pelos ingleses, o governo se mantém passivo: uma postura que Ramiro Caggiano condena e define como “entreguista”. O estudante Matías tem uma opinião parecida e acredita que “a Argentina deve continuar pleiteando a posse das ilhas por meios políticos e pacíficos. Apelando para organizações internacionais como a ONU”. Já Agustín acredita que existem outras prioridades: “Até acho que as Ilhas são argentinas, mas também acho que ainda não estamos preparados como sociedade para ter o controle delas, e temos outras prioridades antes de reclamá-las.”