Por Ana Alice Coelho (anaalice.coelho@usp.br)
Filme nacional ganhador do 37º Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, Saudade Fez Morada Aqui Dentro (2022) traz a cegueira como metáfora para a resistência às mudanças do mundo. Ao tratar de diversos tipos de preconceito encarados na adolescência e prolongados depois dela, o longa-metragem do diretor Haroldo Borges demonstra sensibilidade em assuntos delicados, passando ao público o desconforto das violências veladas e o consolo da autoaceitação.
O longa conta a história de Bruno (Bruno Jeferson), um adolescente de 15 anos que possui uma doença degenerativa que progressivamente o deixa cego. Morador da cidade de Curaçá, no interior da Bahia, Bruno já tinha os olhos afetados muito antes de descobrir a cegueira, fazendo vista grossa para os preconceitos que percebia ao seu redor. Com a ajuda do apoio de família e amigos, Bruno se redescobre na nova condição, assim como entende que as intolerâncias que reproduzia estavam muito mais que equivocadas.
O roteiro de Haroldo Borges e Paula Gomes é forte e bem estruturado, passando com cuidado por todo processo de aceitação de Bruno. Na primeira metade do filme, o estado de luto de Bruno pelo o que ainda não perdeu comove de forma íntima. Cada conversa ajuda a entender o enredo da história. As falas entre os personagens são espontâneas, adicionando o contexto necessário sem puxar o público para longe da história com explicações forçadas.
Uma das cenas mais impactantes acontece logo no começo: a reunião onde se discute se Bruno deve ou não continuar na rede pública de ensino. Com pedagogos falando uns por cima dos outros e a câmera rapidamente passando pelos personagens, a sensação de confusão sentida pelo protagonista toca o telespectador, que percebe logo de cara o dia a dia frustrante vivido pelo personagem. A barreira enfrentada por Bruno na escola reflete diretamente em todas as suas outras experiências: andar de bicicleta, passear no Poço Grande, e desenhar – sua maior paixão.
A produção cinematográfica faz questão de construir a atmosfera mais cotidiana possível. A ambientação do filme nordestino faz o espectador crer que já presenciou aquilo tudo: andou pelas mesmas ruas, ouviu as mesmas músicas, teve as mesmas conversas, viveu as mesmas coisas. Grande parte das cenas passa a sensação de ter sido gravada a mão, como se pudesse ser encontrada na galeria de um celular ou até ser a visão da audiência. Essa proximidade com o público engrandece Saudade Fez Morada Aqui Dentro e torna fácil acreditar na realidade passada na história.
Outro ponto positivo é a forma como as relações familiares e as amizades são tratadas. Aqui os louros vão para os atores, que encenam de forma tão fluida e genuína que é difícil acreditar que estão atuando. O destaque vai para a família composta por Bruno, seu irmão mais novo e sua mãe, interpretados por Bruno Jeferson, Ronnaldy Gomes e Wilma Macedo. A representação familiar é tão sincera que é quase impossível não se colocar no lugar do protagonista. Desde as pequenas brigas entre irmãos até a união nos momentos vulneráveis, a desenvoltura dos personagens é feita de forma impecável. A atenção à escolha do nome dos personagens como o mesmo dos atores que os interpretam pode ter ajudado o elenco a se familiarizar com seus papéis.
A trilha sonora, desenvolvida por Pedro Garcia e Victor Coroa, é incorporada majoritariamente dentro do filme por meio do ambiente. Músicas como sucessos de forró são vindas de caixas de som, bandas em festas ou cantadas pelos personagens, elementos diegéticos que são bem integrados dentro da produção. As canções são, em grande parte, alegres, trazendo leveza ao drama do filme.
O longa é uma grande adição a lista dos premiados filmes nacionais, e consegue transportar o espectador à rotina de Bruno. As mais de uma hora e meia de filme trabalham com destreza e naturalidade, orquestrando de forma harmoniosa a atuação marcante do elenco e a habilidade presente no roteiro e direção.
O filme está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem da capa: Divulgação/ Festival do Rio