Não, Joe Sacco não é o autor de “MAUS”, aqueles quadrinhos famosos sobre o nazismo. Eu li o livro e juro que há quadrinhos jornalísticos bons além do feito por Art Spiegelman. Entre as obras mais conhecidas de Joe, por exemplo, estão os quadrinhos sobre a situação da Palestina divididos em duas partes: “Uma nação ocupada” e “Na faixa de gaza”.
Em Reportagens, publicado pela Companhia das Letras em 2016, estão reunidas diversas pequenas (e profundas) histórias sobre conflitos que recebem menor atenção da mídia, como a Guerra da Chechênia, absurdos de guerra e algo bastante atual: a crise dos refugiados. As reportagens foram feitas entre os anos de 1998 e 2011 e publicadas em jornais americanos e europeus.
O livro segue a ordem cronológica de produção, mas antes traz uma reflexão de Joe sobre a produção jornalística em quadrinhos, fazendo considerações sobre as críticas e elogios que recebeu ao longo dos seus anos de trabalho. Sacco é questionado sobre a validade de suas reportagens, já que muitas vezes sua presença e interferência no meio é relatada e não subtraída e transvestida de “imparcialidade”, como o bom jornalismo norte-americano gosta. Essa parte do livro é muito enriquecedora para aqueles que, assim como eu, estão cursando a graduação de jornalismo: sabemos que alcançar a “objetividade” é quase impossível, mas mesmo assim seguimos tentando e muitas vezes, por conta disso, produzimos matérias medíocres e distantes. Nesse ponto, Joe destaca uma frase de Edward R. Murrow, considerado um dos maiores jornalistas dos EUA: “Toda pessoa é prisioneira de sua experiência. Ninguém consegue eliminar seus preconceitos – mas tão somente reconhecê-los.”
Os quadrinhos começam em Haia, ilustrando o primeiro julgamento por crimes de guerra desde Nuremberg (realizado após a Segunda Guerra Mundial). Essa é uma das poucas partes coloridas do livro e o resultado da reportagem, segundo Joe, poderia ser melhor. Essa matéria foi publicada na revista “Details”, em 1998. Em seguida, “Territórios Palestinos”, que varia entre páginas monocromáticas e coloridas, nos leva para o cenário de guerra e destruição, que ficará presente em todos os quadrinhos a partir dai. No capítulo “O Cáucaso”, diversas personagens e situações lamentáveis da guerra são apresentadas por Joe. Como afirmou no texto inicial do livro, Sacco não se apagou do cenário e, em alguns quadrinhos, podemos vê-lo desenhado, falando com algum soldado ou civil. Ainda que os quadrinhos tragam certa leveza para a leitura, o conteúdo é denso e, sobretudo, duro. O cenário ilustrado no trecho sobre a Guerra da Chechênia é devastado e a maioria das pessoas ilustradas são mulheres e crianças completamente perdidas e amedrontadas. Essa reportagem foi publicada no livro “I Live Here”, em 2008.
No Iraque, Joe convive com um batalhão de soldados em treinamento. Sob o comando dos norte-americanos, um pequeno grupo de iraquianos tenta se preparar para o campo de batalha na época em que os EUA ensaiava deixar o território. Sacco afirma nas anotações finais do capítulo que não acha que suas reportagens, publicadas na Harper’s Magazine e no Guardian Weekend, tenham adicionado muito à literatura sobre os “homens em guerra”. A publicação das reportagens e, consequentemente, do livro discordam da opinião de Joe sobre sua produção.
O capítulo seguinte, sobre refugiados na ilha de Malta, não poderia conversar mais com o momento atual. Publicadas na Virginia Quarterly Review em 2010, as reportagens narram a vida de pessoas que sofreram com a situação instável de seus países de origem e a rejeição nos países de destino. O título dos quadrinhos, “Os indesejáveis”, não poderia ter sido melhor escolhido. A última parte do livro diz sobre a pobreza na Índia, um dos países mais populosos do mundo. As vestimentas e os traços físicos ilustrados por Joe enriquecem a história e mudam a nossa percepção de uma realidade e um povo tão distante. Os quadrinhos foram publicados em uma revista francesa em 2011.
Para quem gosta de história, geopolítica, quadrinhos ou jornalismo, o livro é uma ótima pedida. Para os que não entendem os conflitos “daquele lado do mundo”, Reportagens é didático e, obviamente, bom para visualizar o que se encontra lá, do outro lado. Joe não escreveu “Maus”, escreveu “Reportagens” e é um dos jornalistas mais admiráveis e versáteis desses nossos tempos. Leia e tire suas próprias conclusões.
Por Natália Belizario Silva
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